Julho Atípico: Entre a Soberania Nacional e as Disputas por Direitos no Congresso
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Por Magali Cunha, Carolina Rocha, Laryssa Owsiany e Matheus Cavalcanti Pestana
- 06 ago 2025
- 16 min de leitura

Julho, em anos anteriores do monitoramento de PLs da Câmara Federal pelo ISER, vinha se apresentando como um mês com um número pequeno e mais inexpressivo de proposições por conta do período de recesso parlamentar. Tal recesso é previsto na Constituição do Brasil, art. 57, que define que a sessão legislativa anual é realizada de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro, sendo o recesso parlamentar previsto para os dias compreendidos entre esses dois períodos. Portanto, anualmente,18 a 31 de julho é um dos dois períodos de recesso parlamentar.
Porém, 2025 se apresenta como um ano atípico com a apresentação de PLs em torno duas pautas que que movimentaram a vida política e econômica do Brasil. Uma delas foi a imposição de sanções econômicas pelos Estados Unidos contra o comércio com o país, anunciada em carta do presidente Donald Trump, publicada em 9 de julho na internet. O motivo principal, segundo a carta, é a avaliação do governo dos Estados Unidos de que o processo de julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), no Supremo Tribunal Federal (STF), por tentativa de golpe de estado em 2022-2023, seria injusto e configuraria perseguição.
A outra pauta, com relação com a primeira, foi a adoção de medidas cautelares pelo STF contra Bolsonaro, em 18 de julho, no âmbito da investigação da Procuradoria Geral da República (PGR) sobre as ações de obstrução da Justiça articuladas pelo filho do ex-presidente, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), com relação à aplicação das sanções pelo governo dos Estados Unidos. Indicado pela PGR o risco de fuga do réu e o financiamento das ações do deputado licenciado naquele país contra o processo judicial em curso, a decisão do STF foi pela colocação de tornozeleira eletrônica e imputação de medidas restritivas.
Esta conjuntura influenciou a dinâmica da Câmara Federal em duas frentes: na apresentação de projetos, por deputados federais de esquerda, voltados para o tema da soberania nacional, contra a pressão dos Estados Unidos; na reação em protesto à aplicação das medidas cautelares impostas a Jair Bolsonaro, já no período de recesso parlamentar.
Sanções dos EUA e a defesa da soberania nacional
A divulgação da carta que anunciava a imposição de tarifas de 50% sobre todos os produtos comercializados pelo Brasil para os Estados Unidos pelo governo daquele país agitou o cenário político e econômico do Brasil, com amplos espaços de debate na cena pública. O tema forte, assumido pelo governo federal e seus apoiadores no Congresso Nacional, foi o da defesa da soberania nacional. O argumento, que ganhou força com campanhas em mídias sociais e manifestações públicas da sociedade civil, somadas à ações de comunicação do governo federal, que incluíram um pronunciamento do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, é de que o governo dos Estados Unidos estaria impondo uma chantagem, fazendo uso das relações comerciais entre os dois países, para interferir, indevidamente, em um caso judicial que diz respeito à soberania do Brasil.
Esta pauta foi objeto de dois PLs de parlamentares de esquerda na Câmara Federal. O PL 3559/2025, de autoria do deputado evangélico Pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ), visa alterar a Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que reformulou o Código Penal brasileiro, acrescentando o Título XII, intitulado “Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, com a definição de novos crimes, e a revogação da antiga Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983). Neste PL apresentado em julho de 2025, Henrique Vieira propõe acrescentar parágrafos para dispor sobre crimes contra a soberania nacional que representam uma ameaça ao Estado Democrático de Direito.
Já o PL 3387/2025, foi apresentado pela deputada Fernanda Melchionna (PSOL/RS), cuja identidade religiosa não foi identificada, e tem como objetivo é ampliar o escopo das contramedidas autorizadas em resposta a ações unilaterais de países ou blocos econômicos que comprometam a competitividade internacional, a soberania econômica ou a autonomia tecnológica do Brasil.
Recesso Branco em discussão
Como medida em protesto e reação à imposição de medidas cautelares contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, deputados do PL reivindicaram, com o presidente da Câmara deputado Hugo Motta (Republicanos/PB), o adiamento do recesso parlamentar de julho para convocação de comissões da Casa que fizessem avançar medidas contra o que denominam “politização do Judiciário”. A alegação para o adiamento baseou-se na possibilidade de “Recesso Branco”, uma pausa “informal” das atividades legislativas,sem a decretação oficial do recesso parlamentar, prevista como possibilidade na legislação, quando o Congresso ainda não tenha aprovado a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Após a negativa de Hugo Motta, com a alegação de que as obras de reforma das dependências da Câmara seriam iniciadas impedindo o adiamento do recesso, duas comissões da presididas por deputados do PL ignoraram a orientação e convocaram reuniões deliberativas 22 de julho.
Uma delas foi a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, presidida pelo deputado de identidade religiosa não identificada Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP). Foi apresentado Requerimento de Moção 234/202, em solidariedade a Bolsonaro, “em razão de alegada perseguição política e de seus impactos na ordem e segurança públicas nacionais”.
A outra comissão convocada foi a de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, presidida pelo deputado evangélico Filipe Barros (PL-PR), com duas pautas: 1) Requerimento de Moção de Repúdio 128/2025, contra as medidas cautelares impostas a Bolsonaro, documento de autoria do deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES); 2) Requerimento de Moção de Louvor 128/2025, dirigida ao ex-presidente, proposta de Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).
A presidência da Câmara manteve a decisão e manteve o recesso parlamentar. As votações em plenário e reuniões das comissões ficaram vedadas até 4 de agosto. Em nota, Hugo Motta declarou: “As atividades legislativas serão retomadas na semana do dia 4 de agosto, com sessões deliberativas e funcionamento regular das comissões, conforme calendário”.
Outros temas em destaque nos PLs apresentados em julho de 2025
- Calendários, Patrimônio e Religião
Como este monitoramento de PLs do ISER tem enfatizado desde o início do projeto, em 2023, uma das pautas frequentes, que se destacam com amplo número de proposições é a disputa de religiosos pela ocupação do calendário cívico e pelo reconhecimento público de personagens e locais como patrimônio nacional. Neste julho, a aplicação dos critérios de monitoramento indica seis projetos nesta temática, três com identidade evangélica e três com identidade católica.
- O PL 3585/2025 de autoria do deputado, cuja identidade religiosa não foi identificada, Duda Ramos (MDB/RR) dispõe sobre a inclusão da “Marcha para Jesus de Roraima” no Calendário Turístico Oficial do Brasil, visando reconhecer a importância cultural e religiosa deste evento. Outro PL sobre o mesmo tema é o de nº 3290/2025, de autoria do evangélico deputado Ribamar Silva (PSD/SP), que busca reconhecer a “Marcha para Jesus” como manifestação da cultura nacional, uma iniciativa que visa valorizar a expressão religiosa e cultural deste evento.
- O PL 3285/2025, do deputado evangélico Eli Borges (PL/TO), institui o Dia Nacional de Oração (DNO), a ser comemorado na data de 31 de outubro, historicamente o Dia da Reforma Protestante, como forma de promover a reflexão e a espiritualidade. Esta data já foi instituída nacionalmente como Dia Nacional da Proclamação do Evangelho.
- O PL 3454/2025, de autoria do deputado católico José Airton Félix Cirilo (PT/CE), reconhece o Município de Juazeiro do Norte, no Estado do Ceará, como a Capital da Fé do Brasil, destacando a importância religiosa e cultural deste município.
- O PL 3146/2025, do deputado católico Nitinho (PSD/SE), reconhece como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Brasil os Tapetes de Grãos confeccionados no Estado de Sergipe, durante as celebrações de Corpus Christi, uma iniciativa que visa preservar a rica tradição cultural deste estado.
- O PL 3192/2025, de autoria da deputada de identidade cristã não determinada Duda Salabert (PDT/MG), cria o Monumento Natural dos Profetas, no estado de Minas Gerais, visando proteger e preservar este patrimônio natural e cultural.
- Criminalização do curandeirismo
O PL3262/2025 de autoria da deputada afrorreligiosa Daiana Santos (PCdoB/RS), propõe revogar o artigo n. 284 do Código Penal, que tipifica o crime de curandeirismo, e alterar dispositivos relacionados ao charlatanismo (art. 283) e à lesão corporal (art. 129). A iniciativa busca substituir um tipo penal historicamente associado à perseguição de saberes tradicionais e práticas religiosas de matriz afroindígena por mecanismos que concentram a punição em casos de fraude ou de dano concreto à saúde.
Atualmente, o crime de curandeirismo prevê detenção de seis meses a dois anos para quem, sem habilitação, prescreve tratamentos, aplica substâncias, realiza diagnósticos ou utiliza gestos e palavras para curar. Criado no início do século XX, este dispositivo tem sido amplamente criticado por sua aplicação seletiva contra benzedeiras, parteiras, pajés, sacerdotes de religiões de matriz africana e outros agentes das culturas populares, mesmo na ausência de prejuízo comprovado à saúde.
Ao propor a revogação deste artigo, o PL de Daiana Santos mantém a responsabilização de condutas enganosas por meio do art. 283, que trata do charlatanismo, e reforça a responsabilização por danos físicos pelo art. 129, com penas mais severas quando há lesão grave ou morte.
O projeto dialoga com debates contemporâneos sobre liberdade religiosa, direitos culturais, racismo religioso e proteção à saúde pública. Retirar o curandeirismo do Código Penal é, portanto, uma medida de reparação histórica e de conformidade com a laicidade do Estado, evitando que o sistema de justiça criminalize manifestações de fé e práticas comunitárias que não se apresentam como tratamento médico. Ao mesmo tempo, a atualização de outros artigos mantém ferramentas para coibir fraudes e promessas enganosas de cura, protegendo a população contra danos reais.
Segundo os dados abertos e os boletins de análise periódicos publicados na Plataforma Religião e Poder, os temas relacionados à liberdade religiosa e à regulação de práticas de cura seguem em disputa no Congresso de diversas maneiras e revelam as tensões entre saúde pública, religião e direito penal.
- Saúde pública: prevenção febre da Oropouche
Até 2023, a febre oropouche — doença viral transmitida principalmente por mosquitos do gênero Culicoides — era registrada quase exclusivamente nos estados da Região Amazônica. Nos últimos dois anos, porém, a infecção ultrapassou as fronteiras amazônicas e passou a ser identificada em diversos estados brasileiros, com crescimento expressivo dos casos em 2025.
Segundo dados divulgados por veículos de imprensa e autoridades de saúde, a doença já preocupa gestores públicos por seu potencial de expansão e pela ausência de vacina específica, exigindo atenção reforçada à vigilância epidemiológica, diagnóstico rápido e medidas preventivas.
Nesse contexto, o deputado Amom Mandel (Cidadania/AM), cuja identidade religiosa não foi identificada, apresentou duas proposições voltadas à conscientização e prevenção da febre oropouche. O PL 3450/2025 institui a Semana de Conscientização, Prevenção e Combate à Febre Oropouche, prevendo ações educativas e medidas permanentes de vigilância e informação em saúde pública, com o objetivo de proteger a população e reduzir a transmissão.
Já o PL 3426/2025 determina a realização contínua de campanhas de conscientização em todo o território nacional, reforçando o caráter preventivo e informativo sobre sintomas, formas de transmissão e medidas de proteção.
As duas iniciativas têm o potencial de ampliar o conhecimento da população sobre a febre oropouche e incentivar práticas individuais e comunitárias de prevenção, especialmente em áreas onde a doença ainda é pouco conhecida. A implementação efetiva das medidas propostas depende, contudo, de articulação com as secretarias de saúde estaduais e municipais, bem como da integração com o Sistema Único de Saúde (SUS) para garantir capilaridade das ações e vigilância permanente.
3. Raça e Racismo: Coleta de dados
O PL 3375/2025, apresentado pela deputada evangélica Benedita da Silva (PT/RJ), propõe alterar o artigo 7º da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, que regula a cobrança e a isenção do Imposto de Renda, para incluir um campo de autodeclaração racial na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda da Pessoa Física. A medida busca criar um mecanismo nacional e sistemático de coleta de dados sobre raça e cor, aproveitando a abrangência do sistema da Receita Federal, que atinge milhões de contribuintes anualmente.
Hoje, informações sobre cor ou raça da população brasileira são coletadas de forma mais concentrada em pesquisas amostrais do IBGE, como o Censo Demográfico – o de 2022 foi recém publicado e existe uma publicação do ISER que debate o tema da religião, que leva em conta os dados sobre raça – e a PNAD Contínua. Dados sobre raça também constam em cadastros administrativos específicos, como o Sistema Único de Saúde ou o Cadastro Único para Programas Sociais.
A proposta de Benedita da Silva amplia essa coleta para um instrumento universal e de atualização anual, potencializando a base de dados para formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas.
A inclusão da autodeclaração racial no Imposto de Renda pode contribuir para diagnósticos mais precisos sobre desigualdades socioeconômicas, tributárias e regionais, permitindo cruzamentos entre cor/raça e indicadores como renda, ocupação, deduções e tipo de atividade econômica declarada. Ao mesmo tempo, a proposição exige atenção para questões de sigilo fiscal, uso ético e proteção de dados, já que a Receita Federal passaria a concentrar informações sensíveis sobre identidade racial.
Benedita da Silva tem trajetória marcada pela defesa da igualdade racial, de gênero e dos direitos humanos. Primeira senadora negra do Brasil e ex-governadora do Estado do Rio de Janeiro, já apresentou e relatou projetos voltados para a promoção da equidade racial, políticas afirmativas e combate ao racismo institucional. Sua atuação parlamentar também é conhecida pela articulação entre fé e justiça social na agenda legislativa que cruza direitos civis e reparação histórica.
O PL 3375/2025 se destaca por conectar o debate sobre equidade racial a um dos principais instrumentos da administração tributária, introduzindo a pauta da raça e cor em um campo de política pública ainda pouco explorado sob essa dimensão.
- Política de atenção à saúde mental e uso de álcool e outras drogas
São três as proposições de julho tratam de forma integrada da atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas, envolvendo diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentação de comunidades terapêuticas e padrões mínimos para unidades de acolhimento.
O PL3566/2025 de autoria do deputado Duda Ramos (MDB/RR), cuja confessionalidade não foi identificada, cria a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Pessoas com Transtornos Decorrentes do Uso de Álcool e Outras Drogas no âmbito do SUS. A proposta estabelece princípios, objetivos e ações para prevenção, tratamento, reabilitação e reinserção social, reforçando a integração entre serviços de saúde, assistência social e políticas públicas correlatas.
O PL3391/2025 do deputado Amom Mandel (CIDADANIA/AM), cuja confessionalidade não foi identificada, trata da regulamentação e fiscalização das comunidades terapêuticas — instituições voltadas ao acolhimento de pessoas em situação de uso abusivo ou dependência de substâncias. O projeto busca definir critérios claros de funcionamento, registro e supervisão, alinhando essas entidades às normas sanitárias, de direitos humanos e de políticas públicas de saúde.
Já o PL3595/2025 de autoria do deputado Duda Ramos (MDB/RR), cuja confessionalidade não foi identificada, estabelece diretrizes e padrões mínimos de infraestrutura e condições ambientais nas unidades públicas e conveniadas de acolhimento em saúde mental e atenção a pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool e outras drogas. O texto condiciona o repasse de recursos federais ao cumprimento dessas exigências, buscando garantir qualidade e segurança no atendimento.
Essas três proposições dialogam com um cenário de disputas sobre o modelo de cuidado em saúde mental e política de drogas no Brasil, especialmente quanto ao papel das comunidades terapêuticas, historicamente marcadas por denúncias de violações de direitos e por vínculos com organizações religiosas. A regulação e fiscalização propostas podem ampliar a transparência e a proteção aos usuários, mas também exigem vigilância social para evitar retrocessos em relação à política antimanicomial e às diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Embora a identidade religiosa dos autores não tenha sido identificada, o tema mobiliza atores políticos e institucionais com diferentes agendas, incluindo parlamentares de perfil religioso, entidades filantrópicas e movimentos de defesa da saúde mental. Acompanhar este debate é fundamental para a garantia de direitos e a prevenção da captura de políticas públicas por interesses confessionais ou privados.
Como citar
CUNHA, Magali et al.. "Julho Atípico: Entre a Soberania Nacional e as Disputas por Direitos no Congresso". Religião e Poder, 07 ago. 2025. Disponível em: . Acesso em: .
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