Moralidade, violência e fé: o Legislativo como espelho de disputas simbólicas neste junho de 2025
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil




Por Carolina Rocha, Laryssa Owsiany, Magali Cunha e Matheus Cavalcanti Pestana
- 22 jul 2025
- 15 min de leitura

O Monitoramento dos Projetos de Lei na Câmara Federal, projeto do ISER, realizado em junho de 2025, evidenciou a continuidade de uma prática legislativa pautada por disputas simbólicas e por tentativas de redefinir os marcos da proteção de direitos, da liberdade de expressão e da relação entre fé, cultura e políticas públicas. Do porte de armas ao “direito de expressão”, que viola uma série de direitos humanos, passando pela patrimonialização religiosa e pela construção de símbolos nacionais a partir de tragédias individuais, o Congresso Nacional operou como espaço ativo de reconfiguração de valores, muitas vezes sob a lógica do punitivismo, do conservadorismo moral e da política como espetáculo.
Nas entrelinhas das proposições, vemos uma estratégia antiga, frequentemente ressaltada por esse monitoramento: a utilização de notícias/acontecimentos que se destacaram nacionalmente para reforçar pânicos morais, manipular politicamente através da dor e garantir o avanço de pautas religiosas, que saem do campo privado para moldar/criar calendários, manuais de conduta, e um imaginário próprio do que é “aceitável”.
Liberdade de expressão e o “direito ao humor”: o caso Léo Lins como chave simbólica
O debate sobre os limites da liberdade de expressão artística e humorística voltou ao centro das atenções com a condenação do comediante Léo Lins, sentenciado a oito anos e três meses de prisão por discursos considerados discriminatórios em um show de stand-up realizado em 2022, divulgado em mídias digitais.
Segundo a 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, Léo Lins incitou o escárnio contra pessoas negras, gordas, indígenas, LGBTQIAPN+, com deficiência, vivendo com HIV, além de idosos, judeus, nordestinos e evangélicos — reforçando estigmas e violências históricas sob o pretexto do humor. A sentença inclui também multa e indenização por danos morais coletivos. Apenas esse vídeo (o comediante tem ainda outros materiais com o mesmo teor), que alcançou cerca de três milhões de visualizações até 2023 (conforme reportagem da BBC News), serviu como base para a condenação por infrações às Leis nº 7.716/89 e nº 13.146/2015, com agravante por ocorrer em contexto de atividade cultural voltada ao público.
O caso evidencia como o recurso do riso — quando usado para hierarquizar, humilhar e desumanizar — deixa de ser crítica social para se tornar instrumento de opressão, incitando o ódio e a violência. O episódio inspirou a apresentação de dois projetos que buscam delimitar juridicamente os contornos do humor no Brasil contemporâneo:
– O PL 2742/2025, de autoria do deputado católico Dr. Zacharias Calil (União/GO), propõe garantir a liberdade de manifestação artística e humorística, desde que respeitados os limites da responsabilização cível e penal nos casos de dolo discriminatório, incitação à violência ou ofensas à honra.
– Já o PL 2726/2025, apresentado pelos deputados evangélicos Filipe Barros (PL-PR) e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) tem caráter mais explícito: revogar dispositivos da Lei nº 7.716/1989, marco do combate a crimes de ódio e discriminação racial e religiosa, em nome da proteção à liberdade de expressão artística.
Ambas as proposições integram uma tentativa de reorganizar os parâmetros legais do que pode ou não ser dito no espaço público, tensionando os limites entre liberdade e discurso de ódio. A linguagem do humor não pode ser usada como salvo-conduto para o reforço de desigualdades estruturais – sobretudo contra populações negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência. Reverter marcos legais de combate à discriminação em nome da “liberdade artística”, como se o palco fosse território livre de responsabilidade, é ferir o direito de existir com dignidade da maior parte da população brasileira.
O movimento se insere, ainda, em um contexto mais amplo de resistência à necessária regulação das redes sociais digitais — espaço onde circulam discursos de ódio, desinformação e campanhas políticas ancoradas em fake news. Enquanto parte do Congresso Nacional se mobiliza para blindar humoristas que atacam minorias, fóruns virtuais seguem promovendo conteúdos sobre pedofilia, feminicídio, misoginia, LGBTQIAPN+fobia e racismo, atingindo sobretudo crianças e adolescentes, sem qualquer acompanhamento ou proteção institucional. Nesse cenário, discursos que atacam o Judiciário e relativizam a proteção de direitos não são apenas opiniões — são estratégias de poder.
“Bancada da bala”: entre consumo armado e proteção seletiva
A ofensiva armamentista ganhou fôlego em junho, impulsionada por uma série de projetos de autoria do deputado católico Marcos Pollon (PL-MS), um dos principais expoentes da chamada “bancada da bala”. É importante destacar que Pollon foi eleito deputado federal pelo Mato Grosso do Sul nas eleições de 2022, quando, em sua primeira candidatura já foi o deputado federal mais votado do estado. Além disso, ele é o fundador da Associação Nacional Movimento Pró Armas (AMPA), que atualmente é a maior associação armamentista do Brasil.
Em um único dia, o parlamentar apresentou três propostas que articulam consumo, profissionalização e desoneração fiscal do acesso a armas de fogo:
– O PL 2959/2025, que institui o programa “Minha Primeira Arma”, com subsídio estatal e estímulo ao “acesso responsável” à primeira arma de fogo por civis habilitados;
– O PL 2960/2025, que propõe regulamentar a profissão de “Mecânico de Armas de Fogo” (Armeiro);
– O PL 2961/2025, que busca isentar a aquisição da primeira arma de taxas e tributos federais.
A lógica que permeia os três projetos é a de naturalizar o armamento civil como extensão de uma cidadania plena — processo semelhante ao defendido nos EUA por grupos ultraconservadores –, pauta inserida com força no país desde 2018, com a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro e transformada em política pública no seu mandato.
Ao reafirmar pauta do armamento como política pública de acesso, o legislador desloca o debate da segurança coletiva para o consumo individual, incentivando a circulação de armas em um país que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, citado pela CNN Brasil, viu o número de CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) saltar de 117 mil em 2018 para cerca de 783 mil em 2022 — um aumento superior a 560%.
Em paralelo, o PL 3127/2025 propõe a prioridade de tramitação nos processos de registro e porte de armas para mulheres vítimas de violência doméstica. Embora aparente uma perspectiva protetiva, o projeto mobiliza a dor das mulheres e uma situação de emergência pública, lembrando que o Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, para legitimar a expansão do armamento. Com isso, converte a violência estrutural de gênero em justificativa para políticas de autodefesa que ignoram o papel central do Estado na garantia de segurança e proteção.
É nesse mesmo sentido que tramita o PL 3272/2024, já aprovado pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado e atualmente em análise na Comissão de Segurança Pública (CSP). O projeto autoriza o porte de arma para mulheres sob medida protetiva de urgência, desde que tenham mais de 18 anos e atendam aos critérios do Estatuto do Desarmamento. Ao invés de fortalecer redes de acolhimento, políticas de prevenção e investimento em segurança pública, a proposta desloca a centralidade da proteção para o armamento, reforçando uma lógica individualizante, punitivista e profundamente excludente.
A chamada “batalha regulatória” das armas, como já analisada por Carolina Grillo, revela-se como disputa não apenas de políticas de segurança, mas de sentidos: o que é proteção? A quem se destina? Com que instrumentos ela deve operar? Ao posicionar a arma como símbolo de empoderamento e solução individualizada para problemas coletivos, o Legislativo reforça uma lógica excludente e violenta, em detrimento da defesa e criação de políticas públicas. Em pesquisa recente, o projeto Fogo Cruzado (instituto que produz dados, pesquisa e conteúdos sobre violência armada) mostrou que apesar do alto número de PLs apresentados pela bancada proarmas, a taxa de aprovação das propostas é baixa.
Memória, tragédia e turismo: leis com nome próprio e o uso político da dor
O mês de junho também foi marcado pela proposição de projetos que utilizam nomes próprios para homenagear vítimas de tragédias ou situações de comoção pública, evidenciando a construção de narrativas legislativas baseadas em casos individuais.
O PL 3018/2025, de autoria da deputada cristã Dayany Bittencourt (União-CE), propõe a criação da Lei Kauã Guedes, endurecendo as penas para homicídio e lesão corporal culposa na condução de veículos. A proposta homenageia Kauã, menino de 11 anos, atropelado e morto por um motorista alcoolizado durante um passeio escolar no Ceará, em um caso que mobilizou indignação popular e críticas à impunidade em crimes de trânsito.
Já o PL 3085/2025, também da parlamentar, propõe a Lei Juliana Marins, em referência à jovem brasileira negra, que faleceu durante uma trilha no Monte Rinjani, na Indonésia, enquanto realizava um mochilão pela Ásia. Juliana sofreu um acidente grave e não recebeu socorro imediato por parte das autoridades locais. O caso teve enorme repercussão nas mídias, o que levou a uma intensa mobilização civil e diplomática para pressionar o governo brasileiro a intervir. Infelizmente, seu corpo foi encontrado sem vida dias depois. O projeto busca garantir que o Estado custeie o traslado e o sepultamento de corpos de brasileiros falecidos no exterior, ampliando o alcance da assistência consular em situações de luto e vulnerabilidade.
O caso de Juliana Marins também foi objeto do PL 3101/2025, de autoria da deputada católica Rosana Valle (PL-SP), e do PL 3032/2025, de autoria do deputado evangélico Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ). O primeiro busca facilitar os trâmites de repatriação em casos excepcionais de óbito de brasileiros no exterior, já o segundo propõe uma Política Nacional de Proteção a Mulheres Brasileiras Viajantes, com diretrizes para atendimento consular em situações de risco.
Estas proposições demonstram o modo como o luto é politicamente operado no Parlamento, transformando tragédias pessoais em dispositivos de produção legislativa. Se por um lado, respondem a demandas legítimas por reconhecimento e assistência, por outro, reforçam uma lógica de exceção, em que o sofrimento precisa ganhar visibilidade para gerar resposta institucional — enquanto muitas outras mortes seguem sem nome, sem lei e sem justiça.
Infância, moral e controle simbólico: o bebê reborn como inimigo imaginário
Entre os PLs monitorados pelo ISER no mês anterior, maio de 2025, apareceu um tema inusitado que foi bastante explorado em mídias sociais no período: o dos bebês reborn – bonecas realistas, utilizadas por colecionadores(as), por mulheres em luto ou por pessoas com condições psiquiátricas específicas. Conforme o boletim publicado em Religião e Poder registrou, os projetos partiam da suposição de que tais bonecas estariam sendo utilizadas para acessar benefícios e serviços destinados a crianças de colo, como prioridade em filas e atendimento preferencial.
Em junho de 2025, os bebês reborn voltaram a aparecer como objeto de PLs. Dentro do tema de proteção à infância, o PL 2685/2025, de autoria do deputado cristão Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), busca alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de1990), com o acréscimo do art. 241-F. No texto, o parlamentar tipifica como apologia à pedofilia o conteúdo audiovisual envolvendo bonecos com aparência infantil, uma iniciativa que, segundo o parlamentar, busca proteger os direitos da criança e do adolescente. O inteiro teor do projeto afirma que “A popularização de bonecos hiper-realistas com traços infantis — como os chamados bebês reborn — tem sido deturpada por indivíduos que produzem ou consomem conteúdos simulando atos sexuais ou libidinosos com esses objetos.”
O projeto parte da suposição de que tais objetos estariam sendo usados por indivíduos para simular atos sexuais ou libidinosos, mesmo sem apresentar dados ou investigações consistentes que sustentem a ocorrência de tais práticas em escala relevante. A medida revela, assim, um uso moralizante da legislação penal, baseado mais em imaginários coletivos do que em evidências concretas.
A criminalização do simbólico, como neste caso, opera como dispositivo de vigilância cultural e reforço de pânicos morais, sobretudo quando associada à defesa da “infância em perigo”. Mais uma vez, a proteção da criança é mobilizada não para ampliar seus direitos, mas para justificar controles sobre corpos, práticas e expressões — inclusive quando inexistem vítimas reais.
Calendários oficiais e religião: a patrimonialização da fé cristã
O mês de junho também mobilizou um tema frequente no monitoramento de PLs na Câmara Federal pelo ISER: a inscrição de datas comemorativas e homenagens religiosas no calendário oficial brasileiro — estratégia recorrente de ocupação simbólica do Estado por valores cristãos, especialmente os relacionados a evangélicos.
Entre os destaques estão o PL 3124/2025, que propõe o reconhecimento do grupo gospel “Renascer Praise”, da Igreja (Pentecostal) Renascer em Cristo, como manifestação cultural nacional, de autoria do deputado evangélico Ribamar Silva (PSD-SP) . Também o PL 3061/2025, proposto pelo deputado José Airton Félix Cirilo (PT-CE), sem identidade religiosa declarada, que busca instituir o Dia Nacional do Estado Laico. Os dois projetos revelam, por caminhos distintos, o embate entre direita e esquerda na forma da defesa de expressões religiosas institucionalizadas e da tentativa de reafirmar a laicidade como princípio constitucional.
Importa recordar que, durante a 33ª Marcha para Jesus (2025), o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), sancionou no dia 19 de junho, a lei que reconhece oficialmente a banda gospel Renascer Praise como patrimônio cultural imaterial do Estado de São Paulo. Essa sanção se articula com o projeto de lei de autoria do deputado Ribamar Silva (PSD-SP), voltado a formalizar a banda como manifestação cultural nacional.
Outros projetos, como o PL 3031/2025, da deputada católica Simone Marquetto (MDB-SP), que propõe a Rota Turística Nacional da Fé, ou os projetos da deputada evangélica Coronel Fernanda (PL-MT) — que instituem o Dia Nacional da Mulher Cristã (PL 2807/2025), o Dia da Policial Militar Feminina (PL 2806/2025) e o Dia da Mulher Rural (PL 2805/2025) — articulam religião, segurança pública e valores conservadores como elementos centrais da identidade nacional.
A patrimonialização simbólica da fé cristã, especialmente em sua vertente evangélica, não apenas normatiza o calendário público, mas reforça uma ideia de “cultura nacional”, que exclui outras formas de espiritualidade — sobretudo as afro-brasileiras e indígenas —, em flagrante afronta à pluralidade e à laicidade do Estado, conforme já foi destaque no boletim de maio de 2025.
Religião e Forças Armadas: a disputa por legitimidade institucional
A disputa por espaço institucional também se expressou no campo das Forças Armadas, com dois projetos que evidenciam perspectivas antagônicas sobre religião, Estado e privilégios. De um lado, o PL 3135/2025, de autoria do deputado católico Eduardo da Fonte (PP-PE), propõe a isenção da taxa do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) para eventos religiosos sem fins lucrativos, reforçando a ideia de excepcionalidade da prática religiosa no uso de bens culturais. O ECAD é a entidade responsável pela cobrança e distribuição de direitos autorais de execução pública de músicas no Brasil — ou seja, ele assegura que compositores, intérpretes e produtores recebam pelos usos comerciais de suas obras. A proposta, ao desonerar celebrações religiosas dessa contribuição, reforça o argumento de que a prática da fé deve operar fora das exigências comuns do mercado cultural — ainda que muitas dessas celebrações envolvam grandes estruturas, artistas contratados e amplificação midiática.
De outro, o PL 2741/2025, de autoria do deputado evangélico Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), propõe garantir que sacerdotes de religiões não cristãs possam integrar os quadros de assistência religiosa das Forças Armadas (capelanias). A proposta responde a uma lacuna histórica de exclusão institucional de espiritualidades de matriz africana, indígenas e outras tradições, revelando o quanto o aparato estatal ainda opera sob uma lógica que privilegia as tradições cristãs.
Ambos os projetos demonstram como o campo religioso continua sendo central na disputa por legitimidade e reconhecimento institucional — seja por isenções, seja por inclusão. O que está em jogo é a forma como o Estado brasileiro reconhece (ou nega) o pluralismo religioso em sua estrutura normativa e simbólica.
Como citar
ROCHA, Carolina et al.. "Moralidade, violência e fé: o Legislativo como espelho de disputas simbólicas neste junho de 2025". Religião e Poder, 22 jul. 2025. Disponível em: . Acesso em: .
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