O que é Estado Laico? Por que é importante garantir a laicidade do Estado? O Estado Laico é neutro? O Estado laico proíbe as religiões? Como a laicidade do estado ajuda a garantir a liberdade religiosa? O que posso ler para saber mais sobre o tema?

A ideia de Estado Laico costuma gerar polêmicas porque muitas vezes é confundida com a negação das religiões e das religiosidades pelo Estado, o que não passa de uma falsa premissa. No verbete sobre “laicidade” do nosso Glossário, apresentamos o contexto histórico que deu origem ao conceito, e, ainda, suas implicações atuais para a relação entre Estados e igrejas e para a garantia da pluralidade religiosa. Laicidade é um conceito que eventualmente também se confunde com “secularismo”, que será abordado neste espaço  futuramente.

De forma abrangente, podemos dizer que um Estado é laico quando há uma separação oficial entre Estado e religião. Isso significa que não existe uma religião oficial de Estado, que nenhuma religião pode ser beneficiada em detrimento de outras e que a interferência religiosa não é permitida em decisões estatais. Assim, ao invés de divulgar, perseguir ou hostilizar religiões, um Estado laico deve garantir que todas as religiões sejam valorizadas e tenham o direito de existir igualmente.

Além do mais, a laicidade do estado garante que países nos quais predominam maiorias religiosas, como é o caso do Brasil, com o Cristianismo, as minorias sejam reconhecidas e tenham seus direitos garantidos. No entanto, isso não significa que todos os Estados que se definem como laicos sejam iguais e garantam os mesmos direitos. E não significa também que países que tenham como padrão outro tipo de relação entre religião e Estado sejam mais ou menos democráticos do que aqueles que optaram por ter a laicidade do estado como princípio base. 

Nesse sentido, há estados confessionais, como Argentina, Inglaterra, Dinamarca e Arabia Saudita, por exemplo, que adotam uma religião oficial embora ela não tenha poder absoluto. Em geral, questões religiosas são levadas em conta no debate público, mas não influenciam necessariamente as decisões estatais. No caso dos países anteriormente elencados, Cristianismo Católico Romano, Cristianismo Anglicano, Cristianismo Luterano e Islã, respectivamente, são as religiões oficiais de Estado. Contudo, isso não quer dizer que a forma de conduzir essas relações seja igual nesses lugares. Argentina, Inglaterra e Dinamarca, por exemplo, não obrigam que pessoas sejam cristãs, diferentemente do que acontece na Arábia Saudita, que pune quem não aderir à religião oficial do Estado. 

Há também Estados teocráticos, isto é, aqueles diretamente ligados a igrejas ou princípios religiosos, como é o caso do Vaticano – onde o chefe de Estado e o chefe de Igreja são um só, o Papa – e o Irã. Por fim, Estados ateus, que combatem as religiões, muitas vezes por entender que elas seriam um empecilho à racionalidade e ao progresso. Países socialistas do século 20 são exemplos de estados ateus.

Essas terminologias, entretanto, são ilustrativas, não são definitivas e também não dão conta da complicada relação entre religião e Estado. Se, na teoria, um Estado laico parece ser uma escolha óbvia para a construção de uma democracia sólida, na prática as coisas são mais complexas. Isso porque as leis que regem o Estado podem ter múltiplas interpretações – o próprio direito à liberdade religiosa vem sendo alvo dessa disputa, por exemplo, e muitas vezes é mobilizado para justificar diversos tipos de violência contra direitos de minorias. 

Além disso, é importante reforçar a ideia de que a religião que as pessoas vivem não é restrita ao mundo privado, pois não está apenas nas casas ou templos: ela está também nas roupas, na música, na arquitetura, na arte, nos objetos, nas corporeidades, na comida, nos cheiros etc. Além disso, a privatização da religião não é o objetivo de um Estado que se define como laico. A laicidade, portanto, não é inimiga da religião, mas dá ferramentas e garantias para que os diferentes possam coexistir no mesmo lugar. 

O Brasil, por exemplo, é um ótimo caso para entendermos as dificuldades enfrentadas na prática por um país que se define como laico. O Estado brasileiro declarou-se laico pela primeira vez em sua história há apenas 130 anos, pelo Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que instituiu a separação definitiva entre Estado e Igreja Católica Romana, separação reafirmada por nossa Constituição Federal de 1988 em seu art. 19. No entanto, antes disso houve um passado colonial de quase 400 anos de profunda relação entre catolicismo e Estado, cujos reflexos ainda ecoam nas práticas estatais. 

Por ter sido colonizado por Portugal, sempre tivemos por aqui uma relação muito imbricada entre Igreja Católica e Estado nas escolas, nas leis, na cultura. De fato, a herança católica deixou marcas inegáveis na construção de uma identidade nacional no Brasil, mas devemos lembrar que tudo isso foi construído com base em múltiplas violências, sobretudo contra povos escravizados e originários que tiveram sua religiosidade proibida e perseguida e cujos reflexos podem ser percebidos ainda hoje..

O caso da cessão do Acervo Nosso Sagrado ao Museu da República, em 2021, é um significativo exemplo. As mais de 500 peças foram apreendidas pela Polícia Civil quando o Código Penal ainda criminalizava religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, e estavam sob custódia da polícia desde a primeira metade do século 20, isto é, quando o Brasil já era um Estado laico. Apenas na segunda década do século 21, objetos considerados sagrados para parte da população brasileira tiveram seu valor cultural e religioso reconhecidos pelo Estado e encaminhados para um museu onde serão exibidos como patrimônio material. 

Nem mesmo a França, outro Estado laico, escapa das contradições trazidas pela relação entre Estado e religião. Não raramente, vemos emergir naquele país controvérsias acerca do uso de véus por mulheres praticantes do Islã. Trata-se de uma intervenção estatal sobre as escolhas individuais que é justificada, curiosamente, pela laicidade do Estado. Em tese, a França proíbe manifestações religiosas em lugares públicos, mas, para isso, precisa intervir sobre as vestimentas que mulheres islâmicas podem usar, suscitando, assim, acusações de intolerância religiosa. 

Voltando ao Brasil, observamos atualmente a intensa ocupação por religiosos de cargos na política institucional. Embora não seja uma prática de todos, muitos deles se reivindicam representantes de uma maioria cristã que está longe de ser homogênea, e usam espaços institucionais de poder para impor para a minoria não cristã políticas públicas e leis que têm como base moralidades e práticas cristãs de cunho conservador. 

Não se quer dizer, com isso, que religiosos não podem participar da arena pública de debate ou que o Estado se torne menos laico por isso. Trata-se justamente do contrário, de chamar atenção para o fato de que o Brasil é um país plural, constituído por múltiplas vozes divergentes e que toda essa diversidade deve ser valorizada e garantida pelo Estado, inclusive nos espaços institucionais. 

Os exemplos acima apenas demonstram que diferentes lugares tratam de diferentes formas a relação entre Estado e religião, e que, apesar de legalmente prevista, a laicidade do Estado é algo em permanente construção e, consequentemente, também sob permanente ameaça. Por isso, para que os diferentes possam ter sua existência assegurada, é preciso que a laicidade do Estado seja constantemente reforçada e sua efetividade garantida. 

Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.

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