Ações parlamentares para sustar políticas públicas: marca deste fevereiro
Colaboração: Ane Rocha, Késsia Gomes e Lucas Matos
(Equipe de Direitos e Sistema de Justiça do ISER)
Foto: (Marcelo Camargo/Agência Brasil)



Por Magali Cunha, Laryssa Owsiany e Matheus Cavalcanti Pestana
- 24 mar 2025
- 28 min de leitura

Projetos parlamentares apresentados na Câmara dos Deputados são o objeto do monitoramento implementado pela equipe de Religião e Política do ISER, desde 2023. Com o objetivo de entender como os deputados federais se mobilizam em relação à produção legislativa, analisamos os projetos de lei que se enquadram em temas relevantes para o trabalho do ISER, como religião, gênero, direitos humanos, direitos sexuais e reprodutivos, entre outros.
A metodologia abarca, além de Projetos de Lei, também Medidas Provisórias, Projetos de Lei Complementar, Projetos de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo, Projetos de Decreto Legislativo, de Resolução, de Fiscalização e Controle, Medidas Provisórias, Projetos de Lei de Conversão, Propostas de Emenda à Constituição, dentre outros.
Cada um desses tipos legislativos possui uma função específica, e, também, um trâmite distinto. Propostas de Emenda à Constituição, por exemplo, que alteram a redação de dispositivos da Carta Magna brasileira, precisam ser apresentadas com a assinatura de ao menos um terço dos parlamentares da casa proponente (171 deputados federais ou 27 senadores), e precisam ser votadas em dois turnos, com aprovação em ambos de ao menos três quintos da Câmara, o que equivale a 308 deputados federais e 49 senadores.
Para a efetivação deste monitoramento, foi desenvolvida uma plataforma de uso exclusivo interno, que coleta de maneira automatizada dados da Câmara dos Deputados. Esta plataforma pesquisa entre os Projetos de Lei apresentados, identificando aqueles cujos temas são de interesse para as pesquisas do ISER. As 17 categorias centrais definidas a partir dos dados levantados são: 1) Direitos da Mulher; 2) Crimes e Segurança Pública; 3) Causa animal; 4) Ameaça ao Estado Democrático de Direito; 5) Imigração; 6) Educação; 7) Política de drogas; 8) Direitos da Criança e do Adolescente; 9) Regulação de mídias; 10) Família; 11) Direitos dos povos indígenas e Comunidades Tradicionais; 12) Direitos Humanos; 13) Calendários oficiais, patrimonialização e homenagens; 14) Religião, 15) Direitos Sexuais e Reprodutivos, 16) Raça e Racismo e 17) Meio Ambiente e Questões Climáticas.
Para cada uma dessas áreas temáticas, foi elaborado um modelo de inteligência artificial que emprega técnicas de aprendizado de máquina para determinar se um projeto está ou não relacionado a um determinado tema. Deste modo, é possível identificar os Projetos de Lei pertinentes às áreas de interesse do ISER pouco tempo após sua apresentação.
O ano legislativo iniciado em fevereiro de 2025 foi marcado por uma série de ações parlamentares que buscam contrapor e barrar políticas públicas implementadas por órgãos do governo federal. Prática já observada em meses anteriores monitorados nesta Legislatura, iniciada em 2025, a apresentação de Projetos de Decreto Legislativo para Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDLs) é uma ação marcadamente de oposição de parlamentares alinhados à direita e à extrema direita.
O sistema prisional, a segurança pública, imigração e temas conjunturais foram motivadores para a produção de proposições parlamentares que estão no escopo das categorias aqui definidas como temas relevantes para o trabalho do ISER.
PDLs: marca de fevereiro
Como se pode observar em boletins anteriores deste monitoramento, a apresentação de Projetos de Decreto Legislativo para Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDLs) tem sido prática recorrente. Os PDLs não têm a forma de novas leis mas de Decretos Legislativos que regulam as matérias consideradas de competência exclusiva do Poder Legislativo (previstas no Art. 49 da CF), sem a sanção do Presidente da República.
A apresentação frequente, desde 2023, se manifesta como oposição a políticas públicas implementadas ou orientadas pelo governo federal. Boa parte dos PDLs têm sido voltados a sustar resoluções de conselhos de direitos da sociedade civil. De acordo com o monitoramento do ISER, as ações são dirigidas, em especial, a políticas que se relacionam a direitos prisionais, segurança pública, direitos dos povos originários, direitos sexuais, direitos reprodutivos, educação.
Neste fevereiro, a equipe do ISER observa um número muito significativo de PDLs apresentados em três diferentes focos:
1 – Segurança pública: oposição ao disciplinamento do uso da força
Em 24 de dezembro passado, véspera do Natal, o governo federal, por meio do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), publicou o Decreto nº 12.341, de 23 de dezembro de 2024, que regulamenta a Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, para disciplinar o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública. Assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a medida estabelece diretrizes para o uso gradativo de armas para evitar a violência policial em todo o país.
Conforme o decreto, o uso de arma de fogo deve ser feito como medida de “último recurso”. Dessa forma, armas só poderão ser usadas quando outros recursos de “menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos”. O texto também prevê que as ações policiais não deverão discriminar pessoas em razão da cor, raça, etnia, orientação sexual, idioma, religião e opinião política.
Dias depois, em 17 de janeiro, o ministro do MJSP Ricardo Lewandowski assinou duas portarias para detalhar os procedimentos que deverão ser adotados pelos policiais de todo o país. Uma delas estabelece diretrizes para orientar a atuação desses profissionais durante abordagens policiais e a outra cria o Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força. As diretrizes se aplicam aos integrantes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Penal, da Força Nacional e da Força Penal Nacional. O ministro Lewandowski também assinou a portaria que cria o Núcleo Estratégico de Combate ao Crime Organizado.
No imediato retorno das atividades no Congresso Nacional, em fevereiro de 2025, deputados alinhados à direita política, boa parte ligada a Frentes Parlamentares voltadas para a Segurança Pública (conhecidas popularmente como Bancada da Bala), se movimentaram na apresentação de PDLs para sustar o Decreto nº 12.341, de 23 de dezembro de 2024. O conjunto de proposições chama a atenção não apenas pelo amplo número sobre um mesmo tema, mas por fazerem uso de redação muito semelhante:
- O PDL 28/2025, de autoria da deputada cristã Delegada Ione (AVANTE/MG) e do deputado católico Evair Vieira de Melo (PP/ES).
- O PDL 24/2025, cuja autoria coletiva pode ser consultada aqui
- O PDL 23/2025, de autoria do deputado católico Alberto Fraga (PL/DF)
- O PDL 16/2025, de autoria da deputada cristã Julia Zanatta (PL/SC)
- O PDL 15/2025, de autoria do deputado evangélico Junio Amaral (PL/MG)
- O PDL 13/2025, cuja autoria coletiva pode ser consultada aqui
- O PDL 12/2025 de autoria do deputado católico Evair Vieira de Melo (PP/ES)
- O PDL 20/2025, de autoria do deputado evangélico Messias Donato (REPUBLICANOS/ES)
- O PDL 17/2025, de autoria do deputado cristão Rodolfo Nogueira (PL/MS)
- O PDL 5/2025, proposto pelo deputado católico Marcos Pollon (PL/MS) e Delegado Paulo Bilynskyj (PL/SP)
- O PDL 30/2025, de autoria do deputado evangélico Capitão Alberto Neto (PL/AM)
- O PDL 11/2025, de autoria do deputado católico Marcos Pollon (PL/MS)
- O PDL 8/2025, de autoria dos deputados católicos Marcos Pollon (PL-MS) e Evair Vieira de Melo (PP/ES)
- E por fim, o PDL 18/2025, de autoria do deputado cristão Rodolfo Nogueira (PL/MS), que susta a Portaria nº 856 de 2025 do Ministério da Justiça e Segurança Pública que “Institui o Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força – CNMUDF”.
Na avaliação da equipe de Direitos e Sistema de Justiça do ISER, esta estratégia de apresentação de um volume significativo de projetos contra o disciplinamento do uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública representa a resistência desses setores políticos em aceitar mecanismos democráticos mínimos de controle jurídico da atuação das forças de segurança do Brasil. O grupo alerta que os PDLs respondem ao Decreto do governo federal mas, também, à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, conhecida como ADPF das Favelas, que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A ação foi impetrada a partir da mobilização de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que têm funcionado como um instrumento que busca a transformação da política de segurança pautada na violência bélica contra os territórios periféricos e de favela no Rio de Janeiro e em todo o Brasil.
2 – Direitos sexuais e reprodutivos/aborto legal: oposição a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)
Desde dezembro passado, a aprovação de uma resolução pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) tem causado agitação entre parlamentares com identidade religiosa, por conta do tema do aborto.
Aprovada em 23 de dezembro de 2024, a Resolução nº 258 prevê que, em caso de gravidez, a criança ou adolescente vítima de violência sexual deve ser encaminhada para decidir pela interrupção da gestação, mesmo sem a anuência dos pais ou orientações sobre entrega à adoção, O texto indica que nos casos em que a gravidez é resultante de violência sexual ou em que a mãe é menor de 14 anos deve haver dispensa de ação judicial ou registro de boletim de ocorrência para identificação do abusador. Além disso, a resolução não impõe limite do tempo gestacional para o aborto legal.
Já no período de estudos e discussão em torno do tema no Conanda, houve reações da parte de parlamentares de direita com identidade religiosa, que iniciaram uma campanha, baseada em pânico moral e sensacionalismo, contra a iniciativa. O Coletivo Bereia, que enfrenta a desinformação em ambientes digitais religiosos, acompanhou vários casos que foram relatados em matéria, que contribuem com a contextualização que levou a significativa apresentação de Projetos de Decreto Legislativo para Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDLs) sobre o tema, em fevereiro de 2025.
O deputado federal evangélico Messias Donato (Republicanos), publicou em mídias sociais, em 7 de novembro passado, que o Conanda “estuda permitir a realização de aborto em fetos de até nove meses de gestação”. O parlamentar comentou ser “inaceitável que um Conselho Nacional que supostamente defenda a infância venha apregoar o ass@ss1nato de bebês ainda não-nascidos”. Nas publicações, Donato lançou mão da reprodução da chamada de um veículo alinhado à extrema direita sobre o tema.
Em dezembro, em data próxima à publicação da Resolução nº 258, a campanha contra o encaminhamento do Conanda chegou com força a grupos religiosos no WhatsApp, com mensagens que alertavam para que “cidadãos conservadores em relação ao tema do aborto se unam por meio da assinatura de uma petição”. No WhatsApp também circulou um documento em que eram mencionados os contatos dos conselheiros do Conanda, com um apelo para que “cidadãos que se identificam como ‘a favor da vida’ enviem uma mensagem para a lista de e-mail dos conselheiros, a fim de fazerem pressão contra a resolução”.
Naquele final de 2024, o movimento foi assumido pela senadora Damares Alves (PL-DF). Em 24 de dezembro, um dia após a publicação da resolução do Conanda, a parlamentar entrou com representação na Justiça Federal do Distrito Federal para a suspensão da aplicação da norma. O pedido da senadora foi atendido com o argumento de que a votação violou o regimento interno do Conselho. A alegação de Damares Alves baseou-se na afirmação de que o Código Civil “fala da incapacidade civil plena e incapacidade relativa de pessoas até uma certa idade, justamente as crianças e adolescentes, que precisam ser representadas ou assistidas por seus pais e responsáveis para praticarem atos da vida civil”.
Porém, a disputa jurídica se desdobrou. Em 7 de janeiro de 2025, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) autorizou a publicação da resolução no Diário Oficial da União (DOU), em caráter cautelar, com validação provisória até que o mérito fosses julgado pela relatora do caso, a desembargadora federal Rosana Noya Alves Weibel. No dia seguinte, Damares Alves demandou a anulação da decisão do TRF-1 e da resolução do Conanda. No entanto, em 16 de janeiro, a Justiça Federal do DF anulou o processo movido pela senadora, por não haver legitimidade da parlamentar para pleitear a questão. Segundo a sentença da responsável pelo processo, a juíza federal Liviane Kelly Soares Vasconcelos, “a impetrante não integra ou participa a qualquer título do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), de modo que não há interesse jurídico para que a parlamentar questione em juízo os atos do mencionado Conselho”.
O texto da juíza também recorre ao entendimento definido no Supremo Tribunal Federal (STF) de que parlamentares podem questionar atos do Executivo no Judiciário desde que não de forma individual, como feito pela senadora, mas sim de forma coletiva, seja por iniciativa da Casa, seja por iniciativa de suas comissões.
É neste contexto de desinformação com pânico moral e disputa judicial que deputados federais alinhados à direita política, retornaram aos trabalhos na Câmara Federal, em fevereiro de 2025, e imediatamente apresentaram Projetos de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDLs) em oposição à Resolução n° 258 do Conanda. São eles:
- o PDL 3/2025, de autoria coletiva que pode ser consultada aqui;
- o PDL 6/2025, de autoria do deputado católico Marcos Pollon (PL/MS);
- o PDL 48/2025, de autoria coletiva que pode ser consultada aqui;
- o PDL 79/2025 de autoria do deputado de identidade cristã não determinada Delegado Fabio Costa (PP/AL).
A justificativa registrada neste último PDL expressa o tom destas proposições que têm redação muito semelhante, e são apresentadas com diferentes autorias, duas delas com muitas assinaturas, como estratégia de pressão:
“A Resolução nº 258, de 23 de Dezembro de 2024, emitida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), apresenta ilegalidades e inconstitucionalidades que justificam sua sustação por meio deste Projeto de Decreto Legislativo. Inicialmente, a Resolução extrapola os limites legais ao criar novos direitos relacionados à interrupção da gravidez. Tal ampliação ignora os limites impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro e configura uma inovação legislativa, que não cabe a um órgão administrativo como o CONANDA. Além disso, a Resolução propõe a realização de abortos em em crianças e adolescentes sem a necessidade de consentimento ou ciência dos pais ou responsáveis legais, contrariando o direito à autoridade familiar previsto no artigo 229 da Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tal medida desconsidera o dever constitucional da família de proteger e assistir crianças e adolescentes, e ignora a necessidade de envolver responsáveis em decisões que impactam diretamente a saúde e o bem-estar de menores. ”
3 – Direitos dos povos originários: oposição ao poder de polícia para a FUNAI
Como referido na introdução deste item sobre os PDLs, direitos dos povos originários são um dos alvos de ações parlamentares para barrar políticas públicas implementadas pelo governo federal. Neste fevereiro de 2025, na mesma direção dos outros dois temas identificados neste monitoramento, foi apresentado um expressivo volume de PDLs, por deputados alinhados à direita e à extrema direita, com redação semelhante para sustar o Decreto nº 12.373, do Poder Executivo, de 3 de fevereiro de 2025, que regulamenta o exercício do poder de polícia da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) por meio do. O documento reforça a atuação do órgão na promoção e na proteção dos direitos dos povos originários, ao promover maior autonomia na execução de suas atribuições. O poder de polícia da Funai tem como finalidade a prevenção e a dissuasão da violação ou da ameaça de violação a direitos dos povos indígenas; a prevenção e a dissuasão da ocupação ilegal de terceiros em terras indígenas; e a execução do consentimento de polícia, nos casos previstos em lei.
O Decreto ainda permite à Funai, entre outros elementos, em caso de risco iminente aos direitos dos povos originários, interditar ou restringir o acesso de terceiros a “terras indígenas” por prazo determinado; determinar a retirada compulsória; solicitar a colaboração de órgãos e entidades públicas de controle e repressão; e realizar, de forma excepcional, a destruição, inutilização ou destinação de bens utilizados na prática de infração.
A Funai também poderá solicitar aos órgãos de segurança pública, especialmente à Polícia Federal, às Forças Armadas e às forças auxiliares, a cooperação necessária à proteção das comunidades indígenas, da sua integridade física e moral e do seu patrimônio, quando as atividades necessárias a essa proteção forem próprias da competência dos órgãos de segurança pública.
Entre os vários PDLs que buscam sustar o Decreto nº 12.373/2025, estão:
- o PDL 71/2025, de autoria dos deputados evangélicos do PL, Silvia Waiãpi (AP) e Hélio Lopes (RJ);
- o PDL 67/2025, de autoria coletiva que pode ser consultada aqui, todos integrantes das Comissões de Minas e Energia e/ou de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural;
- o PDL 60/2025 de autoria do deputado cristão Carlos Jordy (PL/RJ);
- o PDL 59/2025 de autoria do deputado cristão Rodolfo Nogueira (PL/MS);
- o PDL 57/2025 de autoria do deputado católico Evair Vieira de Melo (PP/ES);
- o PDL 56/2025 de autoria do deputado cristão Lucio Mosquini (MDB/RO), que já assina o PDL 67, de autoria coletiva;
- o PDL 54/2025 de autoria da deputada cristã Daniela Reinehr (PL/SC);
- o PDL 52/2025 de autoria do deputado católico Alceu Moreira (MDB/RS);
- o PDL 51/2025, de autoria do deputado católico Sanderson (PL/RS).
Direitos humanos e sistema prisional: revista vexatória
Em 6 de fevereiro passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 969520, que busca que trata da legalidade da revista íntima para a entrada de visitantes em presídios e da validade das provas eventualmente obtidas por meio desse procedimento. O recurso em análise pelo STF, desde 2020, foi movido pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS) contra decisão do Tribunal de Justiça local (TJ-RS), que absolveu da acusação de tráfico de drogas uma mulher que levava 96 gramas de maconha no corpo para entregar ao irmão, preso no Presídio Central de Porto Alegre (RS). O processo analisa a legitimidade jurídica daquela decisão, no entendimento de que os princípios constitucionais de proteção à dignidade humana e intimidade devem se sobrepor a argumentos genéricos relativos à segurança e ordem pública.
Diante da centralidade do tema, o STF reconheceu repercussão geral para o processo, o que significa que a decisão adotada pela Corte deve ser aplicada em todo o país. Com a retomada do julgamento em fevereiro de 2025, o tema voltou a ser debatido nos espaços midiáticos. Parte dos segmentos da sociedade civil que acompanham o processo, a equipe da área de Direitos e Sistema de Justiça do ISER informa que a decisão foi, novamente, adiada, uma vez que “o ministro Alexandre de Moraes abriu uma divergência, defendendo que a revista íntima não se confundiria com revista vexatória e ilegal e que o que deve ser coibido são eventuais excessos. A divergência, acompanhada pelos ministros Nunes Marques, Dias Toffoli e André Mendonça, fez com que a votação se iniciasse novamente”. A retomada do julgamento está prevista para ser retomada entre 26 e 27 de março de 2025.
Para a equipe de Direitos e Sistema de Justiça do ISER, o que se viu na plenária do dia 6 de fevereiro “preocupou a parcela da sociedade civil comprometida com os Direitos Humanos e a democracia no Brasil. Os argumentos dos ministros que defendem a revista íntima reforçaram as violências produzidas pelo Estado contra familiares de pessoas privadas de liberdade que estão diariamente nas filas de visitas, e são, em sua maioria, mulheres negras e periféricas”. O grupo alerta que “as unidades prisionais de todo país devem incorporar mecanismos de segurança que não perpassem por procedimentos degradantes, que ferem a dignidade humana e a intimidade da pessoa”.
Na trilha desta discussão, o deputado evangélico de confissão anglicana Kim Kataguiri (UNIÃO/SP) protocololu o PL 405/2025, que propõe a manutenção da revista pessoal, incluída a íntima, em estabelecimentos prisionais e assemelhados. Na justificativa, o Kataguiri confirma que o projeto foi elaborado a propósito do julgamento da ARE 959.620 no STF, com sua discordância do voto do ministro relator Edson Fachin, que classificou a revista íntima como “vexatória”, “violadora da dignidade da pessoa humana”. O deputado defende no texto que “em que pese o procedimento de revista íntima ser de fato indesejável, é ele que ainda garante o mínimo de segurança no interior dos presídios, muitos dos quais dominados facções criminosas e cujos membros terão ainda mais acesso a instrumentos ilícitos– como smartphones – caso se entenda pela proibição do instituto”.
Segurança pública: Alterações na Lei Antiterrorismo
Alterações na Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016) estiveram no foco de proposições parlamentares na Câmara Federal neste início de 2025. A maior parte delas foram redigidas por deputados com identidade religiosa e militar alinhados à direita, tendo sido uma originada de deputada da esquerda.
O PL 240/2025, de autoria do deputado de identidades militar e cristã não determinada Sargento Portugal (PODE/RJ), propõe a ampliação do rol de crimes classificados como terrorismo. A proposta altera o artigo 2º da Lei Antiterrorismo para incluir a classificação de terroristas a um ou mais indivíduos que tenham “o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza em favor de organização criminosa, tipificada na Lei 12.850 de 02 de agosto de 2013, ou associação criminosa, tipificada no artigo 288 do Código Penal, ou Milícia, tipificada no artigo 288-A do Código Penal, ou Associação para o Tráfico de Drogas, tipificada no artigo 35 da Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.”
Na justificativa, o deputado alega que “tais criminosos [desconsiderados na lei], que aterrorizam a população com o fim de obter, direta ou indiretamente, vantagens em favor de suas respectivas organizações criminosas (“facções” ou milícias), inclusive atentando contra a vida de cidadãos e policiais, contra o patrimônio público e privado e contra a paz e a incolumidade públicas.” O texto usa como exemplo a reação armada de narcotraficantes a ação policial no Rio de Janeiro, em outubro de 2024, que provocou mortes de pessoas que nada tinham a ver com a operação. Para isso a proposição cita declaração pública do governador do estado do Rio de que “tais criminosos eram verdadeiros terroristas, pois agiram com o nítido desiderato de aterrorizar a população em geral e deslegitimar o Estado e suas forças policiais, desacreditadas pela repercussão negativa da operação.”
Com objetivo similar, o PL 724/2025, de autoria do deputado também de identidades militar e cristã não determina Coronel Meira (PL/PE), dispõe sobre a introdução do crime de narcoterrorismo na mesma lei.
Em outra direção, a deputada de identidade cristã não determinada Duda Salabert (PDT/MG), propôs o PL 58/2025, para tipificar como crime a prática de saudações nazistas e qualquer outro gesto que incite crimes de ódio. Esta proposição emerge no contexto dos debates públicos suscitados por situações ocorridas nos eventos de posse de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos, em janeiro passado, amplamente divulgados nas mídias de notícias. Nesses momentos, pessoas de destaque no entorno de Trump, como o estrategista político Steve Bannon, e nomeadas para postos no governo, como o empresário Elon Musk, foram registrados em fotos e vídeos ao fazerem uso de conhecido gesto de saudação e exaltação do nazismo.
Imigração
As ações de caráter autoritário do recém-empossado presidente dos Estados Unidos Donald Trump, no primeiro mês de mandato, causaram perplexidade e tiveram efeitos em políticas de diversos países latino-americanos, em especial no tocante à deportação em massa de imigrantes indocumentados.
Em fevereiro de 2025, o Brasil havia recebido dois voos com brasileiros deportados. A primeira leva devolvida ao país, com 88 brasileiros, pousou em 24 de janeiro, em Manaus, causando mal-estar diplomático, uma vez que os passageiros viajaram algemados pelas autoridades norte-americanas.Na ocasião, o governo brasileiro determinou a imediata retirada das algemas dos deportados e disponibilizou uma aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) para transportá-los até o destino final. Desde então, o governo federal passou a adotar medidas para garantir acolhimento humanizado de brasileiros repatriados dos Estados Unidos, com o oferecimento de suporte imediato a todos. O segundo voo com deportados chegou a Fortaleza, com 94 pessoas, em 21 de fevereiro.
Tal conjuntura motivou parlamentares de esquerda à apresentação de Projetos de Lei (PLs) que propõem alterações na Lei de Migração (Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017). O PL 194/2025, de autoria coletiva (maioria do PSOL), é instituído o Auxílio Emergencial para Repatriados Forçados, destinado a cidadãos brasileiros deportados ou expulsos de país estrangeiro, com o objetivo de garantir condições mínimas para sua reinserção social e econômica no Brasil. Já o PL 96/2025, da deputada católica Renata Abreu (PODE/SP), institui o Programa Reintegra Brasil para acolhimento e reintegração de brasileiros natos ou naturalizados retornados ao país.
O deputado Defensor Stélio Dener (REPUBLICANOS/RR), cuja identidade religiosa não foi identificada, propôs o PL 560/2025, que busca facilitar a vida de trabalhadores estrangeiros no Brasil. Ele propõe a redução do prazo de naturalização de estrangeiros que vivem no país para trabalhar em empresas internacionais nele instaladas, de quatro para dois anos. O direito seria aplicado “para estrangeiros que, reconhecidamente, frequentem o país há mais de 5 (cinco) anos e que executem prestações de serviços profissionais e comerciais nesse mesmo período.”
Já parlamentares alinhados à direita, propuseram projetos de retirada de direitos ou endurecimento de restrições a imigrantes no Brasil:
- O PL 730/2025, de autoria do deputado de identidade religiosa não identificada Paulinho da Força (SOLIDARIEDADE/SP), tem como objetivo incluir hipóteses de vedação de concessão de visto e impedimento de ingresso no País em caso de atentado contra instituições brasileiras e seus representantes no exercício do poder constituído.
- O PL 238/2025 do deputado espírita Giovani Cherini (PL/RS) busca estabelecer que somente poderá ser autorizada a residência para o imigrante após dois anos da concessão do visto temporário, e dá outras providências.
- O PL 330/2025 do deputado Gilson Marques (NOVO/SC), de identidade religiosa não identificada, que versa sobre a restrição do pagamento de benefícios assistenciais e previdenciários a estrangeiros.
Outros temas conjunturais motivadores de projetos: religião no Carnaval e sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”
Além da conjuntura das consequências da posse de Donald Trump, a repercussão de situações em torno da realização do Carnaval, nos primeiros dias de março; da expectativa da conquista de premiações do Oscar para o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles; da publicação da lei sobre utilização de celulares nas escolas, em janeiro de 2025; e do caso da jovem Joyce Araújo, que, grávida, foi mantida viva com aparelhos em hospital, depois de um aneurisma cerebral, até que o bebê nascesse, são outros temas conjunturais que motivaram a redação de Projetos de Lei, como tem sido observado neste monitoramento, desde 2023.
Alguns projetos refletem o incômodo causado pelo uso de símbolos, temas e figuras religiosas em expressões carnavalescas. São eles o PL 402/2025 de autoria do deputado católico Luiz Lima (PL/RJ), que dispõe sobre a proteção de símbolos e figuras religiosas contra atos de desrespeito, vilipêndio ou degradação pública; o PL 106/2025, do deputado de identidade cristã não determinada Coronel Chrisóstomo (PL/RO), que propõe, de forma semelhante, a proibição do uso de símbolos cristãos em eventos públicos de celebração ou visibilidade LGBTQIA+ e estabelece medidas de respeito à diversidade religiosa e cultural; e o PL 10/2025, cuja autoria coletiva pode ser consultada aqui, dispõe sobre a criminalização de condutas atentatórias contra o Cristianismo e estabelece a reparação por dano moral objetivo à imagem desta religião em caso de ofensa pública às religiões de matriz cristã, e dá outras providências.
Em outra direção, o PL 741/2025, de autoria da deputada Talíria Petrone (PSOL/RJ) cuja identidade religiosa não foi identificada, propõe a inscrição de João Batista, o Malunguinho, principal líder do Quilombo do Catucá, enredo apresentado pela Escola de Samba Unidos do Viradouro, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, é baseado no livro homônimo de autoria de Marcelo Rubens Paiva. A obra traz a memória do desaparecimento do pai, o ex-deputado Rubens Paiva, assassinado após ser levado para depor como suspeito de subversão, pelos órgãos da repressão da ditadura militar, em 1971. O sucesso de público dentro e fora do Brasil e a indicação para premiações no Oscar, mais o prêmio do Globo de Ouro para a atriz Fernanda Torres, por interpretar a esposa Eunice Paiva, gerou uma série de discussões sobre os efeitos da ditadura ainda presentes na vida do país e não devidamente enfrentados.
Além de provocar o Supremo Tribunal Federal (STF) a rever decisões em torno da Lei de Anistia, que acabou perdoando, irrestritamente, os agentes do Estado que perpetraram crimes classificados como lesa-humanidade, como ocultação de cadáver, gerou ações espontâneas do público. Durante o Carnaval, foliões que passavam em frente à casa do general reformado do Exército José Antônio Nogueira Belham, notório torturador de Rubens Paiva, realizaram atos de protesto no local. Além de recuperarem a memória das ações de tortura contra o ex-deputado, as pessoas conectaram o tema com a conjuntura presente, e pronunciaram gritos de “sem anistia”, referindo-se ao processo em tramitação que busca transformar em réu o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), pelo crime de tentativa de golpe de Estado, em 2022-2023.
Este clima social motivou a proposição de PLs na Câmara Federal, como o de nº 127/2025, de autoria da deputada Fernanda Melchionna (PSOL/RS), de identidade religiosa não identificada, que dispõe sobre a suspensão da remuneração e proventos de militares investigados por violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade, praticados durante o período da ditadura militar, até a prolação de decisão definitiva no processo judicial.
Também foi proposto o PL 338/2025, de autoria de Delegada Adriana Accorsi (PT/GO), cuja identidade religiosa não foi identificada, que propõe a obrigatoriedade da exibição do filme “Ainda Estou Aqui” nas escolas de ensino médio da rede pública e privada em todo o território nacional, com atividades pedagógicas complementares.
Como citar
CUNHA, Magali; OWSIANY, Laryssa; PESTANA, Matheus Cavalcanti. "Ações parlamentares para sustar políticas públicas: marca deste fevereiro". Disponível em: . Acesso em: .
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