Mapeando os terreiros gaúchos
Foto: Roberta Guimarães. Reprodução: Internet

Por Erico Carvalho
- 06 maio 2025
- 10 min de leitura

Um olhar sobre os censos e mapeamentos de casas de religiões de matrizes africanas no Rio Grande do Sul
A presença afrorreligiosa no Estado do Rio Grande do Sul é notória, apesar da invisibilidade imposta pelo discurso oficial acerca da identidade gaúcha. Esta concepção privilegia a contribuição da população europeia e minoriza a presença negra e indígena, os povos de terreiro resistem e buscam formas de combater o racismo religioso. Na busca de romper com esta invisibilidade, nas últimas duas décadas foram realizadas diversas campanhas de divulgação e valorização. Dentre elas, a realização de quatro processos de recenseamento realizados pelo pela Prefeitura de Porto Alegre, o governo federal e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por demanda das entidades representativas do campo religioso local.
Em 2008 foi divulgado o resultado do Primeiro Censo de Casas de Religião de Porto Alegre, realizado pelo Gabinete de Políticas Públicas para o Povo Negro da Prefeitura de Porto Alegre, orgão hoje extinto. Este processo revelou a existência de nada mais nada menos do que 1.290 terreiros na capital gaúcha. Este número desestabiliza a pretensa auto imagem da herança europeia no sul do Brasil e demonstra a força da cultura afrodescendente no estado. O dado também impressiona, pois ficou muito próximo do resultado alcançado em Salvador/BA de 1.296 terreiros, esta reconhecida como a cidade com maior presença pública dos cultos de matrizes africanas (Santos, 2008).
Este censo, não apenas demarcou a presença afrorreligiosa na região como também materializou o complexo religioso afro-gaúcho, conhecido por ser composto por três formas de culto: o batuque, a umbanda e a quimbanda (também conhecida como linha-cruzada). O levantamento revela também a complexa relação entre estas três modalidades e as diferentes tradições religiosas as quais estão vinculadas, conhecidas como lados ou nações: Jêje-Ijexá, Cabinda, Jêje, Oyó, Nagô e Ijexá. Aqui estão incluídos os diferentes regimes de relações entre as diferentes modalidades de culto que ocorrem em, ao menos, 25% dos terreiros mapeados, principalmente naqueles pertencentes às nações Jêje-Ijexá e Cabinda.
O número de terreiros também condiz com os resultados do Censo de 2010, que aponta a existência no Rio Grande do Sul de mais de 157 mil pessoas autodeclaradas afrorreligiosas, o que representa 1,47% da população do estado. Em Porto Alegre este número chega a 2,52% da população e se considerarmos a região metropolitana da capital este número sobe para 3,35%. Isto faz do Rio Grande do Sul o estado com maior autodeclaração deste segmento em todo país, superando estados reconhecidos como berço da cultura afro-brasileira como Rio de Janeiro com 0,89% e Bahia com 0,34%.
Os motivos para tal autodeclaração são múltiplos. Ari Pedro Oro (2012) defende que o contato com diversidade religiosa trazida pelo luteranismo, implantado pelos imigrantes alemães, e as próprias características políticas do estado, onde haveria maior tendência ao posicionamento político, seriam a chave para o fenômeno. Porém devemos considerar que o fenômeno de autodeclaração afrorreligiosa no Rio Grande do Sul poderia estar diretamente ligado à resistência à invisibilidade propagada pela metanarrativa de um estado branco e europeu. Isto ocorreria ao contrário de outros estados brasileiros, onde a presença negra está integrada à imagem cultural, como no caso da Bahia e do Rio de Janeiro. Por outro lado, Reginaldo Prandi (2003) adverte que o número nestes dois estados poderia estar sofrendo um processo de subdeclaração.
Paralelamente ao Censo de 2010, um segundo recenseamento, intitulado Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiros (2011), foi realizado por iniciativa da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR) do governo federal. A pesquisa teve foco nas condições materiais dos terreiros, como saneamento básico e segurança alimentar, abrangendo quatro capitais brasileiras (Belém, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre) e suas respectivas áreas metropolitanas. No total, foram mapeados 4.045 terreiros nas quatro capitais.
Dessa vez, em Porto Alegre, a pesquisa foi realizada em parceria com instituições representativas do campo afro-gaúcho, que compuseram cerca da metade da equipe. Nesse processo o número de casas contabilizadas foi relativamente menor, com 1.342 na capital e sua área metropolitana, embora tenha sido a mais numerosa entre as quatro capitais e tenham sido considerados apenas os terreiros cujas equipes foram recebidas.
Um terceiro processo foi realizado em 2020 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Mapeamento das Casas de Religião de Matriz Africana no Rio Grande do Sul – Modulo I (2024), que teve como foco as políticas de tombamento e salvaguarda de terreiros como patrimônio nacional. Este foi o motivo pelo qual a pesquisa, também realizada na cidade de Pelotas, no sul do estado, considerou apenas uma amostragem dos terreiros mais antigos em cada cidade. Nesse caso específico o mapeamento foi motivado pelo ação de despejo do Centro de Umbanda Ogum Lanceiro e Iemanjá/Fraternidade Oxalá e Oxum, que afinal não se concretizou. Porém, foi levantada a necessidade, para muitas lideranças, de salvaguardar seus espaços através de instrumentos legais, neste caso, um parecer técnico do IPHAN.
Talvez um dos dados mais relevantes, que surge a partir de um olhar atento e aprofundado sobre os diferentes processos de recenseamento, seja a fragilidade dos territórios frente ao avanço desenvolvimentista da malha urbana. Podemos tomar como exemplo o fato de que uma revisão dos dados do Censo de 2008, realizada em 2023, revela que quase 20% dos terreiros mapeados neste momento, já não existem mais. O dado mais preocupante é o fato de a metade deste número, cerca de 129 terreiros, corresponder a terreiros removidos por processos de urbanização como as obras de infraestrutura ocorridas por ocasião da Copa do Mundo de 2014, a ampliação da malha urbana ou a especulação imobiliária decorrente.
A fragilidade dos terreiros ficou mais evidente na recente inundação que assolou o Rio Grande do Sul, em 2024, e cobriu com mais de três metros de água diversas regiões da capital gaúcha e sua área metropolitana. O Mapeamento emergencial dos terreiros atingidos pela inundação de maio/2024, realizado por pesquisadoras da UFRGS, em parceria com o Conselho de Povos de Terreiros do Rio Grande do Sul, revelou que, no estado, ao menos 430 casas de religião foram atingidas diretamente pelas águas, sofrendo destruição total ou parcial. Em Porto Alegre, ao menos 99 terreiros foram atingidos diretamente pela inundação, bem como outros 264 de sua Região Metropolitana (Pires et al, 2024).
É uma tragédia em perdas materiais e espirituais, uma vez que se deve considerar que a inundação de um terreiro, assim como sua remoção forçada não significa apenas a perda do território mas também uma violenta ruptura dos processos e relações estabelecidos com o espaço que constituem a sociabilidade destas comunidades.
Neste sentido, algumas questões atravessam os quatro processos de recenseamento e interpelam as lógicas inventariais do estado: O que é uma casa de religião de matrizes africanas? Qual sua importância para a comunidade? Quais são os seus limites? O senso comum limita-se a definir uma casa ou terreiro dentro dos parâmetros legais de uma propriedade privada. Porém esta definição, de cunho legal-patrimonialista, contraria as lógicas relacionais da vida religiosa destas comunidades.
Durante os processos de constituição de um terreiro são realizados diversos ritos com o objetivo de fortalecer a relação entre o espaço e os membros do coletivo que ocupam este lugar. Isto inclui os membros do terreiro, seus ancestrais e as entidades que o habitam.
Talvez os mais publicamente conhecidos e reconhecidos sejam os assentamentos do orixá Bará e outros orixás associados a este, que se encontram na entrada da maioria dos terreiros. Eles são identificados pelas pequenas casas, em geral pintadas de vermelho. Porém, também são realizadas cerimônias e entrega de preparados, popularmente chamados oferendas ou trabalhos, em outras áreas como encruzilhadas, matas, pedreiras, praias e cursos de água (Dorneles; Anjos, 2021). Isto faz com que a territorialidade destes espaços sagrados se expanda para além dos seus limites legais e ocupe transitoriamente outras áreas que em geral não foram atingidas pela urbanização.
Garantir o uso destas áreas faz parte dos processos de garantia de sua liberdade de culto. De fato, a relação da comunidade religiosa com o espaço é tão forte, que mesmo após as inundações apenas 24% das lideranças dos terreiros atingidos tem intenção de reconstruir seus espaços de culto em outro local (Pires, et al, 2024). Neste sentido, um processo constante de visibilização destes espaços religiosos, de sua história e das violências sofridas pelos constantes ataques constitui uma das estratégias mais eficientes para garantir essa liberdade.
No ano de 2023, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou Lei nº 13.701, proposta pelo vereador Cláudio Janta (mandato coletivo do Solidariedade), que institui o Programa Censo de Inclusão das Religiões de Matriz Africana no Município de Porto Alegre. O programa busca realizar o recenseamento das comunidades afrorreligiosas no município, como forma de visibilizar e fomentar políticas públicas. Porém, passados dois anos, os recursos para tal projeto ainda não foram liberados.
Paralelamente outros processos estão em fase de planejamento ou estão sendo realizados de forma localizada, como é o caso do projeto Alvorecer em Terreiros (2024), que mapeou e fez o registro fotográfico dos terreiros de Alvorada, município da área metropolitana de Porto Alegre. Espera-se, com iniciativas como estas nos níveis municipal, estadual e federal, fomentar o conhecimento sobre as religiões de matrizes africanas e o respeito na sociedade brasileira.
Referências
DORNELES, Dandara Rodrigues; ANJOS, José Carlos Gomes. Oferendas? Preparos e composições afro-religiosas em dois mundos. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, v. 20, p. 130-141, 2021.
ORO, Ari Pedro. O atual campo afro-religioso gaúcho. In: Revista Civitas. Vol. 12 n. 3, Porto Alegre. P. 556-565, 2012.
PIRES, Cláudia Luíza Zeferino; FURTADO, Tanara Fortes; Tanara Forte Furtado; VALCAREGGI, Antonele Crestani; Marília Cardoso LOPES; PEREIRA, Mileny Gomes ; SANTOS, Rafael Barboza dos. Mapeamento emergencial dos terreiros atingidos pela inundação de maio/2024. NEGA/UFRGS, UNIAFRO/UFRGS, Porto Alegre, 2024.
PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. In: Civitas, Porto Alegre: PUCRS, v. 3, n. 1, p. 15-34, jun. 2003.
SANTOS, Jocélio Teles (Coord.). Mapeamento dos Terreiros de Salvador. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais – UFBA; Prefeitura de Salvador; Fundação Cultural Palmares; Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2008.
Como citar
CARVALHO, Erico. "Mapeando os terreiros gaúchos ". Disponível em: . Acesso em: .
Conteúdos relacionados

Teologia queer, cristianismo(s) e pessoas LGBTQIAPN+

O que é e como funciona um conclave?

Nem conservadora, nem progressista, novo papa encontrará igreja reformista e tradicional

Um olhar evangélico “raiz” sobre o Papa-Pastor que viveu sua Páscoa
Conteúdos relacionados

Teologia queer, cristianismo(s) e pessoas LGBTQIAPN+

O que é e como funciona um conclave?

Nem conservadora, nem progressista, novo papa encontrará igreja reformista e tradicional
