A presença de representantes conservadores do segmento evangélico em cargos importantes do Executivo federal vem crescendo nos últimos anos e encontrou seu ápice no governo de Jair Bolsonaro. Desde a posse dele, em janeiro de 2019, têm sido muitas as sinalizações do fortalecimento da aliança do ex-capitão do Exército, firmada na campanha eleitoral, com uma parcela significativa dos evangélicos brasileiros. Trazemos aqui dois exemplos.

Durante culto realizado pela Bancada Evangélica na Câmara dos Deputados, em julho de 2019, o presidente da República afirmou: “O estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares [Alves, ministra]: Nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF). Um deles será terrivelmente evangélico“. Esta promessa se concretizou dois anos depois com a indicação do pastor presbiteriano André Mendonça para o cargo.

Um mês depois do culto, em agosto do mesmo ano, Bolsonaro buscou agradar seus apoiadores evangélicos quando defendeu que o presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), órgão federal de incentivo à indústria audiovisual atualmente vinculada ao Ministério do Turismo, deveria ser evangélico. E mais: um evangélico que, em suas palavras, conseguisse “recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse os joelhos machucados de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço”. Antes, o presidente já tinha defendido a extinção da agência caso não pudesse implantar um “filtro de conteúdo”, demonstrando seu descontentamento com as produções viabilizadas pelo órgão nos últimos 20 anos (ao longo de quatro governos diferentes). 

Diante desse cenário e, ainda, da ênfase dada à presença de religiosos em cargos do Legislativo, Religião e Poder apresenta um breve panorama das movimentações políticas que culminaram na maior ocupação de representantes do segmento evangélico também no Executivo. A pergunta que orienta esta reflexão é: por que e como os evangélicos protagonizam a condução de ministérios no governo Bolsonaro? 

Base de apoio

De fato, a aliança com a parcela evangélica de perfil conservador continua sendo uma importante base de apoio para um governo federal desarticulado e sem projetos de apelo popular. A aliança teve início em 2013, com o apoio de Bolsonaro ao pastor Marco Feliciano (à época PSC/SP) na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, e se consolidou,em 2016, com a filiação de Bolsonaro ao PSC (ocupado pela Assembleia de Deus). O compromisso foi materializado ainda em 2016, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, em batismo no Rio Jordão, pelas mãos do Pastor Everaldo – presidente do partido à época e hoje preso acusado de corrupção – apesar de Bolsonaro continuar se apresentando publicamente como católico. 

Como candidato, o presidente foi muito bem instruído no discurso que alimentou a pauta de costumes em sua campanha eleitoral, afetando fortemente o imaginário evangélico conservador calcado em pilares como a proteção da “família tradicional”, defesa da heteronormatividade, controle dos corpos das mulheres e formação da juventude. 

Para um segmento religioso que, no decorrer do século 20, almejou espaços de maior poder político, consolidando uma Bancada no Congresso Nacional e cargos no Poder Executivo, esta aliança representa muito, além de abrir espaço para maior ocupação do Poder Judiciário a ponto de alcançar o STF.

Ocupação do Executivo

O Poder Executivo vinha sendo estrategicamente ocupado por evangélicos desde o governo Dilma Rousseff, com o senador Marcelo Crivella (PRB, atual Republicanos/RJ) e o deputado George Hilton (PRB/MG), ambos da Igreja Universal do Reino de Deus, respectivamente na chefia dos Ministérios da Pesca e do Esporte. Apesar de significativa, não se tratava de uma ocupação numérica e simbolicamente expressiva. 

No governo Temer o mesmo ritmo de ocupação foi mantido, com espaço reservado para a IURD na pessoa do bispo Marcos Pereira (PRB/SP), no Ministério da Indústria e do Comércio, ao lado do pastor da Assembleia de Deus Ronaldo Nogueira de Oliveira (PTB/RS), no Ministério do Trabalho.

Já com Bolsonaro, evangélicos passaram a ter presença expressiva e hegemônica no governo, dividindo este poderio com militares em vários cargos do primeiro e segundo escalões. Logo no primeiro bloco de nomeações ministeriais, a pastora Damares Alves, inicialmente da Igreja do Evangelho Quadrangular, e, depois, da Igreja Batista da Lagoinha, ganhou a direção do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Casa Civil foi ocupado pelo luterano, da Igreja Evangélica Luterana no Brasil, Onyx Lorenzoni, e o Ministério do Turismo era conduzido pelo membro da Igreja Maranata Marcelo Álvaro Antônio. O ministro da Advocacia Geral da União era o pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil André Luiz Mendonça e o ministro-chefe da Secretaria de Governo era o general Luiz Eduardo Ramos, membro da Igreja Batista. Eram cinco evangélicos nomeados para o primeiro escalão do governo federal, com a ocupação de ministérios importantes como Casa Civil, Secretaria de Governo e o ideológico Ministério de Direitos Humanos que passa a incluir o tema da Família.

A relevância dessas nomeações se reafirma quando observamos que, mesmo com pressões políticas e instabilidades após dois anos de governo, quase todas estas peças foram mantidas. No início de 2021, apenas uma havia sido descartada: Marcelo Álvaro Antonio, indicado na Polícia Federal sob acusações de corrupção nas eleições. Damares Alves permanece no posto; a Casa Civil passou a ser ocupada pelo general Ramos; Onyx Lorenzoni, que já havia sido deslocado para o Ministério da Cidadania, assumiu a Secretaria Geral da Presidência, que era de Ramos. André Mendonça, fez uma “bate-volta” no Ministério da Justiça, em 2020, tendo retornado à AGU. Em contrapartida, outras duas foram adicionadas. As novidades foram a ocupação do Ministério da Educação pelo pastor presbiteriano Milton Ribeiro e a criação do Ministério das Comunicações, concedido ao deputado federal Fábio Faria, da Igreja Batista. 

Composição ideológica

A estratégia de Bolsonaro de incluir boa parte da diversidade evangélica nesses cargos foi bem traçada, revelando sua habilidade no trato com o segmento religioso. Não é por acaso que não há um pentecostal sequer entre os ministros de Estado, já que já têm presença garantida no poder Legislativo. Para a composição ideológica do Executivo, o governo articulou aliança com o segmento evangélico histórico, batista, presbiteriano e luterano. Este grupo, historicamente, exerce influência na vida nacional, é proprietário de escolas e universidades, e tradicionalmente promove projetos de ação social, tendo ocupado, no passado recente, por exemplo, posições no Conselho Nacional de Educação e em instâncias jurídicas. 

É possível dizer, inclusive, que incidir na vida pública do país  já era a ideologia dos missionários batistas, presbiterianos, metodistas, luteranos que chegaram ao Brasil no século 19. Tratava-se, no entanto, de uma influência parcial, restrita a uma parte pequena da população brasileira e  que nunca havia alcançado o poder sonhado. Com Jair Bolsonaro na presidência da República, essa parcialidade foi superada e seu domínio amplamente estendido para a esfera institucional.

A presença desses religiosas nos cargos do primeiro escalão do governo, por sua vez, impulsionou politicamente movimentos como a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE), cuja maior parte de seu corpo diretivo não é pentecostal, além de programas para domar os “sempre rebeldes jovens”, como o The Send, o Projeto Dunamis, apoiados por missões dos Estados Unidos que já atuam por aqui, como Jovens com Uma Missão (JOCUM) e Ethnos 360° (antiga Missão Novas Tribos). Em geral, estes programas com ênfase na juventude promovem missões de evangelização e ações de assistência social mundo afora.

Sobre a ANAJURE, Ana Carolina Evangelista e Lívia Reis, em abril de 2021, avaliaram que a associação:

“… tem alçado vôos altos no âmbito de seu projeto de defesa incondicional dos valores cristãos, seja atuando internamente em órgãos do Poder Judiciário, realizando articulação política ou ocupando assentos em órgãos internacionais. A associação sabatinou, por exemplo, os três candidatos à chefia da Defensoria Pública da União e recomendou o segundo da lista tríplice, um candidato anti-aborto que foi prontamente acatado por Bolsonaro. André Mendonça, o até então ministro da Justiça e da Segurança Pública, pastor presbiteriano, assumiu a chefia da Advocacia Geral da União também com apoio da associação”.

projetos como o The Send e o Dunamis receberam apoio do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e contaram com a presença da ministra Damares Alves e do próprio presidente Jair Bolsonaro em eventos em estádios de futebol no início de 2020.  Já as missões JOCUM e Ethnos 360° têm realizado ações entre povos indígenas facilitadas pela FUNAI, inclusive tendo um de seus missionários nomeado para cargo no órgão em 2020

Ronilso Pacheco, em artigo para o Intercept Brasil em fevereiro de 2020, considerou que o grupo evangélico de matriz calvinista que ocupa majoritariamente o Poder Executivo tem seu foco no campo cultural.  Em suas palavras, o grupo :

“manifesta, de maneira quase unânime, seu interesse no campo da cultura, dos direitos humanos e da educação. Não disputaram ministérios mais cobiçados como economia, saúde, justiça nem órgãos e autarquias como BNDES, Caixa Econômica, Petrobras ou Correios. Seu alvo é onde os valores morais são disputados. E é assim que eles estão pautando a esfera pública do país, ferindo a laicidade do estado e sendo raramente percebidos, enquanto os olhos estão voltados para a força dos pentecostais”.

Este artigo, portanto, chama atenção para dois pontos. Primeiro, que cargos importantes do primeiro escalão do governo estão sendo ocupados por setores religiosos conservadores e que nenhum deles pertence a igrejas pentecostais ou é ligado diretamente a lideranças evangélicas mais midiáticas, como Silas Malafaia ou Edir Macedo. Segundo, que parcela significativa dos evangélicos conservadores conseguiu, com o governo Bolsonaro, pautar e atuar de forma contundente nas políticas públicas estatais. Tal fato fica ainda mais evidente com a composição do segundo escalão do Executivo em ministérios estratégicos, o que será avaliado na segunda parte desta reflexão.

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Colaboradora do ISER.

Foto: Alan Santos/Presidência da República

Referências

Ana Carolina Evangelista e Lívia Reis, Neoconservadorismo, família, moral e religião nos primeiros anos do governo Bolsonaro. Plataforma Heinrich-Böll-Stiftung Rio de Janeiro, Brasil, 10 abr 2021.

BBC Brasil, 31 jan 2020.

Christina Vital da Cunha, A abertura de templos religiosos e a posição de juristas evangélicos: Anajure 2020 e 2021. ISER: Plataforma Religião e Poder, 16 abr 2021.

João Luiz Moura, As miragens de uma teocracia: o ministro terrivelmente evangélico e seus reflexos para a democracia. ISER: Plataforma Religião e Poder, 13 jul 2021.

O Globo, 04 out 2019

Ronilso Pacheco. Quem são os evangélicos calvinistas que avançam silenciosamente no governo Bolsonaro. Intercept Brasil, 4 fev 2020.