Todos os projetos de lei monitorados podem ser encontrados aqui.

O Monitoramento de PLs, realizado mensalmente pelo ISER, destaca, em junho de 2024, último mês antes do recesso de meio de ano no Congresso Nacional, mais uma vez, a atenção dos parlamentares a temas da conjuntura que são foco de debates, em especial no noticiário e nas mídias digitais. 

Foi o caso de PLs em torno da temática do estupro, uma vez que o mês de junho foi marcado por manifestações populares, de rua e de grande ocupação nas mídias sociais, contra PL 1904/2024, protocolado no mês anterior, maio, na Câmara Federal. A votação em plenário, em regime de urgência, foi articulada no início de junho pelo bloco parlamentar da extrema direita, defensora da retirada do direito ao aborto legal, inclusive nos casos de estupro, o que é previsto em lei desde 1940. Proposições com o tema se configuraram como uma resposta pró e contra o PL 1904.

Outra pauta frequentemente destacada no monitoramento do ISER é o acionamento da religião como foco das disputas por patrimônio cultural e pela ocupação do calendário cívico. Mais uma vez há um número acentuado de projetos parlamentares neste tema, ao lado de outro também bastante explorado, que é o das questões em torno da infância e da adolescência, predominantemente reduzidas à sexualidade. 

As pautas da violência doméstica, da educação e da causa animal tiveram menor número de PLs em junho, mas seguem como assuntos sempre presentes no monitoramento. Chama a atenção a preocupação parlamentar com técnicas classificadas como questionáveis na resolução de casos de violência doméstica no Poder Judiciário.

Outro destaque é a aproximação do período de campanha para o pleito eleitoral municipal neste 2024, que promoveu a apresentação de mais um PL com este foco. Neste, a pauta é a que tem chamado a atenção nas disputas anteriores e é alvo de ações nos poderes Executivo e Judiciário, porém vem sendo rechaçada pelo Legislativo: o enfrentamento da desinformação (fake news).

Estupro e aborto como temas da conjuntura

O Monitoramento de PLs do ISER tem chamado a atenção, desde a implementação do projeto em 2023, que temas alvo de intenso debate público acabam pautando a apresentação de projetos na Câmara dos Deputados. Junho de 2024 foi um mês marcado pelos debates e as manifestações de rua em torno do rechaço popular à ofensiva ultraconservadora para aprovação da urgência de votação em plenário da Câmara do PL 1904/2024, popularizado nas mídias como PL do Aborto. O texto, de autoria coletiva inicial de 33 parlamentares identificados com as bancadas evangélica e católica, retrocede às atualizações jurídicas sobre o aborto, desde o Código Penal de 1940 (que inclui o direito nos casos de estupro), e propõe equiparar o aborto legal acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio para as mulheres que realizarem e os profissionais que as atenderem. O Boletim de Maio do Monitoramento de PLs do ISER tratou da apresentação desta proposição

A reação negativa na cena pública, com manifestações de rua e forte presença nas mídias sociais, alavancou o apelido do projeto como “PL do Estupro”, por meio de campanhas como “Criança não é mãe”, que ressaltaram os dados que indicam que a maioria das vítimas grávidas de estupros são crianças, que passariam a ser criminalizadas ou destinadas a se tornarem mães precocemente ou sofrer risco de morte, com a aprovação de tal lei. 

As ações contrárias promoveram desgaste político no bloco extremista de direita, que se expôs na promoção da proposição, o que resultou na retirada de autoria por parte de uma parlamentar e no recuo da ofensiva da votação do PL antes do recesso de julho. Para mostrar resposta e persistência na defesa da pauta, os autores do PL 1904 buscaram outros signatários e conseguiram  27 novas adesões de autores, ainda em junho.

No contexto das reações populares ao PL 1904/2024, parlamentares da direita ultraconservadora articularam PLs para minimizar a imagem de que são “defensores de estupradores”. Foram três os projetos que tiveram esta pauta como objeto, apresentados por parlamentares deste bloco, todos com alteração do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), para estabelecer punições mais severas aos crimes de estupro, estupro de vulnerável e suas modalidades: o PL 2526/2024, de autoria da deputada evangélica Coronel Fernanda (PL-MT); o PL 2396/2024 ,de autoria dos deputados cristãos não determinados Delegado Palumbo (MDB-SP) e Sargento Portugal (PODE-RJ); e o PL 2388/2024 de autoria da deputada cristã não determinada Dayany Bittencourt (União-CE).

Na mesma direção, a deputada católica Laura Carneiro (PSD-RJ), apresentou o PL 2195/2024, que altera o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), e dispõe sobre a presunção absoluta vulnerabilidade da vítima do “crime de estupro de vulnerável”, sendo “inadmissível sua relativização”. O texto ressalta que as penas previstas devem ser aplicadas “independentemente do consentimento da vítima, de sua experiência sexual, do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime, ou se da prática do crime resultar a gravidez da vítima.” 

Já o PL 2499/2024, de autoria coletiva de parlamentares de direita, reforça a pressão crítica sobre as mulheres que buscam o direito ao aborto legal e dispõe sobre a obrigatoriedade da notificação à autoridade policial, pelos hospitais, clínicas e unidades básicas de saúde, sobre a interrupção de gestação decorrente de estupro.

Em posição de apoio e minimização dos efeitos negativos do PL 1904/2024, o deputado católico Clodoaldo Magalhães (PV-PE) apresentou o PL 2169/2024, que acrescenta dispositivo na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que regula os registros públicos. O deputado propõe que o Estado garanta, de forma gratuita, “a possibilidade de exclusão de sobrenome do agressor no caso de violência sexual”, ou seja, “em casos de abuso ou estupro a vítima terá o direito de solicitar a mudança automática de seu sobrenome, caso contenha o sobrenome do agressor”. Clodoaldo Magalhães alega que a pessoas geradas por estupro devem nascer, porém, quando receberem oficialmente o sobrenome do agressor, devem ser “desobrigadas de segurar tal fardo psicológico para o resto da sua vida”.

Parlamentares de centro e de esquerda também propuseram projetos, no contexto das discussões em torno do PL 1904/2024, para reforço e/ou resguardo do direito ao aborto legal. A deputada de identidade religiosa não identificada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) é autora de dois projetos que se destacam neste Monitoramento do ISER: 

  • O PL 2522/2024 que estabelece que, nos casos em que o aborto é autorizado, quando é acionada a “objeção de consciência” por profissionais nas unidades de serviço de saúde públicas e privadas, para recusa da realização do procedimento, bem como o “não oferecimento das melhores técnicas em saúde que possam salvar a vida meninas, mulheres e de pessoas” que façam uso deste direito, seja acionado o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para se configurar crime de omissão de socorro.
  • O PL 2521/2024 que dispõe sobre a obrigatoriedade de profissionais da saúde de unidades de saúde públicas ou privadas informarem às vítimas de estupro, ou o/a representante legal, a respeito da possibilidade de realização de aborto no caso de gravidez resultante de estupro.

Religião nas disputas de patrimônio cultural e de ocupação do calendário cívico

Uma das pautas que vem se destacado neste Monitoramento de PLs, realizado pelo ISER é a da inserção da religião, em especial a cristã, nas disputas por patrimônio cultural e pela ocupação do calendário cívico. Este é um tema presente em vários dos boletins mensais publicados desde o início deste projeto e também em textos analíticos na Plataforma Religião e Poder (aqui e aqui) e no ISER/Nexo Políticas Públicas. Junho foi mais um mês em que PLs sobre a temática se destacam.

O deputado evangélico Pastor Sargento Isidório (AVANTE-BA) é autor de PLs que se apresentam como proposições de ocupação religiosa do calendário cívico pelo segmento cristão evangélico:

  • O PL 2321/2024 institui o Dia Nacional dos Valorosos e Muito importantes Presbíteros, Diáconos e Diaconisas, classificadas no texto como “autoridades eclesiásticas espirituais que sem a qual não seria possível o crescimento da comunidade cristã no Brasil”.
  • O PL 2319/2024 institui o “Dia Nacional das Pastoras”, a ser comemorado, anualmente, em 10 de maio, com o objetivo de reconhecer e valorizar a importância da atuação das “mulheres (líderes espirituais) no ministério pastoral no Brasil”.

Dois parlamentares propuseram que festas de tradição Católica Romana se tornem Patrimônio Cultural Imaterial. O deputado de identidade religiosa não identificada Saullo Vianna (UNIÃO-AM), por meio do PL 2184/2024, sobre “Festa da Nossa Senhora Carmo”, de Parintins (AM); e o deputado anglicano Kim Kataguiri (UNIÃO-SP), produziu o PL 2601/2024, sobre a Festa do Divino Espírito Santo de São Luiz do Paraitinga (SP), com abrangência a todas as manifestações artísticas e culturais a ela relacionadas.

O PL 2419/2024, de autoria do deputado católico Eriberto Medeiros (PSB-PE), dispõe sobre a Cultura dos Bacamarteiros como manifestação da cultura nacional, além de regular as apresentações e o tráfego do bacamarte e instituir o 24 de junho como o Dia Nacional do Bacamarteiro. O texto explica que “bacamarte é uma arma obsoleta, utilizada em festejos populares e folclóricos e apresentações da Cultura dos Bacamarteiros”. Nesta manifestação cultural nordestina, presente em festas religiosas e em cerimônias cívicas, são disparados “tiros com o uso de pólvora seca de baixa velocidade e potência, sem lançamento de projéteis”, sendo, ainda assim, necessária a regulação de segurança.

Infância

Uma das pautas destacadas em campanhas eleitorais recentes da direita política, conforme pesquisas desenvolvidas pelo ISER, é o foco na infância, em particular em temas relacionados à sexualidade (abuso sexual, erotização, pedofilia), com discursos de convencimento ancorados no pânico moral. Os parlamentares mantêm os discursos de campanha por meio da proposição dos PLs com a temática. 

Alguns dos projetos reforçam uma prática que tem sido recorrente em municípios e estados governados por políticos identificados com a extrema direita nos últimos anos: a censura a livros, materiais didáticos e produções artísticas, como se pode observar em duas proposições destacadas no monitoramento de junho, para alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990). 

O PL 2313/2024, de autoria do deputado cristão não determinado Mauricio do Vôlei (PL-MG), altera a lei para vedar o uso de recursos públicos na realização de projetos culturais e manifestações artísticas que induzam a erotização precoce de crianças e adolescentes. O  deputado bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Ossesio Silva (Republicanos-PE) é autor do  PL 2286/2024, que altera o ECA, para incluir medidas de proteção a menores de idade na aquisição de revistas, livros e publicações em todo o território nacional, que tratem de incitação à violência, incitação ao suicídio, sexo, sexualidade, erotismo ou nudez.

Outros temas, que enfatizam crimes sexuais contra crianças e adolescentes, são:  o PL 2506/2024, de autoria da deputada evangélica Rogéria Santos (Republicanos-BA), que altera o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), para aumentar a pena no crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável quando praticado com o uso de inteligência artificial; e o PL 2427/2024, apresentado pelo deputado evangélico Dr. Victor Linhalis (PODE-ES), que trata da criação de canal de denúncia por aplicativo para facilitar a denúncia de casos de abusos e violência sexual contra crianças e adolescentes, e torna obrigatória a instalação do aplicativo em todos os sistemas operacionais de smartphones e tablets vendidos no país. O mesmo deputado Linhais é autor do PL 2428/2024, que dispõe sobre a obrigatoriedade de transparência e fiscalização na tramitação de processos relacionados a abusos e violência sexual contra crianças e adolescentes. O PL 2303/2024 ,de autoria da deputada cristã Silvye Alves (União-GO) cria o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crimes Contra Crianças e Adolescentes (CNCCA).

Em outra direção, a que envolve a criminalização de crianças e adolescentes, o deputado evangélico Capitão Alden (PL-BA), propôs o PL 2582/2024 que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990), para que a lei disponha como deve ser a condução e o transporte de adolescentes, em veículo policial, quando lhes é atribuída autoria de ato infracional. Para isso o texto define uma lista do que deve ser considerado comportamento atentatório à ação policial: agressividade; arrogância; exaltação; desobediência; resistência com a utilização de violência ou grave ameaça; atentar com o objetivo de agredir, subtrair ou tentar subtrair arma de fogo ou outro equipamento de proteção individual. 

O PL também estabelece que o/a adolescente não seja “conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, exceto quando houver reação violenta ou iminente receio de fuga ou perigo à ação policial”. Na mesma direção, o projeto indica que seja “permitido o uso de algemas em adolescente a quem se atribua autoria ou apreendido por flagrância de ato infracional, desde que haja comportamentos de resistência, ou fundado receio de fuga ou perigo à integridade física, própria ou alheia, nos termos do art. 173 [do Estatuto da Criança e do Adolescente], justificado por escrito pela autoridade responsável pela apreensão, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal”.

Educação 

Uma pauta importante em campanhas eleitorais, que se reflete na apresentação de PLs, é a  ênfase ultraconservadora no pânico moral em torno do projeto de educação em curso no país. Tais discursos são embasados no movimento Escola Sem Partido, ganharam força durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2024), e tomaram forma em projetos como “educação domiciliar” e “escolas cívico-militares” e no enfraquecimento de políticas públicas de educação conquistadas em décadas anteriores. Em junho, mais um PL nesta direção foi apresentado, este pelo deputado cristão não determinado Lucio Mosquini (MDB-RO) – o PL 2205/2024, que institui as Escolas Cívico-Militares de Ensino Profissionalizante, no âmbito do sistema de ensino público do Brasil.

Causa Animal

Esta pauta também se coloca como destaque, não apenas no Monitoramento de PLs, mas como tema-chave nos últimos pleitos eleitorais municipal (2020) e nacional (2022), conforme pesquisas desenvolvidas pelo ISER. Nesta direção é identificado o PL 2213/2024, de autoria do deputado católico Fábio Teruel (MDB-SP), dispõe sobre a substituição da terminologia “dono” para “humano responsável”, em cadastros, fichas e registros de animais de estimação, e cria a Semana Nacional de Conscientização da Guarda Responsável de Animais de Estimação. O crescimento do foco nos “animais de estimação” na legislação brasileira é foco de um levantamento publicado no ISER-Nexo Políticas Públicas

Violência Doméstica

A deputada de identidade religiosa não identificada Duda Ramos (MDB-RR) apresentou PL 2166/2024, que dispõe sobre a vedação à prática de “constelação familiar sistêmica” no âmbito do Poder Judiciário. A justificativa do projeto afirma que a prática “erroneamente denominada por vezes de técnica terapêutica”, vem sendo utilizada no âmbito de órgãos do Poder Judiciário como método alternativo para resolução de conflitos. 

O texto afirma que há muitos relatos de mulheres em situação de violência doméstica e familiar que foram expostas a traumas violentos, sem o acompanhamento de profissional qualificado. Por isso, o PL, em parágrafo único de um dos artigos propostos, recomenda a seguinte classificação da prática: “constelação familiar sistêmica a técnica, dita terapêutica, que, aplicada de modo pontual e breve, baseia-se em um pensamento sistêmico que supostamente observa e analisa dinâmicas ocultas de possíveis conflitos psíquicos e relacionais do sistema familiar ou organizacional mediante uma visão mística e transgeracional, utilizando-se da representação simbólica dos envolvidos”.

Eleições em pauta

O PL 2251/2024, de autoria da deputada sem religião Erika Kokay (PT-DF), altera a Lei nº 14.197, de 2021, que insere no Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) um título referente aos crimes contra o Estado Democrático de Direito. 

Na alteração proposta pela deputada, são inseridos dispositivos para criminalizar a produção e a disseminação de comunicação enganosa em massa no processo eleitoral, com pena de prisão de dois a seis anos. Na justificativa, é indicado que “a disseminação de notícias fraudulentas representa um atentado direto à própria democracia e ao Estado de Direito, pois visam desacreditar as instituições e o processo eleitoral como um todo, a exemplo dos ataques perpetrados às urnas eletrônicas em 2020 e 2022 no Brasil pelo então chefe do Poder Executivo e por segmentos negacionistas de extrema-direita”.

Apesar de o enfrentamento da desinformação não prosperar na Câmara Federal, por articulação do bloco de direita na Câmara Federal, sob o lobby das Big Techs, com o apoio da Presidência da Casa (vide o embarreiramento da votação do PL 2630/2020), os outros poderes da República têm atuado com projetos pelo Executivo, e  ações de respeito ao Direito e ao processo eleitoral via Judiciário.

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Junho de 2024 chama à reflexão sobre a manutenção do predomínio de PLs propostos por parlamentares da direita e da extrema direita que mobilizam pautas voltadas para a punição mais dura a estupradores, como suavização da defesa do fim do direito ao aborto legal; para pânico moral em torno da sexualidade na infância e na adolescência; da militarização da educação; e da religião como foco de disputa do patrimônio cultural e do calendário cívico.

Sobre os autores:


Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.