Teologia queer, cristianismo(s) e pessoas LGBTQIAPN+
Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 25 abr 2025.
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Por Ana Ester
- 05 maio 2025
- 8 min de leitura

Os Estudos Queer têm impactado as produções das Ciências Humanas de maneira pungente nos últimos 40 anos. Com a teologia cristã não é diferente. As tensões entre a polissemia queer e o cristianismo hegemônico levaram à produção de outras possibilidades teológicas nas quais hermenêuticas tradicionais foram revistas – e subvertidas – pela inserção de corpos sexualizados e generificados no contexto das interpretações bíblicas. Nesse sentido, busca-se, com esse breve glossário, apresentar verbetes fundamentais para as discussões sobre a vivência de pessoas LGBTQIAPN+ no cristianismo.
Verbetes:
1 Cristianismo(s)
Uma das primeiras coisas que se deve tomar em consideração quando pensamos na relação entre pessoas LGBTQIAPN+ e cristianismo é que, na verdade, é impossível afirmar que exista um só cristianismo. O que temos são cristianismos. A pluralidade da vivência e da experiência cristã ultrapassa os limites da tradição e dos dogmas. Essa afirmação é fundamental para a compreensão de um campo religioso cristão que é marcadamente contextual. Todavia, sabe-se que existe uma forma de experiência cristã que se traduz como tradicional e hegemônica e que, historicamente, tem condenado pessoas LGBTQIAPN+ por causa do “pecado da homossexualidade e da transexualidade”. Essa experiência de exclusão faz parte das necro-estratégias do fundamentalismo religioso, e seus impactos vão desde os discursos de ódio e a violência até ao suicídio de pessoas LGBTQIAPN+.
2 LGBTQIAPN+
Muitas pessoas se assustam com o tamanho que a sigla tem tomado. De GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) a LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros), a sigla LGBTQIAPN+ fala de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, queers, intersexos, assexuais, pansexuais e pessoas não binárias. Entretanto, mais do que memorizar a sigla o que é importante é compreendê-la como uma alternativa sociopolítica aos binarismos homem/mulher, heterossexual/homossexual, cisgênero/transgênero. A sigla aponta experiências sexuais e de gênero consideradas como dissidentes da norma cis/heterossexual. É importante ressaltar o sinal de adição ao final da sigla (+), pois ele remete às inúmeras identidades sexuais e de gênero que não se encaixam nas outras definições.
3 Queer
O termo queer é de origem anglófona e significa, literalmente, “estranho”. Em espanhol, costuma ser traduzido como “torcido”. Em português, apesar de ser um termo que possa ser traduzido, na maioria das vezes ele é encontrado em sua forma em inglês, queer. Entretanto, existem alguns esforços de transliterar o termo, usando, ao invés de queer, o “cuir”, por exemplo. Algumas outras palavras podem ser encontradas com o mesmo significado de queer, como ambíguo e transviado. Durante décadas, o termo queer, em países de língua inglesa, foi usado como um termo pejorativo em relação às pessoas LGBTQIAPN+. Entretanto, aquilo que outrora fora usado como um xingamento passou, principalmente a partir da década de 1980, nos EUA, com o Movimento Queer Nation, a ser usado como uma autodeclaração de pessoas LGBTQIAPN+. A frase que marca esse movimento de reapropriação do termo dizia: “We’re here, we’re queer, get use to it” (em uma tradução livre: “Estamos aqui e somos queer. Acostumem-se com isso”).
4 Estudos Queer
A Teoria Queer ou Estudos Queer surgiram nos Estados Unidos, no início da década de 1990, como uma vertente teórica que já possuía um movimento acadêmico-político e científico que, desde as décadas de 1960 e 1970, se constituiu nos mais diversos países e contextos, sendo influenciada pelos Estudos culturais, os Estudos gays e lésbicos e os Estudos pós-estruturalistas. Fundamental para a epistemologia proposta pelos Estudos Queer é o uso do gênero como categoria de análise. A questão de gênero é uma questão de fronteira. Considerá-la dentro do ambiente das Ciências Humanas faz-se necessário, pois, as discussões sobre a sexualidade colocam em discussão os binarismos que fundam o estatuto epistemológico no qual o conhecimento foi estabelecido. Importa ressaltar que o queer, enquanto ferramenta epistemológica, objetiva a crítica e o questionamento da fixidez das identidades sexuais e de gênero, não se afirmando como mais uma identidade, mas sim subvertendo ideias baseadas em máximas biologizantes e religiosas.
5 Teologia Queer
Um dos principais aspectos para se pensar em uma Teologia Queer, a partir do contexto brasileiro, é a compreensão de que a Teologia Queer aqui não é somente um resultado dos imbricamentos entre os Estudos Queer e da teologia. É preciso que se tome em consideração as perspectivas teológicas libertárias que já estavam em andamento na América Latina. Entretanto, a Teologia Queer, diferentemente de outras tradições interpretativas libertárias – que tratam de questões econômicas, políticas, mas não da emergência de outros grupos minorizados – lembra da luta pela cidadania religiosa de dissidentes sexuais e de gênero na construção da história do Sagrado com base em suas experiências, o que resulta em uma nova compreensão religiosa. Por isso, é possível afirmar que a Teologia Queer, no contexto brasileiro, surge a partir dos imbricamentos dos Estudos Queer, com a militância LGBTQIAPN+ e com a teologia, e, também, com as bases teóricas da Teologia da Libertação e da Teologia Feminista.
A moral sexual queer não fragmenta a compreensão integral do ser humano, compreendendo-o como um ser de desejos. Assim, a religião é pensada a partir de relações de complementariedade nas quais o desejo não é subjugado, mas celebrado e incentivado. A tradicional moral cristã, voltada para as práticas e os costumes, é subvertida ao repensar quais práticas e quais costumes violariam a condição da existência humana, negando suas individualidades, seus desejos e suas vontades.
6 Textos de Terror
Uma das formas práticas com as quais a Teologia Queer atua é na releitura e interpretação dos “textos de terror” a partir de uma “hermenêutica inclusiva”, ou seja, um método interpretativo que leve em consideração não somente o contexto dos textos bíblicos, como também a experiência sexual e de gênero das pessoas leitoras. Esses são os textos bíblicos tradicionalmente usados contra as pessoas LGBTQIAPN+.
Gênesis 19 – A narrativa de Sodoma e Gomorra;
Judas vs. 7 – “De modo semelhante, Sodoma e Gomorra e as cidades vizinhas, por terem se prostituído, procurando unir-se a seres de natureza diferente, foram postas como exemplo, ficando sujeitas ao castigo de fogo eterno”;
Levítico 18, 22 – “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação”;
Levítico 20, 13 – “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometerão abominação; deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles”;
Romanos 1, 26-27 – “Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração”;
1 Coríntios 6, 9-10 – “Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas de costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus”.
7 Igrejas inclusivas
As teologias que propõem um novo olhar sobre as questões referentes ao gênero e à sexualidade trouxeram novas proposições que possibilitaram que um conjunto de valores tradicionais fosse analisado e, em alguns casos, reelaborado. No que tange à sexualidade, essas problematizações teológicas levantaram questões que se desdobraram na constituição de novas ordenações institucionais, como é o caso das igrejas inclusivas. Igreja inclusiva é uma terminologia que vem sendo utilizada nas últimas décadas para nomear as igrejas que já foram conhecidas como “igrejas gays”. Essas novas proposições denominacionais protagonizaram rupturas que possibilitaram a constituição de novos movimentos cristãos, formando um cenário religioso moderno inusitado e complexo. O que se percebe no campo religioso cristão brasileiro é que igrejas inclusivas não são somente aquelas comumente conhecidas como “igrejas gays” ou “igrejas só de gays”, pois, muitas igrejas consideradas progressistas, mas que não foram fundadas por pessoas LGBTQIAPN+ se encontram nesse formato no qual acolhem dissidentes sexuais e de gênero.
Bibliografia:
ESTER, Ana. Dezmandamentos: teologia lésbico-queer-feminista. Rio de Janeiro, RJ: Metanoia, 2023.
LIMA, Luís Corrêa. Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 2021.
MUSSKOPF, André Sidnei. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma Teologia Queer no Brasil. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2012.
SERRA, Cris. Viemos pra comungar: os grupos de católicos LGBT brasileiros e suas estratégias de permanência na Igreja. Rio de Janeiro, RJ: Metanoia, 2019.
WILSON, Nancy. Nossa tribo: Gays, Deus, Jesus e a Bíblia. Rio de Janeiro: Metanoia, 2012.
Como citar
ESTER, Ana. "Teologia queer, cristianismo(s) e pessoas LGBTQIAPN+". Disponível em: . Acesso em: .