Punição, repressão e enquadramento narrativo: reverberações da “Megaoperação Contenção” nos projetos de lei sobre segurança pública

Todos os projetos de lei monitorados podem ser encontrados aqui.
fotoFoto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Jo P. Klinkerfus

Por Jo P. Klinkerfus

  • 19 nov 2025
  • 11 min de leitura
Punição, repressão e enquadramento narrativo: reverberações da “Megaoperação Contenção” nos projetos de lei sobre segurança pública
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Em 28 de outubro de 2025 a cidade do Rio de Janeiro/RJ foi palco de um dos maiores casos de repercussão (conforme abordagem de Lucia Eilbaum e Flavia Medeiros) da história da segurança pública nacional. A megaoperação policial intitulada “Contenção”, realizada nos complexos do Alemão e da Penha, contou com um contingente de 2,5 mil agentes das forças de segurança para cumprir 180 mandados de busca e apreensão e 100 mandados de prisão. Todavia o maior impacto da operação nos meios jornalísticos se deu pelo fato dessa resultar em mais de 120 mortos, dos quais nenhum constava na lista de réus com mandados de prisão preventiva. Dentre os mortos, foram identificados indivíduos acusados de associação ao crime organizado, pessoas sem passagens pela polícia e quatro policiais, levantando debate público sobre as motivações e efeitos da letalidade da operação.

A repercussão do caso se estendeu pelas instâncias midiáticas, sociais e políticas e resultou em um debate público em múltiplas esferas, com agentes que destacam diferentes aspectos do ocorrido e narram as mortes de formas distintas. Determinados grupos enfatizaram o sucesso da operação no âmbito do combate ao crime – em decorrência do número de mortos, dos 118 armamentos apreendidos e dos mais de 100 suspeitos presos e menores apreendidos –, enquanto outros apontavam para a tragédia do episódio descrito como a “maior chacina da história do Brasil”, com um número de mortos que superou o Massacre do Carandiru, de 1992 no estado de São Paulo. Como representante maior do executivo, o presidente Lula (PT) acrescentou ao debate público que a operação teria envolvido uma “matança” e poderia ser considerada um “desastre”.

É dentro deste contexto de repercussão que os Projetos de Lei (PLs) a respeito da temática do crime e da segurança pública foram construídos nos dias que seguiram a megaoperação. Contendo um perfil majoritariamente de reações ao ocorrido, os projetos se concentraram em proposições de caminhos legais para ampliar e qualificar futuras ações policiais do mesmo tipo, aumentar o escopo e as possibilidades do trabalho dos agentes da segurança pública (polícias e Forças Armadas) e dilatar as punições para indivíduos vinculados ao crime organizado. Esses PLs direcionam-se a três caminhos que dizem respeito à segurança pública, ao combate ao crime organizado e às facções criminosas e à forma como a megaoperação deve ser representada e lembrada: punição, repressão e enquadramento narrativo.

O caminho da punição

O elemento da punição se faz presente em PLs que propõem novas tipificações penais (novos crimes) que deveriam ser punidos, como no caso do PL 5552/2025, de autoria do deputado de identidade cristã Zucco (PL/RS), que cria o delito de tentativa de expulsão de moradores para fins de ocupação ilícita de suas residências. Também, o PL 5459/2025, de autoria do deputado católico Sanderson (PL/RS), o qual torna crime o uso de drones para lançamento de explosivos e demais artefatos nocivos, como químicos. O texto justifica a proposta pelo fato da megaoperação ter revelado “[…] a utilização inédita de drones para lançar explosivos contra forças de segurança pública, resultando em mortes, feridos e pânico generalizado entre a população.” 

Outra manifestação da dilatação das formas de punir são as propostas de aumento de penas para crimes já estabelecidos no Código Penal, como no PL 5558/2025, de autoria do deputado católico Capitão Augusto (PL/SP). O texto aumenta a pena para aquelas pessoas condenadas por integrar organizações criminosas, que era de três a oito anos de reclusão, passando a equipará-la ao crime de integrar organizações terroristas, com pena de cinco a oito anos.

Uma terceira forma mais radical e transformadora das dinâmicas da segurança pública e do combate ao crime no Brasil é o caso do PL 5556/2025, de Bruno Lima (PP/SP), de identidade religiosa não identificada, que propõe ampliar a definição de “terrorismo” no escopo da Lei Antiterrorismo (nº 13.260, de 16 de março de 2016). Citando como justificativa a megaoperação e a “[…] crescente atuação de facções criminosas, como o Comando Vermelho e o PCC”, o projeto reconfigura o enquadramento legal, a imagem pública do tema e as possibilidades de atuação frente ao crime organizado. 

A Lei Antiterrorismo explicita que organizações terroristas devem possuir alinhamentos ideológicos explícitos, como xenofobia ou preconceito racial, de etnia ou religião, e buscar impor suas visões de mundo por meio da violência. Esta lei também configura o crime dentro do escopo de trabalho de órgãos federais, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Ao enquadrar o crime organizado como terrorista, o PL possibilita maior mobilização de contingente de agentes da segurança (municipal, estadual e federal), equipara o narcotráfico a uma ideologia política radical e aumenta penas de múltiplos crimes associados à organização de facções.

O caminho da repressão

As discussões ao redor da Lei Antiterrorismo são centrais para entender o campo do debate da segurança pública no contexto de retaliação ao crime organizado, pois elas também enquadram o tema geral da ampliação das formas de policiamento repressivo ao aumentar as possibilidades de atuação e de uso da força dos agentes de segurança. 

Outras formas de ampliação dos mecanismos de repressão são os PLs que propõem novos investimentos na segurança pública, como o PL 5517/2025, de autoria do deputado cristão Nicoletti (União/RR), que propõe a aquisição, operação e manutenção de viaturas e helicópteros blindados pelos órgãos policiais. Além das polícias, as Forças Armadas também são acionadas no escopo desses projetos, como no PL 225/2025, de autoria coletiva de parlamentares do partido Novo. O texto sugere um alargamento das possibilidades de atuação do exército em contextos nacionais de forma subsidiária, preventiva e repressiva, em áreas urbanas e rodovias, com foco no combate a organizações criminosas.

O que estes PLs nos mostram é que o tema da segurança pública e das organizações criminosas se tornaram incontornáveis a partir da repercussão estrondosa da megaoperação – ou chacina – de 28 de outubro passado. Nos dias que seguiram, foram apresentados PLs de segurança que deixam de lado outras formas de prevenção à violência urbana, como assistência social, saúde e educação. Tais proposições priorizam o combate à criminalidade por meio de operações, incluindo propostas orçamentárias que não levaram em conta a importância da inteligência policial e da perícia criminal nos processos de construção de verdade e resolução de crimes. 

Entre ideias explicitadas e ideais políticos presentes nestes silêncios dos PLs, fica evidente a importância do enquadramento narrativo para o debate público acerca de segurança, crime e trabalho policial.

O enquadramento narrativo

O terceiro tipo de PLs propostos no período analisado diz respeito especificamente à produção desses enquadramentos narrativos, como no caso do PL 5466/2025, de autoria do deputado cristão Sargento Portugal (Pode/RJ), que propõe alterar a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (nº 14.735, de 23 de novembro de 2023). A proposição dispõe sobre a promoção post mortem dos policiais civis, com o objetivo de “[…] trazer justiça para aquele agente que tombou em serviço ou em razão dele […], assegurando promoção post mortem ao último cargo da carreira, nos casos de morte em serviço ou em razão do exercício da função, bem como de doenças ou enfermidades a ele relacionadas.” A justificativa traz consigo dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) para argumentar que os “[…] marginais da lei estão ceifando vidas” de policiais, os quais deveriam ser honrados pelo Estado. Este PL propõe alterações na política organizacional e econômica das polícias civis, mas também é uma política de imagem (conforme abordada por Hans Belting), pois orienta como esses policiais hão de ser lembrados após sua morte.

Outro exemplo são os PLs do deputado de identidade cristã Coronel Assis (União/MT) sobre a criação da Medalha de Honra ao Mérito de Combate às Facções e Organizações Criminosas e sobre a instituição do Dia Nacional de Combate às Facções e Organizações Criminosas, 28 de outubro. Ambos os textos reiteram a narrativa conservadora de que a megaoperação teria sido um sucesso na luta contra o crime, dando suporte legal/oficial para abafar as perspectivas de familiares de vítimas que têm enfatizado o dia 28 de outubro como um dia de chacina e marca do genocídio nas comunidades do Rio de Janeiro. A proposta de criação da data pelo Coronel Assis é justificada como “[…] uma homenagem póstuma aos quatro policiais que perderam a vida nessa operação e aos que ficaram feridos, verdadeiros heróis que honram o juramento de servir e proteger, sacrificando-se em defesa da ordem e da sociedade.” Utilizando o poder legislativo, deputados reiteram a imagem de policiais como “herois”, cujas vidas (e mortes) devem ser honradas e lembradas como aquelas que importam.

O que há de comum entre a validação post mortem dos policiais como sujeitos a serem honrados e a proposta de definir o dia da megaoperação como uma data de comemoração e honraria é que ambos agem na manutenção da estrutura narrativa hegemônica sobre polícias e crime, conforme tratado na Dissertação de Mestrado da autora deste artigo. Neste enquadramento narrativo as mortes de inocentes na operação são descritas como danos colaterais necessários e a prática recorrente das forças policiais de executar indivíduos procurados, suspeitos e inocentes é normalizada como parte de um bom serviço de segurança (conforme abordado por Laura Capriglione). 

O reforço e a manutenção do enquadramento narrativo normativo acerca da segurança, os quais representam as forças policiais como um bem absoluto na “luta do bem contra o mal” (conforme estudo sobre o portal de notícias da Polícia Militar de Santa Catarina, pela autora deste artigo), é relevante para as projeções do debate público. Eles barram quaisquer críticas às forças de segurança pública e vilanizam aqueles que denunciam a violência policial como “protetores de bandido” ou “apoiadores do crime organizado”, ao passo que elevam os defensores dos agentes de segurança a uma posição de superioridade moral.

“Lei e ordem” em foco

Retomo, por fim, a centralidade da Lei Antiterrorismo no contexto pós-megaoperação no Rio de Janeiro, pois ela dilata as formas de punição, aumenta o aparato repressivo e atualiza o conceito de “terrorismo” para caracterizar as organizações criminosas como inimigos a serem eliminados. 

As proposições legislativas de aumento da punição e da repressão como formas de combate às facções evidenciam a força do conservadorismo jurídico, notadamente na defesa da eficácia da prevenção negativa. Amparados por uma Câmara de Deputados que defende uma expansão generalizada do poder policial, os PLs parecem indicar um possível novo reavivamento das políticas de “lei e ordem” para o próximo ano eleitoral.

Referências/indicações de leitura

BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à iconologia. Ghrebh: Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, São Paulo, v. 1, n. 8, p. 32-60, jul. 2006.

CAPRIGLIONE, Laura. Os mecanismos midiáticos que livram a cara dos crimes das polícias militares no Brasil. In: KUCINSKI, B. et al. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 55-60.

EILBAUM, Lucía; MEDEIROS, Flavia. Entre rotinas, temporalidades e moralidades: a construção de processos de repercussão em dois casos etnográficos. In: KANT DE LIMA, Roberto; EILBAUM, Lucía; MEDEIROS, Flavia (Org.).  Casos de repercussão: perspectivas antropológicas sobre rotinas burocráticas e moralidades.Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017, p. 15-42.

KLINKERFUS, Jo P. “Melhor que filme de ação”: Uma etnografia do canal de YouTube da Polícia Militar de Santa Catarina. 2025. 297 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2025.

KLINKERFUS, Jo. P. “Injusta agressão” e outras formas de contar a morte: Uma etnografia do portal de notícias da Polícia Militar de Santa Catarina. Ouro Preto, MG: Caravana Grupo Editorial, 2024.

Como citar

KLINKERFUS, Jo P.. "Punição, repressão e enquadramento narrativo: reverberações da “Megaoperação Contenção” nos projetos de lei sobre segurança pública". Religião e Poder, 19 nov. 2025. Disponível em: . Acesso em: .

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