Atualizado em 18/05/2023 às 12h35

Em 10 de março deste ano, durante uma sessão no plenário da Câmara de Vereadores de Niterói, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro, instalou-se uma grande discussão diante da apresentação de um projeto de lei. O PL 9/2022, de autoria de Benny Briolly (PSOL), tem como proposta instituir, no calendário oficial de eventos do município, o dia 12 de novembro como Dia Municipal de Maria Mulambo, atribuindo a essa conhecida entidade da Umbanda – uma pombagira caracterizada por trazer proteção e abrir os caminhos – a qualificação de protetora da cidade. 

Atacado, especialmente por parlamentares vinculados ao campo evangélico e ao bolsonarismo e por pessoas presentes na audiência, o projeto foi retirado de pauta e a sessão precisou ser interrompida. Para a vereadora, a demonização que a cultura negra e suas religiões sofrem hoje é “resultado da imposição de religiões cristãs em âmbitos políticos e sociais”.

O que ocorreu na ocasião suscitou debates sobre transfobia, racismo religioso e intolerância religiosa. Vídeos da sessão parlamentar revelam xingamentos e acusações contra o projeto de Briolly, vereadora negra e a primeira travesti eleita para o legislativo de Niterói, cuja fala era interrompida por gritos de “demônio” e “macumbeira”. 

Em discurso, o vereador Douglas Gomes (PTC), com brados de “está repreendido!”, afirma que entidades como Maria Mulambo não entram em seu gabinete, que só tem lugar para Jesus Cristo. Gomes, por diversas vezes, refere-se à vereadora com o uso de pronomes masculinos. Outro homem que acompanhava a sessão afirma que “Jesus Cristo é o Senhor de Niterói” e exclama: “Xô, Satanás!”. Pais de santo e demais religiosos presentes no plenário também foram intimidados. A Comissão Permanente de Constituição e Justiça e Redação Final da Câmara (CCJRF) já emitiu parecer desfavorável ao projeto por “inconsistência técnica” e por ferir o Estado laico, segundo o vereador Dr. Nazar (MDB).

Porém, o que encontramos no calendário de Niterói? Em seu calendário oficial de “festas, eventos, homenagens e datas comemorativas”, há datas de cunho religioso, quase todas cristãs, com predominância de festas de santos católicos – incluindo o feriado de 24 de junho, que celebra o Dia de São João, padroeiro da cidade. Há também significativa presença evangélica, como o Dia da Marcha para Jesus, o Dia do Pastor Evangélico, o Dia do Obreiro Universal, entre outras. Apenas uma data remete ao campo afro-brasileiro: o Dia Municipal do Presente de Iemanjá, celebrado em 2 de fevereiro. Por que não acrescentar ao calendário o Dia de Maria Mulambo? O que este caso pode nos dizer sobre quem, do campo religioso, tem mais legitimidade para se fazer presente em calendários oficiais no Brasil? 

O calendário é algo tão naturalizado e incorporado ao nosso cotidiano que, em geral, não nos damos conta das presenças e das ausências nele. Lugar de disputas em diferentes planos, a formação do calendário, com feriados e datas comemorativas, provoca questões que envolvem desde o mundo do trabalho e da economia (afinal, feriados são dias não úteis, de não trabalho), passando por debates sobre civismo e o que é considerado importante de ser lembrado, até o contexto da tradição, da identidade e da cultura. 

No Brasil, ao observarmos a construção do calendário nacional ao longo dos anos, podemos verificar como o catolicismo se coloca como um elemento fundamental na construção da nacionalidade, do tempo e do espaço públicos, incorporando-se ao calendário sem grandes questionamentos ao ser entendido como parte da tradição e da cultura nacional. 

E isso é muito evidente no quadro de feriados, que são mais visíveis por paralisarem o tempo comum e as atividades cotidianas. Todos os feriados nacionais brasileiros de caráter religioso vinculam-se ao Cristianismo/Catolicismo, como o 12 de outubro, Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do país, e mesmo as datas que são consideradas pontos facultativos, como o Corpus Christi, data móvel do calendário cristão.

A instituição de feriados e datas comemorativas no país ocorre via legislação, mas por meio de normas diferentes. Para os feriados, é preciso seguir o disposto na Lei Federal 9.093/1995, que estipula regras distintas para feriados civis e religiosos. São feriados civis aqueles estabelecidos por lei federal; a data magna dos estados definida por lei estadual; e os dias do início e do término do ano do centenário de fundação dos municípios, fixados em lei municipal. 

Já os feriados religiosos são considerados dias de guarda que devem seguir a tradição local, fixados por lei municipal e com número não superior a quatro datas, entre as quais é obrigatória a inclusão da Sexta-Feira da Paixão. É possível perceber como essa norma acaba reforçando a hegemonia cristã católica no calendário brasileiro. A referência a dias de guarda igualmente reforça essa presença, pois são, de maneira geral, relacionados ao Catolicismo como parte da formação cristã da sociedade brasileira, com legitimidade para marcar o calendário ao se articular à ideia que se tem do que é religião. O domingo é um dia de guarda católico, assim como algumas festividades, como o Corpus Christi e o Natal, dias santos de preceito e de obrigação.

Por outro lado, debates sobre o princípio da laicidade do Estado e o direito fundamental da liberdade religiosa desafiam a ideia de uma identidade e uma cultura nacionais marcadas pelo Catolicismo, pois chama a atenção para a existência de outros pertencimentos religiosos. Podemos identificar tentativas de instituição de novos marcos no calendário que buscam observar a diversidade cultural e religiosa do país. Ainda que se mantenha no âmbito cristão, o Dia do Evangélico é um exemplo disso, data comemorativa nacional em homenagem à comunidade evangélica e feriado religioso em algumas localidades, como Brasília. 

Outro caso é o Dia da Consciência Negra, que, embora já seja uma data comemorativa nacional, é objeto de disputas em torno de sua institucionalização como feriado. Além da dimensão étnica e da importância da população negra na formação do Brasil, passando pela luta contra o racismo e por direitos fundamentais, o 20 de novembro também envolve debates sobre sua dimensão religiosa, articulando tanto os movimentos negros quanto as religiões afro-brasileiras. Isso se relaciona com controvérsias a respeito de sua constitucionalidade como feriado municipal, o que já é uma realidade em centenas de municípios brasileiros, ao mesmo tempo que, em Porto Alegre, por exemplo, capital do Rio Grande do Sul, a Justiça julgou inconstitucionais leis que procuravam fixar a data como feriado, mesmo quando sua denominação articulava uma dimensão religiosa. 

Ao observar os calendários dos estados brasileiros e suas capitais, como pude realizar em outro texto, verifica-se, entre os feriados religiosos, a quase totalidade de datas católicas, com destaque para santos padroeiros, o que demonstra a influência e a permanência histórica do Catolicismo e do culto aos santos na cultura brasileira. Por sua vez, nota-se como alguns santos católicos aos quais são dedicados feriados apresentam, mesmo em suas festas públicas, articulações com orixás, como a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre, que se relaciona com Iemanjá, e a Festa de São Jorge no Rio de Janeiro, associada também a Ogum. Essas imbricações são importantes na medida em que revelam modos de existência e de resistência de manifestações religiosas afro-brasileiras no espaço público das cidades. 

Nesse sentido, a instituição de datas comemorativas também é um espaço relevante, pois elas se configuram como formas de reconhecimento social de diferentes grupos e permitem afirmar identidades. A Constituição Federal de 1988 atrela as datas comemorativas à etnicidade, concebendo a nação como sendo formada por diferentes grupos étnicos. Em seção sobre cultura, apenas um parágrafo de um dos artigos aborda essas datas, garantindo os direitos culturais e o acesso às fontes de cultura, e promovendo a difusão das manifestações culturais: “Art. 215. […] § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais”. 

Finalmente, em 2010, a Lei Federal 12.345 estabelece como devem ser instituídas as datas comemorativas no país, decretando que estas devem obedecer “ao critério da alta significação para os diferentes segmentos profissionais, políticos, religiosos, culturais e étnicos que compõem a sociedade brasileira”. Tal critério, de acordo com a norma, deve ser definido mediante consultas e audiências públicas, o que, no entanto, nem sempre se observa na prática. No âmbito nacional, pode-se verificar datas comemorativas que representam os mais diversos temas, grupos e atores, como categorias profissionais, personalidades históricas, solenidades cívicas, questões sociais, identidades étnicas, eventos culturais e religiosos etc.

Isso nos leva a questionar novamente a dificuldade de religiões afro-brasileiras estabelecerem determinados marcos nos calendários, como demonstra a controvérsia em torno da pombagira Maria Mulambo, que segue em andamento em Niterói. Atualmente, não apenas a hegemonia católica, que ainda permanece no imaginário, acaba impedindo certas ações, mas principalmente o cenário de crescimento da presença e da visibilidade de denominações evangélicas na esfera pública e, especialmente nos últimos anos, em quadros não só do Legislativo, como também do Executivo e do Judiciário brasileiros. Esta presença orienta sua atuação para um projeto de nação que trava embates com grupos minoritários e que historicamente sofrem com perseguições.      

Izabella Bosisio é antropóloga, doutora em Antropologia Social (UFRGS) e pesquisadora em religião, política, tempo e espaço públicos.

Foto: Benny Briolly. Divulgação – Instagram (@bennybriolly)

Saiba mais:

BOSISIO, Izabella. O calendário brasileiro e a legislação sobre feriados civis e religiosos. NEXO Políticas Públicas, 2023.