O processo de consolidação de um “estado pós-democrático” no Brasil (conceito da cientista política Chantal Mouffe, 2019), via escalada político-institucional, chega a um momento-chave: a nomeação de um ministro evangélico ao Supremo Tribunal Federal (STF). O momento é decisivo não apenas por ser fruto de uma das principais articulações políticas do atual governo – a aliança com a hegemonia evangélica -, mas também por concretizar a presença de evangélicos conservadores nas três esferas do poder. Ao indicar a nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF, o presidente Jair Bolsonaro recoloca no debate público a já conturbada relação entre esse segmento religioso e a já fragilizada construção da democracia brasileira.

Religião e Direito constituem dois dos elementos ideológicos mais decisivos das sociedades contemporâneas. Supostamente, de um lado, deveríamos ter os mitos, os ritos, as crenças e a transcendentalidade; do outro, a técnica, a secularização e a neutralidade. Em outras palavras, se religião é aquilo que cada indivíduo deveria exercer na intimidade, o direito deveria ser técnico, e os agentes estatais  – juízes, legisladores etc. –  imparciais, como nos lembra Alysson Mascaro (2021).

Ocorre que leituras desse tipo sobre religião e direito estão longe da realidade. Já demonstrei em outro texto com Fellipe dos Anjos (2020) ser possível dizer que “o Estado brasileiro é cristão”. Por isso, pensar o espaço público nacional inclui compreender como as dinâmicas  religiosas se articulam com o Estado. De forma semelhante, também o direito não é neutro. O Brasil é palco de importantes guerras jurídicas nas disputas sobre direitos sexuais e reprodutivos, discussões de gênero e direitos humanos, por exemplo. Além disso, o próprio STF reconheceu que o direito pode ser uma tecnologia estratégica para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo, configurando aquilo que a literatura especializada chama de “Lawfare”, como demonstrado por  Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim (2020). 

Com efeito, este texto não trata de mera crítica em torno da posição teológica e ideológica de quem quer que seja, afinal, há (e sempre houve) outras representatividades religiosas presentes no Supremo Tribunal Federal. No entanto, se a questão aqui não é a confessionalidade do novo ministro, afinal, qual seria ela? 

Em 10 de julho de 2019, durante culto evangélico na Câmara dos Deputados, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o estado é laico. O estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares [Alves, ministra]: Nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal [STF]. Um deles será terrivelmente evangélico“. 

Aqui encontramos uma questão interessante, uma vez que o presidente fez um recorte específico no tipo de identidade religiosa do futuro ministro. Não bastava ser evangélico, deveria ser terrivelmente evangélico. Dessa forma, Jair Bolsonaro sinalizou para os concorrentes à vaga e às lideranças religiosas apoiadoras que o próximo ministro deveria levar à cabo seus projetos políticos. 

Embora tenha ocorrido uma intensa disputa entre o presidente do Superior Tribunal de Justiça Humberto Martins,  o atual procurador-geral da República Augusto Aras e o atual advogado-geral da União e ex-Ministro da Justiça André Mendonça, este último venceu a disputa apesar das evidentes dificuldades que enfrentará no Senado

Se, por um lado, Bolsonaro tem uma dívida com os apoiadores evangélicos que foram fundamentais para sua eleição, por outro, o anúncio de André Mendonça para a cadeira no STF consolida, como chamou atenção Brenda Carranza (2020), mais um passo de uma ala extremamente conservadora do segmento evangélico em direção à presença institucionalizada nos três poderes.

André Luiz de Almeida Mendonça, 45 anos, é doutor em Estado de Direito e Governança Global e mestre em Estratégias Anticorrupção e Políticas de Integridade pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Possui também pós-graduação em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB) e trabalhou como advogado concursado da Petrobras entre 1997 e 2000. Desde 2000, é Advogado da União (AGU). Dentro da AGU atuou em vários setores, ocupando cargo de corregedor-geral e vice-diretor da Escola Superior, por exemplo. Entre 2019 e 2020 foi nomeado Advogado-Geral da União. De 2020 a 2021 foi ministro da Justiça e Segurança Pública. No final de março de 2021, retornou ao cargo de advogado-geral da União. 

Desde que assumiu o comando da AGU, Mendonça passou a ser uma das principais referências jurídicas da Bancada Evangélica. Foi, inclusive, um dos conferencistas do VII Congresso Internacional da Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) sobre Liberdades Civis Fundamentais “Liberdade Religiosa, Liberdade de Expressão e Objeção de Consciência”, que ocorreu no Superior Tribunal de Justiça, Brasília, em maio de 2020. André Mendonça teve seu nome apoiado oficialmente pela ANAJURE, organização que também apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018, como analisou Christina Vital (2020). 

Além da carreira jurídica, o futuro ministro do STF (caso passe pela sabatina no Senado) também é pastor na Igreja Presbiteriana Esperança, em Brasília. Isso significa que, além das clássicas figuras pentecostais e neopentecostais que se relacionam com o governo federal, como Silas Malafaia e Edir Macedo, a indicação de Mendonça traz à tona a influência de outros setores do segmento evangélico, como já destacado por Alexandre Brasil (2019). Ligado à Igreja Presbiteriana do Brasil, Mendonça tem grande interlocução com os “evangélicos históricos”, como batistas, presbiterianos e metodistas. Recentemente, Magali Cunha (2021) demonstrou que evangélicos históricos alcançaram proeminência no governo Bolsonaro e Ronilso Pacheco chamou atenção para um “avanço silencioso” de representantes deste mesmo segmento no governo federal. André Mendonça é, sem dúvida, um dos representantes mais destacados deste recorte evangélico no governo e trabalhou pelo nome de Milton Ribeiro para o comando do Ministério da Educação. Ribeiro, também é pastor presbiteriano e assumiu o MEC em julho de 2020.

Por fim, importante mencionar que Mendonça deu inúmeras provas de lealdade ao presidente Jair Bolsonaro em sua passagem pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Por diversas vezes, o indicado à cadeira no STF acionou a Polícia Federal para investigar opositores do presidente com base na Lei de Segurança Nacional. Entre os alvos de inquéritos solicitados, estão Ciro Gomes, o colunista do jornal Folha de S.Paulo Hélio Schwartsman, o cartunista Ricardo Aroeira e Guilherme Boulos. Mendonça mantém uma postura ideológica alinhada à de Bolsonaro e sempre assina peças judiciais do interesse do presidente. 

Inclusive, após quase um ano como Ministro da Justiça, Bolsonaro determinou o retorno de Mendonça à chefia da AGU justamente porque seu sucessor no cargo, José Levi, não atendeu com a mesma fidelidade os pedidos do presidente.Um exemplo é o caso no qual Levi se recusou a assinar contestação de decretos estaduais a respeito de lockdowns dirigida ao STF. 

A cartada decisiva de Mendonça foi no julgamento sobre a realização de missas, cultos e demais celebrações religiosas durante a pandemia de covid-19, realizada no STF em 07 de abril de 2021. Mendonça citou a Bíblia para defender a liberação de cultos religiosos na pandemia, à revelia de sua própria tradição teológica que valoriza uma relação mais direta com Deus em detrimento de templos. Nas palavras do próprio João Calvino: “por esta razão São Paulo concluiu que somos templos de Deus, por seu Espírito que habita em nós […]. E o mesmo apóstolo com idêntico sentido algumas vezes nos chama templos de Deus e outras, templos do Espírito Santo” (1967). Em sua fala de 15 minutos em plenário, o então advogado-geral da União argumentou que o julgamento no tribunal não seria “discussão política”, mas uma discussão de fé. Mendonça, inflamado por uma performance pastoral, não se prendeu  aos ritos comuns a uma sustentação oral na tribuna do STF, além de não poupar esforços para mostrar ao presidente da República que estaria disposto a instrumentalizar sua fé para servir aos interesses políticos do governo federal. 

A nomeação de André Luiz de Almeida Mendonça,  sinaliza a concretização da presença de evangélicos fortemente conservadores na mais alta corte do país. As pesquisas do Instituto de Estudos da Religião (ISER), apontam uma presença significativa desse segmento no Legislativo. No Executivo, o governo Bolsonaro também se caracteriza por uma importante presença evangélica nos Ministérios e em cargos do segundo escalão do governo. E, agora, um ministro “terrivelmente evangélico” no Supremo Tribunal Federal coroa os esforços de ocupação do Judiciário fortemente impulsionados pela pressão de lideranças religiosas e pela atuação da ANAJURE. Finalmente, como tem sido sugerido reiteradas vezes pelo presidente Jair Bolsonaro, poderemos falar de um “ativismo judicial” caso o Senado endosse o nome de André Mendonça ao cargo no STF. 

João Luiz Moura é mestre em ciências da religião, pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Tem pesquisado religião, economia política e direito.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

REFERÊNCIAS:

Mascaro, Alysson Leandro. Lawfare e Crítica. Disponível em https://editoracontracorrentehome.wordpress.com/2020/01/09/lawfare-e-critica/ acesso em 10.07.2021 

DOS ANJOS, Fellipe; MOURA, João Luiz. Contágio Infernal: o apocalipse bolsonarista-evangélico. São Paulo: Editora Recriar, 2020.

ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. 

PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

CARRANZA, Brenda. Nomeação de Mendonça fecha um círculo de aparelhamento evangélico no governo. Disponível em https://apublica.org/2020/04/nomeacao-de-mendonca-fecha-um-circulo-de-aparelhamento-evangelico-no-governo/ acesso em 09.07.2021

VITAL DA CUNHA, Christina. Governo Bolsonaro e ANAJURE: barganhas religiosas entre judiciário e política. Disponivel em https://medium.com/religi%C3%A3o-e-cultura/governo-bolsonaro-e-anajure-barganhas-religiosas-entre-judici%C3%A1rio-e-pol%C3%ADtica-27542aea8e1f acesso em 12.07.2021

FONSECA, Alexandre Brasil. Discursos Evangélicos de uma Nova Direita Cristã à Brasileira. São Paulo: Editora UNIFESP, 2019.

CALVINO, Juan. Institución de la religion cristiana. Traducida y publicada por Cipriano de Valera em 1597 por Luis de Usoz y Rio em 1858. Nueva edicion revisada em 1967. Países Bajos: FuNdacion Editorial de Literatura Reformada, 1967. vol. I e II.

MOUFFE, Chantal. Por um Populismo de Esquerda. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.