Pouco tempo depois de assumir a Prefeitura do Rio de Janeiro, em abril de 2017, Marcelo Crivella viajou à África do Sul para um evento religioso no feriado da Páscoa. Durante a viagem, participou de cultos em estádios em Johanesburgo, Durban e na Cidade do Cabo, onde foi apresentado publicamente como Bispo. Poucos meses antes, entretanto, durante a campanha eleitoral que o elegeu, em 2016, Crivella fez questão de se apresentar publicamente apenas como missionário e ex-bispo, na tentativa de dissuadir o eleitorado da ideia de que a Igreja Universal do Reino de Deus, de onde se licenciou para assumir a cadeira no Senado, em 2003, teria ingerência em seu eventual mandato.
Após a eleição, no entanto, chegou à África do Sul como Bispo, foi recebido e ovacionado por uma multidão de sul africanos e participou de eventos onde cantou músicas religiosas e conduziu orações. Um deles, inclusive, contou com a participação do presidente do país, Jacob Zuma. Nas imagens de vídeo divulgadas pelo próprio Crivella, é possível observar sua entrada triunfal em um estádio completamente lotado, onde caminhou em direção a um altar improvisado no qual o aguardavam um púlpito, uma cruz e o premiado coral sulafricano da IURD.
Em resposta às críticas que recebeu à época, Crivella alegou serem injustas, segundo ele, por se tratar de uma viagem pessoal – feita com dinheiro próprio – e por ter sido criticado por professar sua fé. Ainda que acionando o âmbito do “privado” para justificar a viagem, Crivella não hesitou em publicar o vídeo em sua página pública do Facebook, onde se apresentava, naquela altura, como prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
A relação de Marcelo Crivella com a África do Sul, sabemos, não é novidade. O fato foi altamente explorado durante a campanha à prefeitura em 2016, tanto por ele – para enfatizar sua experiência como missionário responsável por cuidar das pessoas -, quanto pela oposição – que atribuía a ele a pecha de intolerante por demonizar a cultura local. De fato, Crivella foi um dos responsáveis pelo projeto de expansão da IURD no continente africano e seu nome é conhecido não apenas entre fiéis da África do Sul, mas também de Moçambique e Angola, por onde também transitou ao longo de quase uma década de trabalho para a igreja a partir de 1992.
Após séculos de conflitos que incluíram processos violentos de colonização, luta anticolonial, apartheid e guerras civis que se seguiram ao processo de descolonização, a Universal encontrou no continente africano territórios devastados e pessoas de diferentes etnias e trajetórias tendo que se reconstruir subjetivamente e se reconhecer como parte de uma nação, uma tarefa nada fácil. Na legenda do vídeo citado acima, Crivella deu algumas pistas sobre a atuação da IURD no país ao escrever, referindo-se ao cenário sulafricano: “Quando cheguei negros e brancos ainda viviam separados pela barreira do preconceito. A fé em Deus uniu a todos”.
E foi isso, de fato, o que a IURD buscou fazer. A igreja soube capitalizar a seu favor os conflitos e divisões internas que encontrou em diferentes países. Apresentou-se publicamente como instituição aliada na luta pela união nacional a partir de valores morais mediados pela igreja. Teologia da Prosperidade, fé racional, foco, determinação, empreendedorismo, guerras espirituais e supressão das diferenças foram anunciados como o conjunto ideal de soluções para a construção de nações prósperas e unidas. Em alguns países a estratégia de inserção funcionou mais do que em outros. Em Moçambique, onde realizei trabalho de campo entre 2014 e 2015, ela se mostrou bastante eficaz e se mantém estável até hoje.
No entanto, como argumentei em outros textos (Reis, 2018, 2019), o apoio de governos locais se mostrou imprescindível para o sucesso e ampliação dos trabalhos da IURD nos lugares onde se instalou com sucesso. Por outro lado, para além de governos e igreja, essa equação precisa considerar, ainda, um elemento indispensável: os fiéis. Em Moçambique, por exemplo, o trabalho da IURD era bem recebido e valorizado pelos fiéis que colaboraram com a minha pesquisa, mas alguns descontentamentos já apareciam em seus relatos. Para além das já clássicas acusações de estelionato e curandeirismo, enfrentadas pela IURD onde quer que ela chegue devido à relação explícita que mantém com o dinheiro, ouvi de interlocutores moçambicanos com os quais continuei mantendo contato, em 2018, acusações de racismo (por priorizar brasileiros em detrimento de africanos em cargos de liderança), de controle de natalidade (a IURD recomenda a seus pastores que tenham número reduzido de filhos e que façam vasectomia), além da falta de transparência financeira por parte da IURD. Muitas dessas pessoas acabaram se afastando da igreja e uma delas me relatou ter sofrido humilhação, perseguição e injustiças pelo Bispo Honorilton Gonçalves, líder da IURD em Moçambique à época. Cerca de um ano depois, ele foi enviado a Angola para tentar solucionar a crise que se concretizou por lá.
Em 2019, uma revolta em São Tomé e Príncipe resultou em uma morte e na depredação de templos da IURD no país. De acordo com matéria da BBC, o estopim dos acontecimentos ocorreu em setembro de 2019, quando um pastor são-tomense da Universal foi preso na Costa do Marfim, acusado de ser o autor de mensagens que denunciariam supostos abusos da igreja contra funcionários africanos. No mesmo ano, uma ala de bispos e pastores de Angola rompeu com Edir Macedo e assumiu o controle de cerca de 200 igrejas no país.
Aqui, mais uma vez, a relação com o governo local fez diferença. Entre 1979 e 2017, Angola foi governada por José Eduardo dos Santos, mas, a partir de 2017, com a chegada de João Lourenço à presidência, a situação da IURD no país tornou-se mais delicada. Embora a relação com o governo anterior tenha sido permeada por conflitos, o governo atual demonstrou apoio ao grupo de pastores revoltosos e legitimou suas ações. Como se não bastasse, a atuação do governo brasileiro em favor da IURD foi bastante tímida. Segundo matéria da revista Veja, Jair Bolsonaro enviou uma carta ao presidente de Angola João Manuel Lourenço, manifestando “preocupação” com os “recentes episódios” e pedindo uma proteção maior aos membros brasileiros da igreja “a fim de garantir sua integridade física material e a restituição de propriedades e moradias”. “Julgamos ser preciso evitar que fatos dessa ordem voltem a produzir-se ou sejam caracterizados como consequência de ‘disputas internas”’, dizia o texto divulgado nas mídias sociais pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP).
As tentativas de negociação, entretanto, foram frustradas. Nos últimos meses, pastores brasileiros, incluindo o Bispo Gonçalves, sofreram processos de investigação por evasão de divisas, lavagem de dinheiro, discriminação e imposições de vasectomia em pastores – as mesmas denúncias que já haviam sido reportadas por meus interlocutores em Moçambique e que certamente ganharam novo fôlego com a sucessão dos fatos em Angola. Muitos outros foram deportados. Além disso, a RecordTV Africa, canal com altos índices de audiência que transmitia conteúdos produzidos pela Record em Angola e no Brasil, teve seu sinal interrompido no país. Segundo matéria da revista Carta Capital, a interrupção da Record teve ingerência direta do governo de Angola, tendo sido ordenada pelo Ministério de Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social (MINTTICS), sob alegação de infrações às leis de telecomunicações do país.
O descontentamento de Edir Macedo com a condução das negociações junto ao governo de Angola levantou no Brasil um burburinho de que a IURD deixaria a base do governo Bolsonaro. A pauta do caso IURD em Angola, inclusive, foi levada por membros da Frente Parlamentar Evangélica ao Ministro das Relações Exteriores, Carlos França. Dias depois, foi confirmada pelo Itamaraty a indicação de Crivella ao cargo de embaixador do Brasil na África do Sul. Tudo isso após o ex-prefeito ter sido preso antes mesmo de deixar o cargo, no fim de 2020, acusado de chefiar o “QG da Propina” na prefeitura carioca, e apesar do fato de ter seu passaporte em posse da justiça.
Concluo este texto dizendo que recuperar brevemente a trajetória de Crivella e da IURD no continente africano tem por objetivo chamar atenção para um fato importante. Em geral, pesquisadores, jornalistas e a própria opinião pública costumam avaliar negativamente a forma como muitas denominações religiosas utilizam o espaço da igreja para eleger seus pupilos para cargos políticos. A despeito das críticas serem legítimas, de que essa é uma prática proibida por lei e de que existe, obviamente, uma instrumentalização da religião pela política, o raciocínio naturalmente encontrado nas análises é de que as igrejas têm como finalidade última alcançar maior poder político.
No entanto, o caso Crivella nos mostra os caminhos pelos quais a IURD mobilizou políticos, religiosos ou não, para garantir, fortalecer e expandir seu poder religioso mundo afora. Em outras palavras, a instrumentalização da política pela religião é a outra direção dessa via de mão dupla que deve ser observada mais atentamente. A aposta alta de Bolsonaro com a indicação de Crivella ao cargo de embaixador na África do Sul é a sinalização, para a IURD, de que ela pode contar com o poder político para assegurar seu poder religioso no continente africano, mas também por aqui. No fim das contas, é isso o que importa e é também o que está em risco agora.
Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.
Foto: Marcelo Piu