É um equívoco associar este eleitorado, majoritariamente pobre, negro e feminino, ao autoritarismo e ao conservadorismo

Este texto foi originalmente publicado no Nexo Jornal na seção Políticas Públicas em 21/10/2021.

Pesquisa recente do Datafolha indicou uma queda significativa no apoio do segmento evangélico a Bolsonaro. Hoje, 29% dos evangélicos avaliam o governo como ótimo ou bom. No início de 2021 eram 40%. A pesquisa também revelou que essa mesma fatia do eleitorado, que no segundo turno de 2018 depositou 70% dos votos válidos em Bolsonaro, atualmente encontra-se dividido: 43% dos evangélicos votariam em Bolsonaro e 44% em Lula. 

Esses números foram divulgados uma semana após o 7 de setembro, dia em que se celebra a Independência do Brasil. Este ano, a data foi marcada por manifestações populares, à direita e à esquerda, em várias capitais do país. 

Lideranças religiosas conservadoras apoiaram as manifestações convocadas por Bolsonaro. Não apenas evangélicos, dos pentecostais aos históricos, incluindo os calvinistas que ocupam cargos importantes no Executivo e no Judiciário, mas também católicos. Vídeos convocatórios de padres e pastores foram amplamente divulgados nas mídias sociais e incentivaram os fiéis a saírem às ruas “em defesa da liberdade e do Brasil”. 

Por parte das lideranças, aliados clássicos de Bolsonaro, como o pastor Silas Malafaia, foram às ruas. Outras, como os membros da família Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, a mesma da Ministra Damares Alves, não fizeram referência aos atos nas mídias sociais. Entretanto, aproveitaram a data para orar pelo Brasil e publicar imagens e fotos com referências à bandeira nacional. Este, inclusive, tem sido um recurso comum entre aqueles que não querem se associar diretamente a Bolsonaro mas não hesitam em surfar no sucesso dos signos e símbolos do bolsonarismo. Por fim, aquelas que não se associaram aos atos, mesmo que simbolicamente, como Edir Macedo e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). 

A relação entre Macedo e Bolsonaro anda estremecida devido à falta de esforços por parte do presidente em mediar os conflitos que culminaram na deportação de pastores, perda de templos e processos judiciais contra a IURD em Angola. A tentativa tardia de negociação realizada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que viajou ao país em julho passado para pedir ao presidente angolano que recebesse uma comitiva de deputados evangélicos, falhou. 

A forte mobilização das lideranças, no entanto, não se traduziu em um número representativo de fiéis nas ruas. Levantamento realizado nas manifestações de São Paulo pelo pesquisador Pablo Ortellado apontou o predomínio de homens, brancos, de classe média ou alta, escolaridade superior e cristãos. Evangélicos e católicos eram 37% e 36% dos presentes, respectivamente. 

A ausência notória de lideranças aliadas, bem como daquelas que mais representam o segmento evangélico, as mulheres pobres e negras, revelam algumas pistas para entendermos por que não é razoável relacionar diretamente a eleição de Bolsonaro ao pertencimento evangélico.

O que é ser evangélico, afinal?

As imagens do 7 de setembro revelam duas questões. Primeiro, que as lideranças evangélicas têm disputas internas que se sobrepõem às tentativas de construção da imagem do Brasil como uma “nação cristã” (Machado, 2018; Sant´Anna, 2017), que ganhou ainda mais força no governo Bolsonaro. A produção dessa unidade envolve elementos estéticos, teológicos, culturais e discursivos como, por exemplo, a alusão à ideia de nação/pátria e à noção de inimigo, além da mobilização de práticas religiosas ordinárias, como jejuns e orações, em prol desse imaginário coletivo. No entanto, essas mesmas lideranças parecem se esquecer que a produção dessa unidade exige a adesão de um elemento fundamental: os fiéis. Eis aí o segundo ponto.

Analistas da religião não se cansam de afirmar que o segmento evangélico não é homogêneo e monolítico. De acordo com o Censo 2010, 86,5% da população brasileira se identificava como cristã, sendo 22% como evangélica. Naquela altura, 5% dos evangélicos não estavam vinculados a uma denominação religiosa. Depois dos cristãos, como segundo maior segmento religioso, estavam os “sem religião”, somando 8% da população, o que não significa que sejam pessoas desprovidas de crenças ou moralidades religiosas.

De lá para cá, a composição do campo religioso brasileiro mudou – segundo pesquisa do Datafolha de 2019, 31% da população brasileira se identifica como evangélica –  e mudaram também as formas de se vivenciar a religião. 

Além dos evangélicos “sem igreja” e daqueles que pertencem a mais de uma denominação religiosa, acompanhamos, na última década, a consolidação dos grandes ministérios evangélicos, muitos liderados por mulheres, como no caso de Flordelis. Com a popularização da internet, assistimos a emergência de influenciadores espirituais que utilizam as tecnologias como meio de comunicação com fiéis e de mediação com o divino, além de artistas que evangelizam pela música, pelo teatro, pela dança, pelo cinema. Multiplicam-se reuniões mais íntimas para estudos da Bíblia, as “células”, além de cursos online para estudo do cristianismo. 

Já as ações de assistência social, em toda a sua multiplicidade, assumiram uma  centralidade incontornável na religiosidade evangélica. Trata-se de um conjunto de práticas, igualmente importantes para quem dá e para quem recebe, que ajuda a construir noções de cidadania, igualdade e justiça social. Por fim, os movimentos identitários que também ganharam destaque entre fiéis, sobretudo aqueles que articulam cristianismo, raça e gênero. Em resumo, falar sobre evangélicos no Brasil hoje exige considerar uma infinidade de práticas que nem sempre são controladas pelas lideranças das megaigrejas. 

E o conservadorismo com isso?

O Brasil não se tornou mais conservador apenas porque se tornou mais evangélico. Texto clássico de Antonio Pierucci (1987) demonstra que pautas conservadoras já eram levantadas desde a redemocratização: a ameaça comunista, o desprezo pelos Direitos Humanos e a defesa da família heteronormativa já estavam lá.  

Como afirma Almeida (2018), a religiosidade evangélica – e aqui seria importante falar também em católicos -, é uma das linhas de força do novo conservadorismo brasileiro. De todo modo, não é razoável pensar que 31% da população que se identifica como evangélica apoia o autoritarismo e despreza os diferentes.

Vale lembrar também que os evangélicos são em sua maioria a população mais pobre do país. Eles experimentaram uma piora nas condições de vida a partir de 2010, mas uma piora ainda mais significativa no governo Bolsonaro. E apesar de óbvio, em alguns momentos é preciso lembrar que os evangélicos são pessoas comuns que querem comer, trabalhar, ter um custo de vida mais baixo e direitos sociais assegurados. E não é esse o cenário atual. 

No mais, é possível dizer que parte do eleitorado religioso não votou em Bolsonaro devido à defesa que ele fazia da agenda moral, mas porque ele se apresentou como parte da “nova política” – o que também não se confirmou. O núcleo duro de apoiadores que votou em Bolsonaro porque ele era a encarnação do conservadorismo de direita continua aí, ainda que diminuindo, e não é composto pela massa evangélica.

Por isso, antes de se surpreender com a queda do apoio dos evangélicos ao governo, é urgente considerar que este segmento é majoritariamente pobre, negro e feminino. Associar autoritarismo e conservadorismo a essa imagem é um equívoco. Deslegitimar as políticas de assistência, escuta e cuidado oferecidas pelas igrejas ou questionar sua importância para a autonomia das mulheres também é. Depois, considerar que aquilo que os próprios crentes dizem viver e reivindicar, suas contradições e ambivalências, é tão relevante quanto os discursos das lideranças para entender os sentidos atribuídos ao cristianismo e os reais impactos eleitorais disso.

Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.

Foto: Marcos Corrêa/Presidência da República

Bibliografia

Almeida, R. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangélicos e a crise brasileira. Novos Estudos Cebrap , v. 38, p. 185-213, 2019.

Machado, C. Evangélicos, mídias e periferias urbanas: questões para um diálogo sobre religião, cidade, nação e sociedade civil no Brasil contemporâneo. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 33, p. 58-80, jan./jul. 2018.

Pierucci, A. “As bases da nova direita”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 19, pp. 26-45, dez. 1987

Sant´Anna, R. A nação cujo Deus é o Senhor: a imaginação de uma coletividade evangélica a partir da Marcha para Jesus. 2017. 263 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.