Escola sem Partido (ESP) é um programa e um projeto de lei oriundo de um movimento político surgido no Brasil em 2003, no âmbito da sociedade civil, capitaneado pelo procurador paulista Miguel Nagib. No contexto do surgimento, a principal pauta do ESP era o combate ao que Nagib denominou “doutrinação política e ideológica” de crianças e jovens nas escolas brasileiras. Segundo o procurador e os defensores do programa, esta “doutrinação” estaria sendo promovido por professores e professoras que, ardilosamente, se valem da “audiência cativa” de estudantes vulneráveis nas salas de aula para promover uma suposta doutrinação a qual classificam como comunista ou “de esquerda”.
O programa ESP opera, por meio das mídias sociais, incitando famílias e estudantes a vigiarem docentes em sala de aula, e estimula, assim, alunos e alunas a filmarem suas aulas com aparelhos de telefone celular com o intuito de garantirem e reunirem “provas de doutrinação nas escolas”. Nesse caso, por “doutrinação” entenda-se toda e qualquer informação que seja diversa daquela que é preservada pelas famílias dos e das estudantes, as quais fazem parte da pluralidade de ideias que caracteriza os conhecimentos e os currículos de diferentes componentes para uma formação escolar ampla e cidadã.
Os referidos vídeos têm uma dupla função no contexto do movimento ESP: a primeira, é cercear a liberdade de cátedra de professores e professoras, ameaçando-os e denunciando-os ao site do ESP, às secretarias de educação, e até mesmo ao Ministério Público. Requerem-se sanções que vão desde a suspensão, exoneração/demissão de docentes das instituições em que lecionam, e até mesmo a detenção. A segunda, é o uso dos referidos vídeos como material de propaganda político-ideológica, distintamente marcada pelo discurso de ódio e pelo pânico moral, para divulgação em grupos e canais conservadores e de extrema direita nas mídias sociais, o que culmina também na perseguição e linchamento público de docentes e instituições educacionais em todos os níveis de ensino.
Embora tenha como ponto de partida um pressuposto “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, Miguel Nagib sempre assegurou em entrevistas concedidas à mídia que o ESP não se tratava de um programa de cunho religioso. Contudo, foi pelas mãos de congressistas membros da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) que, em 2015, o ESP deixou de ser um movimento social para se tornar projeto de lei (PL) no Congresso Nacional, depois de, praticamente, 12 anos da sua criação e no bojo da discussão e da votação do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024).
A primeira proposição do ESP na Câmara Federal se deu por meio do PL867/2015, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF), membro da FPE. No ano seguinte, o senador Magno Malta (PR-ES), que além de membro da FPE à época, é pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular, também propôs o PL193/2016 para a regulamentação do ESP.
Tais proposições, além de ampliarem o debate e o conflito público em torno da pauta, também fizeram disparar uma série de projetos de lei de âmbito estadual e municipal Brasil afora. A maioria destes projetos foi encabeçada por legisladores ligados a grupos religiosos conservadores e distintamente fundamentalista, com o intuito de regulamentar o ESP como política pública nos diversos sistemas de educação do país.
Embora os PLs 867/2015 e 193/2016 tenham sido recusados no Congresso Nacional, a agenda seguiu se robustecendo, a ponto de se tornar uma importante bandeira da campanha presidencial de Jair Messias Bolsonaro no ano de 2018. Por se colocar como candidato conservador em defesa da família, da moral e dos bons costumes, o presidente eleito recebeu apoio explícito de atores e grupos religiosos fundamentalistas que tem como pauta o combate à dita “ideologia de gênero”.
Nesse contexto, o pleito de 2018 foi decisivo também para o expressivo aumento da chamada Bancada da Bíblia e, consequentemente, da FPE no Congresso Nacional na legislatura de 2018-2022. Com isto, o ESP retornou à — e segue tramitando na — Câmara dos Deputados com o PL246/2019, pelas mãos da deputada Bia Kicis (PSL-DF), que é membro da FPE e cunhada de Miguel Nagib, em um congresso cuja configuração é ameaçadora para a garantia das liberdades democráticas.
Imprescindível compreender que, na atual conjuntura, a religião não só atravessa o ESP de modo implícito, mas, sobretudo, constitui-se de modo explícito como um dos seus eixos estruturantes. O traço originário do ESP, de se apresentar como um programa arreligioso, mas que fora sistematizado e difundido como uma espécie de arauto da soberania da família e da igreja sobre a norma jurídico-política. Esta, que tem por função salvaguardar a pluralidade da vida em sociedade, acabou por arregimentar grupos religiosos que viram no programa um caminho para colocar em prática um projeto de sociedade pautado justamente no aniquilamento da pluralidade de ideias e da diversidade de modos de ser, viver e estar no mundo. É nesse contexto que o PL 246/2019 traz explicitamente no seu texto a dita “ideologia de gênero” como uma das principais agendas a serem combatidas na escola, diferenciando este PL dos seus antecessores em nível federal.
Desse modo, o ESP, na qualidade de política pública para a educação, é parte de um projeto de sociedade que procura restabelecer a religião, no caso, um certo tipo de Cristianismo fundamentalista, como centro organizador da vida e das instituições sociais, entre elas o Estado e a escola, por meio da educação das novas gerações. Nesse sentido, a escola tem figurado como um relevante campo de disputa religioso-política, na medida em que é nela que se estabelecem os princípios da educação, da sociabilidade e controle moral dos corpos, condutas e comportamentos.
Compreender o ESP significa compreender que ele é um dispositivo jurídico que, assimilado por grupos religiosos fundamentalistas, reverbera um certo tipo de ideologia religioso-política pautada pela perseguição de educadores e educadoras, pela supressão do reconhecimento e do diálogo entre as alteridades, e cuja pretensão é garantir pela força da lei o apagamento da pluralidade de ideias, da liberdade e da diversidade em uma das principais instituições da vida moderna, a escola. Tal projeto oferece riscos e prejuízos severos à educação como um todo, na medida em que compromete desde as relações professores-estudantes no espaço escolar e os processos elementares de construção de conhecimento, até a própria sociabilidade e o estar-junto coletivo desses e todos os outros sujeitos e sujeitas em sociedade.
Andréa Silveira de Souza é filósofa, doutora em Ciências da Religião e docente da Universidade Federal de Juiz de Fora.
REFERÊNCIAS:
FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.) Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.
MACEDO, Elizabeth. As demandas conservadoras do movimento Escola sem Partido e a Base Nacional Comum Curricular. In: Educação e Sociedade, Campinas, v. 38, n° 139, p. 507-524, 2017.
SANTOS, Naira Pinheiro dos; SOUZA, Sandra Duarte de. O Plano Nacional de Educação e a ação articulada de setores conservadores católicos e evangélicos contra a dita “ideologia de gênero”. In: PINHEIRO, Jorge (Org.). Existência e Desafio. São Paulo: Fonte Editorial, 2019. p. 109-142.
SOUZA, Andréa Silveira de. Religião e educação: as marcas do fundamentalismo religioso no programa Escola sem Partido. In: Religare. João Pessoa, v.16, n.1, p.09-33, 2019b. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/view/42473 Acesso em 15 mar 2022.
SOUZA, Andréa Silveira de. Religião e educação no Brasil: o programa “Escola sem Partido” como um obstáculo ao Ensino Religioso e à formação cidadã. In: Horizonte – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 18, n. 55, p. 122-148. 2020. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/22249 Acesso em 15 mar 2022.