Apostas, infâncias e cultura: o Parlamento como campo simbólico de disputas em maio de 2025

Créditos da Imagem: CPI das Bets. Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Carolina RochaLaryssa OwsianyMatheus Cavalcanti Pestana

Por Carolina Rocha, Laryssa Owsiany e Matheus Cavalcanti Pestana

  • 04 jul 2025
  • 27 min de leitura
Apostas, infâncias e cultura: o Parlamento como campo simbólico de disputas em maio de 2025
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Em maio de 2025, o Congresso seguiu sendo arena de disputa por sentidos: quem cuida de quem? Quem dita a moral? Quem regula os desejos, os corpos, as vozes? Apostas online, infância nas redes, conselhos tutelares, cultura periférica e homenagens religiosas apareceram não apenas como temas pontuais, mas como expressões de embates mais profundos sobre o que se entende por bem público, liberdade e proteção. No tensionamento sobre a infância exposta nas telas, na tentativa de calar o som que vem da favela ou na consagração de símbolos religiosos como política de Estado, o que está em jogo é mais do que um conjunto de projetos de lei — é a disputa por qual sociedade se quer construir.

Apostas online: regulação, saúde mental e presença evangélica no debate

O avanço das apostas eletrônicas no Brasil tem mobilizado o Congresso Nacional e acendido alertas em diferentes áreas da sociedade civil. Embora o debate sobre os jogos de azar não seja novo — sua proibição remonta a 1946, durante o governo Dutra —, o país passou a permitir apostas esportivas de quota fixa com a Lei nº 13.756/2018, e as regulamentou oficialmente com a Lei nº 14.790/2023, abrindo caminho para a atuação legal de plataformas digitais no país.

O tema já foi analisado, em setembro de 2024, no monitoramento legislativo publicado pela Plataforma Religião e Poder, em um momento em que novos projetos de lei sinalizavam preocupações com os efeitos sociais das bets. Já naquela ocasião, o boletim chamava atenção para a relação entre apostas online, saúde mental e publicidade agressiva. Desde então, diversas proposições foram apresentadas na Câmara com o objetivo de regular o setor, proteger consumidores(as) e limitar o acesso de crianças e adolescentes. 

Com a formalização do mercado por meio da Lei nº 14.790/2023, sancionada em 29 de dezembro de 2023, o volume de apostas explodiu. Conhecida como “Lei das Bets”, a norma instituiu o marco regulatório para as apostas de quota fixa, estabelecendo uma outorga de R$30 milhões para operação legal no país. Também proibiu o uso de cartões de crédito e recursos de programas sociais, como o Bolsa Família, para pagamento de apostas, além de exigir mecanismos de mitigação de risco, como identificação facial e proteção a usuários vulneráveis. Estima-se que mais de 3,5 milhões de brasileiros apostem todos os meses, e o setor já movimenta mais de R$20 bilhões mensais.

No campo da saúde pública, a preocupação é com a ludopatia — transtorno caracterizado pelo comportamento de jogo compulsivo, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde. A pessoa com ludopatia aposta de forma repetitiva e descontrolada, mesmo diante de perdas financeiras, dificuldades familiares e prejuízo emocional. A falta de regulação adequada, somada ao estímulo publicitário, tem potencializado o crescimento da doença, sobretudo entre jovens.

Nesse contexto, foi criada, em novembro de 2024, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Apostas Esportivas, com o objetivo de investigar irregularidades no setor, especialmente o uso de figuras públicas, popularmente conhecidas como influenciadores(as) digitais, em estratégias de marketing agressivo. A Comissão ganhou repercussão ao convocar personalidades midiáticas, suspeitas de ações ilegais, para deporem, como Virgínia Fonseca e Deolane Bezerra, tendo sido espaço, até mesmo, para discursos de cunho religioso cristão. O relatório final propôs o indiciamento de 16 pessoas, incluídas as influenciadoras aqui citadas,, a criação de um fundo para tratamento de ludopatia e a responsabilização solidária de plataformas e influenciadores(as).

Contudo, o parecer da relatora senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) foi rejeitado por quatro votos a três, em sessão realizada no Senado, em junho de 2025. A decisão refletiu um embate mais amplo entre uma agenda regulatória mais rigorosa, centrada na proteção do(a) consumidor(a) e no controle da publicidade, e uma posição favorável à regulação flexível do setor, defendida por parlamentares da base governista e partidos como PL, PSD e União Brasil. As justificativas para o voto contrário incluíram desde críticas à celeridade do processo até o entendimento de que o relatório teria extrapolado seu escopo ao incluir acusações ao Executivo. Na prática, a rejeição do parecer encerrou a CPI sem encaminhamentos formais, mas manteve o tema em evidência nas disputas legislativas e no debate público.

Mesmo com o desfecho negativo da CPI, o tema segue no centro das atenções. Três propostas ganharam destaque na Câmara Federal no mês de maio:

  • O PL 2439/2025, do deputado evangélico Marcos Tavares (PDT/RJ), propõe a criação do Programa Nacional de Prevenção aos Impactos das Apostas Online e de Combate à Ludopatia, com foco em políticas públicas de saúde mental;
  • O PL 2464/2025, do deputado católico Cleber Verde (MDB/MA), busca restringir os valores depositados por usuários(as) em casas de apostas online, como forma de limitar o endividamento compulsivo;
  • Já o PL 2609/2025, do deputado evangélico Raimundo Santos (PSD/PA), propõe proibir o patrocínio de empresas de apostas em eventos com participação direta de crianças e adolescentes, promovendo alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Influenciadores(as) mirins: infância digital e os limites da exposição

O crescimento da atuação de crianças e adolescentes como influenciadores(as) digitais tem gerado controvérsias jurídicas e sociais. As redes digitais, ao mesmo tempo em que democratizam a produção de conteúdo, tornaram-se ambientes de monetização da infância, muitas vezes à margem de regulamentações existentes. Plataformas como TikTok, Instagram e YouTube concentram milhões de perfis mirins promovendo produtos, estilos de vida e até práticas religiosas — em contextos que frequentemente borram os limites entre lazer, trabalho e exploração econômica.

A repercussão do caso do missionário mirim proibido de pregar e utilizar redes sociais, por decisão judicial, reacendeu o debate sobre os riscos da superexposição de crianças na internet. O episódio, que envolveu forte mobilização de grupos religiosos e laicos nas redes, coincidiu com a apresentação, em maio, do PL 2310/2025, da deputada de identidade cristã Duda Salabert (PDT/MG). O projeto propõe a regulamentação da atuação de crianças e adolescentes como criadores de conteúdo digital, exigindo autorização judicial, limite de tempo de exposição, controle da monetização e responsabilização dos responsáveis legais e das plataformas.

A proposta dialoga com um vácuo legal existente entre o ambiente digital e o que já é previsto para o trabalho infantil artístico na televisão, cinema e teatro. Segundo investigações do Repórter Brasil, crianças têm sido utilizadas como promotoras de produtos como brinquedos, alimentos ultraprocessados e, em alguns casos, até apostas eletrônicas — tudo isso sem acompanhamento psicológico, pedagógico ou jurídico. 

A discussão ganha ainda mais relevância neste mês de julho, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 35 anos. Promulgado em 13 de julho de 1990, o ECA estabeleceu um marco normativo no reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e impôs à sociedade, à família e ao Estado o dever compartilhado de protegê-los. Entretanto, frente à rápida transformação do ambiente digital e à financeirização da imagem da infância, o Estatuto tem sido tensionado por novas práticas que escapam à sua aplicação direta. A emergência de crianças influenciadoras — e, no caso das apostas, como potenciais alvos de publicidade — reabre o debate sobre o que significa proteger integralmente a infância hoje.

Assim, a tramitação do PL 2310/2025, insere-se em um contexto mais amplo: o de revisão dos mecanismos legais de proteção frente às novas formas de exploração simbólica e econômica da infância. As disputas sobre o tema não se limitam à questão do trabalho, mas tocam também a liberdade religiosa, o direito à educação, à privacidade e à formação autônoma da identidade — colocando o ECA, mais uma vez, no centro das tensões entre inovação tecnológica, mercado e direitos fundamentais.

Conselhos tutelares: valorização, remuneração e autoridade em disputa

O mês de maio também trouxe à tona um conjunto de propostas que tratam da atuação dos conselhos tutelares — órgãos autônomos e permanentes, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), responsáveis por zelar pelo cumprimento dos direitos da infância em nível municipal.

Criados pela Lei nº 8.069/1990, os Conselhos Tutelares integram a chamada “rede de proteção” e têm como função defender os direitos da criança e do adolescente — atendendo denúncias, aplicando medidas protetivas e requisitando serviços públicos. Porém, apesar de seu caráter estratégico, muitos conselheiros(as) enfrentam condições precárias, ameaças e sobrecarga, especialmente em regiões periféricas e no interior do país.

Em resposta a esse cenário, surgiram três projetos que, à primeira vista, propõem avanços institucionais:

  • O PL 2174/2025, de autoria do deputado evangélico Silas Câmara (Republicanos/AM), que concede adicional de periculosidade;
  • O PL 2205/2025, do mesmo autor, estabelece um piso salarial nacional;
  • O PL 2469/2025, do deputado evangélico Vinicius Carvalho (Republicanos/SP), impõe penalidades a quem descumprir determinações dos Conselhos ou das Varas da Infância.

No entanto, a leitura desses projetos não pode ignorar o aparelhamento ideológico dos Conselhos Tutelares por grupos religiosos organizados, que se fortaleceu após as eleições municipais de 2020, em especial com a atuação da atual senadora Damares Alves (PL/DF), quando ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos, no  governo de Jair Bolsonaro (PL, 2019-1022).  Em várias cidades, igrejas — especialmente evangélicas – lançaram candidaturas coletivas, mobilizando fiéis nos cultos e usando seus templos como espaço eleitoral. 

Segundo reportagem, até 53% dos(as) conselheiros(as) eleitos em São Paulo, em 2020, eram ligados(as) a denominações religiosas evangélicas. Em paralelo, conselheiros(as) relataram tentativas de impor suas crenças em situações cotidianas: crianças LGBTQ+ sendo tratadas como “possuídas” ou encaminhadas para “sessões de descarrego”; mães de religiões afro sendo acusadas de “rituais” por corte de cabelo — tudo em claro desrespeito ao ECA. O tema é abordado com amplitude pela professora Jacqueline Teixeira no artigo: Infância, conselhos tutelares e agendas conservadoras: ativismo religioso para além das fronteiras da escola

A disputa pelo controle desses espaços, registrada em matéria do Brasil de Fato sobre “aparelhamento” do órgão por igrejas e grupos conservadores, sinaliza que os Conselhos Tutelares estão em risco de se tornarem instrumentos de vigilância moral e proselitismo religioso e não de proteção de direitos. O reforço institucional, portanto, só terá valor democrático se vier acompanhado de regras nítidas para garantir a autonomia técnica e a laicidade desses órgãos. 

Nesse sentido, os PLs de maio apontam para uma disputa fundamental: qual o lugar político dos conselhos tutelares no arranjo democrático brasileiro? São instâncias técnicas e autônomas de proteção de direitos? Ou estarão cada vez mais subordinadas às disputas morais, religiosas e partidárias que atravessam o campo da infância?

Vacinação compulsória: liberdade parental, saúde pública e disputas sobre o corpo da criança

Ainda sob o guarda-chuva do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o mês de maio trouxe à tona uma proposição legislativa que reacende um debate sensível: a tensão entre liberdade parental e responsabilidade coletiva no cuidado à saúde das crianças. Trata-se do PL 2641/2025, apresentado pela deputada, que se autodefine como cristã, Julia Zanatta (PL/SC), que dispõe sobre a vedação da vacinação compulsória em todo o território nacional.

A proposta assegura o chamado “direito ao consentimento livre e informado” e busca tipificar como crime de coação vacinal qualquer tentativa de obrigatoriedade nesse campo, inclusive com previsão de sanções administrativas, civis e penais para instituições públicas e profissionais de saúde que desrespeitem a vontade dos(as) responsáveis. Segundo a justificativa apresentada, o projeto se ancora nos “valores essenciais de uma sociedade livre”, como a autodeterminação corporal e a liberdade individual de escolha.

Essa formulação, no entanto, entra em rota de colisão com princípios constitucionais e com jurisprudências já firmadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconhecem a constitucionalidade da vacinação obrigatória — desde que garantido o direito de objeção de consciência e desde que as sanções aplicadas não impliquem violência física. A vacinação, nesse entendimento, é um dever do Estado, mas também da família, e integra o conjunto de ações de proteção à infância previstas no ECA (art. 14, §1º).

Esse tipo de proposição legislativa não é inédita. Em 2021, durante a pandemia de covid-19, diversas propostas semelhantes circularam no Congresso, impulsionadas por movimentos antivacina e por uma concepção de liberdade ancorada no negacionismo científico. A nova proposta ressurge agora sob roupagem jurídico-moral, em um contexto pós-pandêmico que continua a ser marcado por polarizações ideológicas e disputas sobre o papel do Estado nas decisões familiares.

Vale lembrar que, segundo dados da Unicef Brasil, o país tem registrado quedas preocupantes nas coberturas vacinais infantis desde 2015, incluindo vacinas básicas como BCG, poliomielite e hepatite B. Especialistas apontam que parte da resistência vem do enfraquecimento de campanhas públicas de mobilização, mas também do avanço de discursos que colocam a escolha individual acima do bem-estar coletivo — mesmo quando se trata de crianças.

Ao propor a criminalização da obrigatoriedade vacinal, o PL 2641/2025  tensiona a lógica do ECA, que atribui à família e ao Estado a responsabilidade compartilhada pela promoção da saúde infantil. O projeto também desloca o debate para o campo da moral religiosa e da liberdade de consciência, frequentemente mobilizados em discussões que envolvem o corpo (incluindo o aborto), a infância e o papel do Estado democrático.

Calendários oficiais e homenagens religiosas: a ocupação simbólica do Estado por projetos de fé

A apresentação de projetos de lei que propõem a criação de datas comemorativas e homenagens religiosas é um fenômeno recorrente no Legislativo brasileiro, como este monitoramento de PLs, realizado pelo ISER, tem demonstrado. Porém, longe de se limitar a gestos protocolares, esses projetos integram uma estratégia mais ampla de ocupação simbólica do Estado por grupos religiosos. O mês de maio evidenciou essa tendência, mais uma vez, com a tramitação de ao menos cinco proposições que buscam inscrever valores cristãos — em sua maioria evangélicos — no calendário oficial do país.

Entre os projetos apresentados, destacam-se:

  • O PL 2636/2025, de autoria do deputado de identidade cristã Adilson Barroso (PL/SP), institui o “Dia com Deus” como data oficial, com foco na valorização da religiosidade cristã nas esferas pública e privada;
  • O PL 2618/2025, deputado católico Marcos Pollon (PL/MS), reconhece a Marcha pela Liberdade, realizada anualmente pela Associação Nacional do Movimento Proarmas, como manifestação cultural nacional — incorporando, sob a rubrica da “liberdade religiosa”, uma defesa do armamento civil;
  • O PL 2433/2025, do deputado que se apresenta como cristão, Sargento Gonçalves (PL/RN), propõe a criação da Semana Nacional da Cultura Evangélica, a ser celebrada anualmente;
  • O PL 2357/2025, de autoria da deputada, que se autoidentifica como cristã, Greyce Elias (Avante/MG), institui o Dia Nacional da Mídia Cristã Evangélica, em 26 de junho, data já comemorada informalmente, segundo o texto, por diversas igrejas e emissoras;
  • Por fim, o PL 2288/2025, proposto pelo deputado evangélico Raimundo Santos (PSD/PA), inclui no Calendário Turístico Oficial do Brasil a encenação da chegada dos missionários suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus, em Belém do Pará, em 1910. O mesmo PL (3774/2023) já foi apresentado anteriormente pelo deputado e foi destaque no monitoramento realizado pelo ISER, em agosto de 2023. O parlamentar do PSD também propôs uma medalha de mérito evangélico que levasse o nome de Daniel Berg e Gunnar Vingren  (Projeto de Resolução 92/2023), o que foi destacado no boletim do monitoramento de  julho de 2023.

Essas proposições não operam apenas no campo simbólico, ao consolidarem determinadas referências no calendário oficial e em premiações estatais, mas criam camadas de legitimação institucional para valores específicos. Como mostrou a pesquisadora Izabella Bosisio, no artigo “O que feriados e datas comemorativas podem nos dizer sobre religião no Brasil?”, publicado pela plataforma Religião e Poder, a legislação sobre feriados civis e religiosos é historicamente marcada por uma assimetria: datas cristãs (especialmente católicas e evangélicas) ocupam um espaço privilegiado, enquanto manifestações de outras tradições — como religiões afro-brasileiras, indígenas ou espiritualidades alternativas — enfrentam resistência ou invisibilização.

A institucionalização de datas e homenagens religiosas reforça a presença normativa da fé cristã em espaços públicos e desafia o princípio constitucional da laicidade do Estado. Em um contexto de disputa cultural e de avanço de bancadas religiosas organizadas, a apropriação do calendário como ferramenta política representa não apenas um movimento de afirmação identitária, mas também um modo de naturalizar valores morais específicos como “cultura nacional”.

Se por um lado essas iniciativas se apresentam como reconhecimento cultural ou exercício da liberdade religiosa, por outro lado elas criam exclusões sutis e cumulativas — ao reafirmar quais expressões de fé merecem lugar no imaginário oficial e quais continuam relegadas à margem ou ao estigma.

COP30, clima e religião: entre ancestralidade, mercado e vigilância política

A aproximação da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30) — Belém (PA), novembro de 2025 — tem intensificado o volume e a diversidade de proposições legislativas voltadas ao meio ambiente, à sustentabilidade e à governança climática, que já se apresentavam como tendência nos últimos anos. Os projetos apresentados no mês de maio refletem como a pauta ambiental se tornou terreno de disputa entre diferentes concepções de futuro: de um lado, propostas que se baseiam em saberes tradicionais e espiritualidades indígenas; de outro, tentativas de capturar o discurso ambiental por interesses de mercado ou vigilância institucional.

Duas proposições se destacam por caminhos opostos:

  • O PL 2177/2025, de autoria da deputada adepta de espiritualidades indígenas Célia Xakriabá (PSOL/MG), propõe a criação das Escolas do Clima, voltadas para o enfrentamento das mudanças climáticas a partir de tecnologias ancestrais e pedagogias enraizadas em práticas indígenas e quilombolas. A proposta se articula com uma concepção ampliada de território, onde o conhecimento tradicional é valorizado como ferramenta legítima e eficaz para enfrentar o colapso climático. A parlamentar, que é liderança indígena, defende que o saber ancestral não pode mais ser tratado como periférico, mas como central na produção de soluções sustentáveis — sobretudo em um país como o Brasil, onde mais de 80% das áreas protegidas estão sob a guarda de povos originários.
  • Em contraste, o PL 2487/2025, apresentado pelo deputado evangélico Raimundo Santos (PSD/PA), propõe a criação do “Selo COP30” para reconhecer empresas que adotem práticas sustentáveis. Embora a iniciativa pareça positiva à primeira vista, ela se ancora na lógica da certificação empresarial e corre o risco de transformar a emergência climática em estratégia de marketing verde — esvaziando o papel do Estado na regulação ambiental e invisibilizando populações tradicionais que efetivamente protegem os biomas brasileiros.

Paralelamente, foi apresentada a Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) nº 20/2025, da deputada católica Caroline de Toni (PL/SC), que visa apurar supostas irregularidades na organização da COP 30, incluindo a contratação da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) como parceira executora. A proposta conta com apoio da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara Federal (liderada pelo deputado do mesmo partido Felipe Barros) e do Tribunal de Contas da União (TCU), e reflete as posturas políticas de oposição da extrema direita em torno da governança climática por organizações multilaterais. A deputada integra a bancada conservadora e tem histórico de proposições ligadas ao combate à “ideologia de gênero” e à vigilância de agendas internacionais, o que sugere que o foco da fiscalização extrapola a preocupação com transparência orçamentária.

Outro projeto que conecta sustentabilidade e tecnologia é o PL 2080/2025, de autoria da deputada de identidade cristã Duda Salabert (PDT/MG), que institui a Política Nacional de Eficiência Energética e Sustentabilidade Socioambiental para Data Centers. O objetivo é estabelecer diretrizes e metas para reduzir o impacto ambiental causado pela expansão dessas infraestruturas. O tema tem ganhado relevância à medida que grandes plataformas digitais instalam servidores em áreas de baixo custo energético e hídrico — muitas vezes sobre territórios ameaçados e sem consulta prévia às populações locais. Como alertado por organizações socioambientais, essa expansão é percebida por muitos movimentos como uma nova forma de colonialismo energético, que se apropria dos recursos naturais sem redistribuir os benefícios de forma justa.

Os quatro projetos — com motivações, escopos e linguagens distintas — mostram que a COP 30 se tornou um campo aberto de disputa política. Se por um lado ela potencializa iniciativas baseadas em espiritualidades da terra e epistemologias não hegemônicas, por outro lado ela também tem sido mobilizada por setores religiosos e empresariais para reforçar agendas que, muitas vezes, operam à margem do enfrentamento estrutural da crise climática. Entre selos, escolas e investigações, o que está em jogo é a disputa pelo protagonismo na narrativa da crise climática. Além disso, a pauta é usada como fonte para ações de oposição ao governo federal e às políticas ambientais da parte da extrema direita. 

Criminalização da cultura periférica: política de segurança ou silenciamento?

Entre os projetos legislativos apresentados em maio, chama atenção o PL 2154/2025, de autoria do deputado católico Delegado Éder Mauro (PL/PA), que propõe proibir a utilização de verbas públicas em eventos ou serviços que promovam, segundo o texto, “apologia ao crime, facções criminosas, tráfico de drogas, atos de violência e uso de drogas ilícitas”. O projeto prevê ainda a responsabilização dos gestores públicos que autorizarem esse tipo de gasto e sugere que manifestações culturais que dialoguem com temas considerados sensíveis sejam equiparadas a “incentivo à criminalidade”.

Embora o texto da proposição não mencione diretamente nenhum gênero musical, ele se insere em um longo histórico de tentativas de criminalização do funk, do rap e de outras expressões culturais das periferias urbanas brasileiras. Como revelou o levantamento do Instituto de Defesa da População Negra (IDMJRacial), entre 2002 e maio de 2025 foram identificadas 130 proposições legislativas com o objetivo de cercear, proibir ou criminalizar o funk nas esferas estaduais e federais. Essas iniciativas, muitas vezes baseadas em critérios subjetivos e morais, operam sob a lógica do controle social e da higienização dos espaços públicos — com impactos desproporcionais sobre juventudes negras, faveladas e periféricas.

O caso recente da prisão do artista Poze do Rodo, embora posterior à apresentação do PL, é ilustrativo da ofensiva simbólica contra vozes que protagonizam tradições negras. Ao associar arte à criminalidade, essas propostas não apenas ignoram o papel cultural, educativo e econômico dessas expressões, como também reforçam uma ideia seletiva de ordem pública — onde determinados corpos e sons são considerados ameaçadores por natureza.

No artigo “Como as religiões disputam legitimidade utilizando a estratégia da religião como cultura”, publicado por Lívia Reis e Rodrigo Toniol na plataforma Religião e Poder, os autores argumentam como o campo da cultura tem sido um lugar estratégico de afirmação religiosa e de disputas, no qual muitas vezes se destaca o protagonismo, inclusive de grupos minoritários, ou ainda se reforça o racismo e a exclusão vigente. 

É importante destacar que boa parte das manifestações culturais visadas por esses projetos são frequentadas ou produzidas por adolescentes e jovens adultos, o que conecta essa agenda diretamente ao campo de proteção previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao invés de garantir o acesso à cultura e à livre expressão artística, o Legislativo — com o apoio de setores conservadores — tem adotado uma postura de cerceamento que trata a juventude periférica como ameaça antes mesmo de reconhecê-la como sujeito de direitos.

Bebês reborn e políticas públicas: projeção midiática em foco 

Entre as proposições mais inusitadas do mês de maio, destacam-se dois projetos que buscam restringir o uso de serviços públicos por pessoas que carregam bonecas do tipo bebê reborn — artefatos realistas, utilizados por colecionadores(as), por mulheres em luto ou por pessoas com condições psiquiátricas específicas. Os projetos partem da suposição de que essas bonecas estariam sendo utilizadas para acessar benefícios e serviços destinados a crianças de colo, como prioridade em filas e atendimento preferencial.

O PL 2346/2025, do deputado Zé Trovão (PL/SC), cuja identidade religiosa não é identificada na pesquisa, proíbe o uso de qualquer serviço público destinado a humanos por quem esteja acompanhado de bonecas do tipo reborn. Já o PL 2320/2025 do deputado católico Dr. Zacharias Calil (União/GO), prevê sanções administrativas a quem utilizar tais objetos para obtenção de benefícios públicos, como vagas em transporte ou prioridade em atendimento. Ambos os textos invocam o princípio da boa-fé na administração pública e afirmam defender o uso racional de políticas sociais.

Nenhuma das proposições se apoia em dados oficiais ou relatórios de órgãos públicos que apontem o uso indevido generalizado desses objetos. Ao contrário: tratam-se de casos isolados que, ao ganharem projeção midiática, transformam exceções em justificativa para intervenção legislativa, prática frequente identificada por este monitoramento de PLs desde o início desta legislatura. O risco é que a máquina pública seja utilizada mais para o apelo midiático do que para as necessidades da população.  

Educação à distância e domiciliar: disputas sobre o acesso, a formação e o papel do Estado

A educação, tema destacado no monitoramento de PLs do ISER,  foi, mais uma vez, campo de embates neste maio, com a apresentação de projetos que respondem diretamente às mudanças nas diretrizes do Ministério da Educação (MEC), que proibiu, por meio de portaria publicada em abril, a oferta de cursos 100% a distância em cinco graduações: Direito, Enfermagem, Odontologia, Psicologia e Medicina Veterinária.

A medida motivou a apresentação de dois Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) que tentam sustar os efeitos da decisão ministerial:

  • O PDL 238/2025, do deputado Fred Costa (PRD/MG), com identidade religiosa não identificada;
  • E o PDL 213/2025, da deputada Adriana Ventura (Novo/SP), também com identidade religiosa não identificada. 

Ambos os parlamentares alegam que a suspensão da modalidade EAD compromete a democratização do ensino superior, sobretudo para estudantes de regiões remotas. No entanto, especialistas em educação e entidades da área alertam que a qualidade da formação técnica e ética em cursos com alta carga prática pode ser gravemente afetada, como no caso das profissões da saúde e do Direito. No caso da Medicina Veterinária, por exemplo, o deputado Fred Costa justifica que a formação a distância coloca em risco a vida de animais e humanos, dada a exigência de habilidades práticas que não podem ser simuladas digitalmente.

Em paralelo, tramita o PLP 118/2025, de autoria coletiva de parlamentares do Partido Novo, que propõe regulamentar a educação domiciliar (homeschooling) em todo o território nacional. O projeto autoriza que Estados e o Distrito Federal estabeleçam suas próprias normas sobre o tema, com base em critérios gerais definidos em lei federal.

A proposta reabre o debate sobre os limites da autonomia familiar na formação educacional das crianças — tema que ganhou força durante a pandemia de covid-19, mas permanece envolto em controvérsias legais, pedagógicas e ideológicas. Embora o STF tenha reconhecido, em 2018, que a educação domiciliar não é inconstitucional, a Corte também afirmou que sua implementação exige regulamentação específica — o que ainda não foi feito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que é dever do Estado garantir “ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (art. 54). Ao propor a retirada da criança da escola sem garantir mecanismos de avaliação e acompanhamento, o projeto pode fragilizar o direito à educação plena e ao convívio comunitário, afetando especialmente meninas, crianças com deficiência e adolescentes LGBTI+ — grupos que, segundo pesquisas, são os mais suscetíveis ao isolamento e à negligência no modelo domiciliar.

Além disso, como já analisado no artigo de Andrea Silveira, a defesa do homeschooling no Brasil frequentemente se articula com discursos religiosos que pretendem proteger a criança de conteúdos considerados “inadequados”, como educação sexual, diversidade religiosa ou crítica social — o que evidencia que a disputa não é apenas pedagógica, mas também cultural e ideológica.

Importa destacar que, como este monitoramento de PLs tem verificado, a apresentação de Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) como instrumento de oposição à implementação de políticas públicas indicadas por conselhos de direitos e encaminhadas por ministérios do governo federal tem sido frequente.

Desta forma, o cenário legislativo de maio revela um Parlamento dividido entre agendas protetivas e ofensivas no que diz respeito aos direitos das infâncias, às liberdades civis e à função pública da cultura. As proposições analisadas mostram como diferentes atores políticos disputam o sentido do cuidado, da moral e da regulação — muitas vezes instrumentalizando o ECA, o corpo infantil e a fé como territórios estratégicos. Em um contexto de transformações tecnológicas, culturais e ideológicas, o desafio não é apenas resistir a retrocessos, mas fortalecer marcos legais e institucionais que garantam a centralidade dos direitos humanos no debate público.

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