Você sabia que o estado gaúcho é o que mais concentra afrorreligiosos no país? 

Em agosto de 2021, publicamos na Plataforma Religião e Poder um conjunto de análises com base no Censo de 2010 e no Instituto Datafolha, que, em 2019, atualizou as informações do último recenseamento. Neste texto, inauguramos uma série de artigos que destacam alguns dos elementos mais interessantes encontrados nesses dados. Aqui buscamos explicar um fenômeno curioso: a presença majoritária de afrorreligiosos no Rio Grande do Sul, superando os números deste grupo religioso em estados como a Bahia e o Rio de Janeiro.

Por que o Rio Grande do Sul, que tem o segundo menor percentual de população negra do país e uma forte influência das imigrações europeias, é o estado com o maior número de pertencentes a religiões de matriz africana do país? Em território gaúcho, os habitantes autodeclarados pretos e pardos constituem cerca de 16% da população total do estado, segundo o Censo de 2010. Também na região dos pampas, os afrorreligiosos somam 1,48%. Na Bahia, onde há predominância massiva de pretos e pardos na população (76,5%), os pertencentes às religiões de matriz africana formam apenas 0,34% dos religiosos do estado. Não há, portanto, uma relação direta entre a maioria demográfica negra e a prática afrorreligiosa.

Segundo o antropólogo Norton Correa (2007), existem cerca de 30 mil terreiros em todo o Rio Grande do Sul, com maior concentração no município de Porto Alegre. O também antropólogo Ari Pedro Oro (2012), exibe dados do Censo do IBGE de 2000, em artigo, e mostra que desde essa época o estado já liderava, no país, a proporção de autodeclarantes pertencentes a essas religiões. Afrorreligiosos representavam 1,62% da população gaúcha, enquanto o Rio de Janeiro tinha 1,31% deste grupo e a Bahia, apenas 0,08% de habitantes  assim  autodeclarados. No Censo de 2010, eram 1,48% do Rio Grande do Sul, 0,89% do Rio de Janeiro e 0,34% da Bahia, o que mostra declínio nos dois primeiros estados e um aumento na Bahia. A média nacional, em 2000, era de 0,3% da população, já em 2010, representavam 2% de todo o país. 

Entretanto, há uma controvérsia envolvendo essa questão: para Ricardo Prandi (2003), muitos seguidores de religiões afro-brasileiras se declaram católicos, o que de certa forma mascara os números verdadeiros. Oro também defende em estudo que eles são maiores.

De qualquer forma, o que explica esses números, maiores no Sul do país quando comparados a outros estados? Vários são os motivos explicitados por Oro. Em primeiro lugar, há uma “aceitação da alteridade religiosa” no Rio Grande do Sul (ORO, 2012) , dado que há uma grande diversidade cultural entre os povos que formaram originalmente e compõem atualmente o estado, o que viabiliza uma convivência religiosa um pouco mais harmoniosa. Embora não seja totalmente pacífica, esta relação baseada numa certa valorização da diversidade foi, no Rio Grande do Sul, anterior às outras partes do país. Isso se deve, principalmente, ao luteranismo (vertente cristã evangélica), admitido na região em 1824, cuja doutrina deu  espaço para que indivíduos de outras religiões também se manifestassem livremente

O segundo motivo para Oro é que há uma tradição dos indivíduos afirmarem socialmente as suas opções, entendendo que elas geram identidades tanto políticas, quanto religiosas ou ideológicas. Isto gera tensões na sociedade, mas também faz com que os indivíduos expressem sua identidade. 

O terceiro motivo para o autor é que, no estado gaúcho, as religiões afro-brasileiras são menos estigmatizadas, quando comparado a outros lugares. Isto favorece a livre manifestação de todos os credos. Um fato que contribuiu para a legitimação dessas religiões no cenário social, até certo ponto, foi a adesão de indivíduos de origem étnica distinta, como os brancos, que atuam não só como simpatizantes ou membros, mas também como líderes religiosos. Este elemento fez com que os estigmas relativos à religião diminuíssem, permitindo assim que seus membros, nas palavras de Oro, tendam “menos a se esconder atrás do sincretismo católico e mais a expressarem socialmente este seu pertencimento religioso”. 

Dessa forma, entende-se que, não necessariamente, o Rio Grande do Sul apresenta a maior concentração de pertencentes às religiões afro-brasileiras, mas sim, há maior liberdade entre sua população para afirmar seus credos, independentemente de qual seja, com menor possibilidade de sofrer estigmas ou ser alvo de preconceito.

Matheus Pestana é cientista político, doutorando em Ciência Política (UERJ) e pesquisador no ISER. 

Gabrielle Abreu é historiadora, mestra em História Comparada (UFRJ) e pesquisadora no ISER.

Foto: Reprodução.

Referências

CORREA, Norton. O batuque gaúcho. História Viva. Cultos Afro, v. 12, n. 3. . p. 56-57, 2007.

PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas, v. 3, n. 1, p. 15-34, jun. 2003. Disponível aqui.

ORO, Ari Pedro. O atual campo afro-religioso gaúcho. Civitas, vol. 2, n. 3,  p. 556-565, set-dez 2012. Disponível aqui.