Parte significativa dos projetos de lei apresentados na Câmara Federal e monitorados pelo ISER propõe a tipificação de crimes e/ou aumento de penas, além de mais armas, e tentam conter os avanços relacionados a direitos de minorias garantidos por Decretos e Portarias do Poder Executivo em 2023. O Monitoramento do ISER receberá atualizações mensais e a lista de projetos para download pode ser acessada aqui.

Em artigo anterior escrito por Matheus Pestana e Laryssa Owsiany, publicado na plataforma Religião e Poder, o núcleo de Religião e Política do ISER apresentou sua metodologia para o monitoramento da Câmara Federal na 57ª Legislatura, cujos dados serão agora analisados, e ofereceu uma breve explicação sobre as etapas dos processo legislativo por que passam os projetos protocolados. 

É importante destacar que nosso sistema de monitoramento identifica, apenas, projetos de lei que atendam aos critérios temáticos de nosso interesse – todos relacionados a moralidades e temas relevantes para comunidades ou atores religiosos -, o que exclui projetos com foco em outras pautas, como execução orçamentária, por exemplo. 

Entre 1 de fevereiro e 12 de maio de 2023, o sistema de monitoramento identificou 2.535 Projetos de Lei. Deste total, 463 foram classificados como pauta de interesse para identificar conflitos, disputas e narrativas sobre temáticas que tangenciam valores, comunidades ou atores religiosos. Ao final dessa primeira análise, que marca os cem primeiros dias de legislatura, foi possível avançar em nossa metodologia inicial e identificar 15 categorias analíticas para enquadrar e analisar os projetos apresentados. Entretanto, reconhecemos que novas categorias podem surgir no decorrer da legislatura, de modo que esse número pode se tornar maior. 

As 15 categorias centrais são: 1) Direitos da Mulher; 2) Crimes e Segurança Pública; 3) Causa animal; 4) Ameaça ao Estado Democrático de Direito; 5) Imigração; 6) Educação; 7) Política de drogas; 8) Direitos da Criança e do Adolescente; 9) Regulação de mídias; 10) Família; 11) Direitos dos povos indígenas; 12)Direitos Humanos; 13) Calendários oficiais, patrimonialização e homenagens; 14) Religião 15)Direitos Sexuais e Reprodutivos.

Os 463 projetos de lei estão classificados de acordo com seu tema principal, identificado após a análise qualitativa de cada projeto. Como se vê, alguns temas estão contidos uns nos outros, mas optamos por separá-los devido à relevância assumida por determinadas categorias e temáticas para o público religioso, entre comunidade de fiéis, lideranças ou deputado(as). Também é válido lembrar que o ISER vem monitorando candidaturas com identidade religiosa desde as eleições de 2018, de modo que esse acúmulo nos permite identificar quais temáticas são relevantes para o campo. 

Em nossos últimos trabalhos, por exemplo, identificamos a proximidade de candidaturas religiosas conservadoras com policiais e vigilantes, a centralidade da categoria “mulher” nas pautas de campanha de candidaturas com identidade religiosa e a consolidação da causa animal como pauta de campanha no campo conservador. 

Muitas dessas pautas de campanha, como se vê neste levantamento, já se converteram em projetos de lei, mas a maioria dos projetos respondem a fatos sociais relevantes na sociedade, como foi possível verificar nos mais de 15 projetos de lei que preveem acolhimento para mulheres vítimas de violência sexual em boates e casas noturnas – uma resposta ao ocorrido com o jogador de futebol Daniel Alves, acusado de estupro nessa situação -, dos ataques às escolas e da questão indígena, que ganhou relevância após o caso do genocídio do povo yanomami no início de 2023.

Também há um grande número de projetos, 28, que buscam sustar os efeitos de portarias e decretos do Executivo, a maior parte deles protocolados pela oposição ao governo, sobretudo aqueles que versam sobre armas e direitos de minorias, com foco em temáticas sobre raça e gênero. As justificativas dos pedidos de suspensão questionam justamente a legitimidade da categoria “gênero” tal como utilizada pelo governo e também programas que beneficiam minorias políticas, como no caso do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Inter sexos, Assexuais e Outras. Esses pedidos alegam uma suposta violação ao princípio da igualdade, já que tais políticas não seriam destinadas ao restante da população. Esse tipo de justificativa, no entanto, ignora o próprio princípio da isonomia, que garante que a igualdade deve ser real, e não meramente formal, o que implica medidas iguais para os iguais e desiguais para os desiguais.

No próximo tópico, será apresentada uma análise inicial dos projetos de lei apresentados neste período. De uma maneira geral, pode-se dizer que uma parte significativa dos projetos prevê a instituição e o aumento de penas para crimes ou a redução de benefícios penais previstos em lei, além de preverem casos que ampliam o direito ao porte de armas. Estes projetos são majoritariamente propostos por partidos de centro e de direita. Comparativamente, apenas uma pequena parte dos projetos investe em propostas educacionais ou de ressocialização de pessoas que tenham cometido crimes. 

Depois desse primeiro esforço classificatório, o ISER divulgará mensalmente a atualização de nosso monitoramento, cujos dados estão disponíveis para download e podem ser acessados aqui. No gráfico abaixo, é possível verificar o número de projetos relacionados a cada uma das categorias de análise.

Informações gerais

Nosso sistema de monitoramento identificou, nos cem primeiros dias da 57ª Legislatura (2023-2027), um total de 2.535 PLs relacionados aos temas monitorados. Trata-se de um marco significativo que nos permite identificar padrões importantes de atuação da Câmara. Partidos de centro e de direita, por exemplo, apresentaram mais projetos relacionados aos temas monitorados do que partidos de esquerda. Muitos desses projetos, por sua vez, versavam sobre a mesma temática ou não cumprem os requisitos formais para um projeto de lei, o que faz com que eles não avancem no processo legislativo. Os gráficos e tabelas abaixo relacionam a atuação legislativa por ideologia aos temas dos projetos de lei.

ClassificaçãoCentroDireitaEsquerdaTotal
Ameaça ao Estado Democrático de Direito13.3%  (2)60.0%   (9)26.7%  (4)100.0%  (15)
Calendários oficiais, Patrimonialização e Homenagens6.7%  (1)40.0%   (6)53.3%  (8)100.0%  (15)
Causa Animal0.0%  (0)100.0%   (5)0.0%  (0)100.0%   (5)
Crimes e Segurança Pública16.5% (13)75.9%  (60)7.6%  (6)100.0%  (79)
Direitos da Criança e Adolescente23.3% (10)69.8%  (30)7.0%  (3)100.0%  (43)
Direitos da Mulher19.1% (25)52.7%  (69)28.2% (37)100.0% (131)
Direitos dos Povos Indígenas18.2%  (2)45.5%   (5)36.4%  (4)100.0%  (11)
Direitos Humanos5.9%  (2)52.9%  (18)41.2% (14)100.0%  (34)
Direitos sexuais e Reprodutivos10.5%  (4)81.6%  (31)7.9%  (3)100.0%  (38)
Educação20.0% (10)56.0%  (28)24.0% (12)100.0%  (50)
Família0.0%  (0)100.0%   (5)0.0%  (0)100.0%   (5)
Imigração33.3%  (1)0.0%   (0)66.7%  (2)100.0%   (3)
Políticas de Drogas11.1%  (1)77.8%   (7)11.1%  (1)100.0%   (9)
Regulação das mídias28.6%  (6)57.1%  (12)14.3%  (3)100.0%  (21)
Religião0.0%  (0)100.0%   (4)0.0%  (0)100.0%   (4)

Passamos agora a discorrer sobre projetos contidos em cada uma das categorias. A descrição das cores de referência encontradas ao lado do título de cada categoria corresponde à sua classificação na planilha de dados. Optamos por utilizar o recurso das cores para ajudar na visualização dos dados, mas também há, na planilha, uma coluna onde é possível filtrar os projetos de leis pelas categorias nas quais foram classificadas.

  1. DIREITOS DA MULHER

O maior número de projetos de lei apresentados em 2023 versa sobre direitos da mulher, temática quase sempre conectada com as violências de gênero, como violência doméstica e abuso sexual, por exemplo, mas também com propostas sobre paridade de gênero, saúde pública e masculinidades. 

Os 131 projetos aqui elencados têm a categoria “mulher” como foco da proposta de lei. Por ser uma categoria central para o campo religioso, entendemos que isolá-la analiticamente nos ajuda a mapear os movimentos feitos entre os atores deste e de outros campos neste debate fundamental. 

Note-se, entretanto, que a categoria “mulher” é, na maior parte das vezes, utilizada de maneira restritiva e no singular, isto é, incluindo apenas mulheres cis inseridas em um núcleo familiar heteronormativo, ainda que com exceções. Alguns projetos falam abertamente sobre mulheres transexuais e travestis, outros de pessoas em situação de violência doméstica, pessoas com útero e todas as mulheres. O projeto do deputado católico Miguel Lombardi (PL/SP), por exemplo, sobre violência contra a mulher, cita nominalmente pessoas transgênero. As justificativas de cada projeto, entretanto, tratam majoritariamente das experiências de mulheres.

Os projetos classificados nesta categoria, 131, foram, em sua maioria, propostos por deputados ligados a partidos de centro e de direita (95) e preveem o aumento de penas ou tipificação de crimes relacionados a casos de violência doméstica e sexual contra mulheres, ou, ainda, o aumento de situações que autorizam o porte de armas para mulheres. 

Apenas dois deles, por sua vez, previam expressamente educação sexual e de gênero para homens que cometeram violência contra mulheres em sua ementa. O “empreendedorismo feminino” também aparece como pauta sobre direito de mulheres, somando quatro projetos relacionados ao tema apenas nos primeiros cem dias de Legislatura, além de projetos que preveem facilitação de crédito e acessos a financiamentos públicos por mulheres vítimas de violência.

Entre projetos que tematizam a violência doméstica, havia aqueles direcionados a estabelecer novas penas para homens condenados pela Lei Maria da Penha, como, por exemplo, as que proíbem acesso a cargos públicos. Mudanças de leis penais, trabalhistas e administrativas para pessoas condenadas por violência contra a mulher existem entre as propostas, além daquelas que tipificam o crime de misoginia.

Alguns dos projetos de lei direcionados a mulheres vítimas de violência doméstica incluem em seu rol violência sexual contra crianças e adolescentes, mas também descendentes e ascendentes das vitimadas, articulando a discussão com os debates sobre família, infância e direitos dos idosos. 

Há projetos que tematizam questões de saúde pública, como folgas durante o fluxo menstrual, acompanhamento durante consultas médicas para combate a abusos entre outros, e também propostas de equiparação salarial e contra a violência política de gênero. Outra gama de projetos prevê a facilitação de venda de armas de fogo para mulheres, algo que também foi identificado nos projetos destinados a professores e profissionais da educação.

  1. CRIMES E SEGURANÇA PÚBLICA

Já projetos relacionados à categoria “Crimes e Segurança Pública”, o segundo tema de maior investimento dos congressistas, com 79 PLs, evidenciam os impactos do monopólio da direita na temática. Os projetos elencados nessa categoria demonstram que deputados ligados a partidos de direita e de centro não acreditam na ressocialização. Espera-se sempre mais punição para qualquer pessoa que já tenha cometido crimes, inclusive menores infratores, e a inserção de mais crimes no rol de crimes hediondos. 

Os projetos, essencialmente, prevêem penas mais altas ou qualificadoras para alguns crimes, redução de casos de diminuição de pena, redução da maioridade penal ou de benefícios para menores infratores, direito ao porte de armas para categorias profissionais – como no caso de professores, em resposta aos ataques nas escolas ocorridos no primeiro semestre deste ano. A eleição, cada vez em maior número, de membros das polícias e das forças armadas mostra o viés corporativista dessas candidaturas: muitos projetos preveem direitos para militares e policiais, além da militarização das guardas municipais.

Os projetos desta categoria, no geral, também atacam os decretos contra o uso de armas do governo Lula ou pedem para ampliar situações nos quais o uso de armas é liberado. Por fim, alguns projetos abordam o tema da corrupção, preveem crime de responsabilidade para o STF e para discursos anticientíficos e para o desestímulo à vacinação da população.

  1. CAUSA ANIMAL

Discussão que foi identificada em nosso monitoramento sobre candidaturas com identidade religiosa, e que vem ganhando proeminência no debate público, é o da causa animal. Desde o pleito de 2020 ele aparece, em alguns casos, como única plataforma de campanha de candidaturas eleitas para a Câmara, na maioria das vezes ligadas a partidos de direita. 

Trata-se, no entanto, de um apelo à causa animal que não inclui todos os animais: maior atenção é dada aos animais domésticos ou domesticáveis. Com isso, parece haver um descolamento desses atores da pauta ambiental – como no caso da capivara adotada por Agenor em 2023 e retirada do convívio por questões de saúde pública – e maior ênfase na ideia de família, isto é, do animal como sendo parte do núcleo familiar. Não por acaso, há um projeto que propõe o reconhecimento da família multiespécie e outro que ajuda a explicar a adesão à causa animal pela “Teoria do Elo”, que relaciona maus tratos animais a casos de violência doméstica. 

Os cinco projetos classificados nesta categoria versam sobre a proibição do uso de equinos como arma e transporte policial; o reconhecimento da família multiespécie; sobre tornar crime hediondo maus tratos a animais; sobre vítimas de violência doméstica e seus animais de estimação e para proibir uso de fantasias e alegorias feitas de partes de animais no carnaval. Note-se que, neste caso, a proposta do Delegado Matheus Laiola (União/PR) ataca exclusivamente a indústria do carnaval e não outras como a indústria dos cosméticos ou de roupas e vestimentas de luxo, por exemplo.

  1. AMEAÇA AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Outro campo de investida por parte dos congressistas é o de criminalização de movimentos sociais, principalmente os que ameaçam propriedades que não cumprem sua função social. Entre os 15 projetos desse tipo, dez visam criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra ( MST), referindo-se a ele na justificativa, ou outros movimentos sociais que lutam pela reforma agrária e pelo direito fundamental à moradia. 

Tais projetos, evidentemente, têm como objetivo a criminalização e o sufocamento desses movimentos, inclusive com pedidos de enquadramento desses movimentos na lei de terrorismo ou de organização criminosa. Eles se somam ao debate público sobre o MST, que ganhou novo impulso com a abertura da CPI do MST, que acontece atualmente na Câmara, e aos vídeos de criminalização do movimento que circulam entre fiéis católicos e evangélicos e mostram um suposto aumento de casos de invasão de terras por membros do movimento após o início do governo Lula – aumentando a sensação de insegurança relacionado às propriedade privada e a aposta na criminalização de movimentos sociais. 

Esta categoria também agrega os projetos sobre atos contra o Estado Democratico de Direito, em resposta ao ocorrido no 8 de janeiro, e há um projeto de Marcos Pollon ( PL/MS), que altera o “Estatuto do Índio” para impedir o reconhecimento de áreas que ele denomina como “invadidas” como de ocupação tradicional indígena.

  1. IMIGRAÇÃO

A opção por monitorar o tema da imigração se deu, em primeiro lugar, porque muitos trabalhos de assistência social com refugiados são realizados por igrejas. Se, por um lado, a Igreja Católica sempre esteve mais próxima deste trabalho, atualmente é possível notar uma aproximação das igrejas evangélicas deste campo de atuação. 

Dois dos três projetos classificados nesta categoria de análise foram propostos pelo Pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ), com medidas para garantia de direitos a refugiados, tal como destinar vagas ociosas em instituições federais a refugiados e estabelecimento de obrigatoriedade de afixação de cartazes e veiculação de mensagem sonoro nos portos e aeroportos brasileiros sobre o direito de solicitação de refúgio. O terceiro projeto prevê o impedimento de ingresso em território nacional de estrangeiros que publicamente atentem contra a democracia no Brasil.

  1. EDUCAÇÃO

Estão classificados nesta categoria os projetos que têm impactos diretos no ambiente escolar e nos processos educacionais. Diante dos ataques realizados em escolas no primeiro semestre de 2023, a temática foi monopolizada por projetos de lei que preveem “medidas de seguranças” para alunos e professores, como segurança obrigatória armada nas escolas, planos de prevenção a ataques, instituição de botão de pânico, sistemas de monitoramento, instalação de cercas elétricas, instituição de defesa pessoal nas escolas e acolhimento psicológico para alunos e professores, por exemplo. 

Um dos projetos prevê a criação de um núcleo de estudos sobre o tema – o Observatório da Violência nas Escolas – e propõe um estudo sobre o fenômeno social. Os projetos que propõem punição aos crimes cometidos em instituições de ensino e creches estão classificados em “crimes e segurança pública”. Parte deles incluiu ataques a instituições religiosas e hospitais junto com escolas nos pedidos de equiparação a crimes hediondos ou de previsão de aumento de pena, sem considerar, talvez, que a maior parte dos ataques a instituições religiosas ocorre contra terreiros de religiões tradicionais de matriz africana ou indígenas. 

Também existem projetos que prevêem a ocupação de funções de magistério por membros das forças armadas; educação em direitos humanos; coibição da linguagem neutra no âmbito da na educação básica nacional; a proibição de músicas que façam apologia ao crime, projeto que já foi objeto de análise em texto sobre a mobilização da cultura pelo campo cristão evangélico.

  1. POLÍTICA DE DROGAS

Um total de nove projetos tratam diretamente da política de drogas. Essa categoria aparece destacada de “Crimes e Segurança Pública” porque o uso de drogas lícitas e ilícitas é muito tematizado por atores religiosos – seja com discursos de criminalização do uso, seja porque igrejas atuam fortemente no tratamento de dependência química por meio das Comunidades Terapêuticas. 

Além do projeto de Samia Bonfim (PSOL/SP) e Henrique Vieira (PSOL/RJ) que sustava o decreto do governo federal que abrangia a atuação das comunidades terapêuticas, todos os demais foram propostos por partidos de direita. Os projetos preveem a criminalização de marchas a favor da descriminalização do uso de drogas, a instituição de programas nacionais para prevenção de uso de drogas, imposição de obstáculos à execução de políticas públicas para redução de danos, instituição da obrigatoriedade de conteúdo didático pedagógico de tema que envolve a conscientização e prevenção ao consumo e uso de drogas ilícitas e, ainda, aquelas que tornam facultativa –  e não proibida –  a internação compulsória de usuários de drogas por intermédio de políticas públicas de saúde do Poder Público, além daquelas que versam sobre as penas para consumo e tráfico de drogas.

  1. DIREITOS DA CRIANÇA E ADOLESCENTE

Os debates sobre proteção da família, feitos por igrejas e comunidades religiosas são monopolizados, de uma maneira geral, pela discussão sobre proteção de crianças e adolescentes. Conforme pesquisa do ISER, a preocupação com filhos e com seu futuro é central para mulheres evangélicas e a mobilização dessa preocupação está no cerne da produção de pânicos morais no interior de igrejas, como, por exemplo, a ameaça do banheiro unissex, a criminalização de culturas periféricas como o funk, a temática da educação sexual nas escolas e uso da linguagem neutra.

Compõem essa categoria 43 projetos, a maior parte deles tematizando o combate ao abuso sexual infantil, tema muito mobilizado por lideranças e influenciadores religiosos, já tratado em texto da plataforma Religião e Poder. De maneira geral, os projetos preveem penas mais duras para crimes contra crianças e adolescentes (tornar hediondo ou acrescentam qualificadoras), maior proteção aos filhos de vítimas de feminicídio e violência doméstica, a criação do Programa Nacional de Prevenção e Combate à Violência Sexual, o apoio psicológico para crianças e adolescentes vítimas de abuso psicológico, a crianção da Campanha Nacional de Combate ao Assédio e à Violência Sexual praticados contra crianças e adolescentes nos locais de prática desportiva, a proibição de armas airsoft para crianças e proteção com imagens de crianças na internet, além de incluir o atendimento a crianças em Delegacias da Mulher. 

A deputada Sivia Waipi (PL/AP) protocolou um projeto que altera o tipo penal de homicídio relacionado ao estado puerperal e estabelece o infanticídio como o homicídio cometido contra criança.

Vale destacar o projeto do Eros Biondini (PL/MG) para incluir, entre as finalidades das organizações da sociedade civil de interesse público, a promoção, a proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente – uma tentativa de ampliar a atuação das igrejas a exemplo das comunidades terapêuticas.

  1. REGULAÇÃO DAS MÍDIAS

A regulação das mídias tradicionais e digitais voltou ao centro do debate no início desta legislatura devido ao Projeto de Lei 2630/2020, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Os vinte projetos alocados nesta categoria versam principalmente sobre redes sociais, mas também se estendem para a mídia tradicional e jogos eletrônicos. 

Os projetos preveem punição para crimes cometidos na internet, como crime de cancelamento virtual, a garantia da liberdade de expressão na internet, a regulação do acesso a jogos eletrônicos violentos no Brasil e formas especiais de proteção de crianças e adolescentes ao conteúdo digital. 

  1. FAMÍLIA

Embora central nos discursos e nas ações no campo religioso, a categoria “Família” acabou ficando marginalizada nesta análise porque muitos dos projetos que aqui se enquadrariam foram alocados em outras categorias, em virtude de sua especificidade temática, como nos casos daqueles que versam sobre “direitos da mulher” e “direitos da criança e do adolescente”. Sobre esta temática, é importante acompanhar o pedido de alteração dos arts. 26 e 32 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, a fim de incluir entre as comissões permanentes a “Comissão da Criança, Adolescente e Família”, do deputado evangélico Messias Donato (Republicanos/ES). Trata-se de uma medida que acrescenta ao processo legislativo debates de cunho moral que podem dificultar o avanço de direitos de minorias. 

Dos cinco projetos que foram classificados nesta categoria, dois falam sobre a instituição do usucapião familiar; um sobre a Instauração da “Comissão da Criança, Adolescente e Família” na Câmara dos Deputados; uma que prevê bolsa de estudos para dependentes de militares mortos em serviço e a criação de selo “Empresa Amiga da Família”, a fim de fomentar práticas organizacionais em prol da família, projeto que também ajuda a pensar sobre as noções de empreendedorismo disputadas em nossa sociedade.

  1. DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS

De um total de 11 projetos que versam sobre direitos dos povos indígenas, quatro foram propostos por deputados filiados a partidos de esquerda e sete por deputados filiados a partidos de direita. Entre eles, dois projetos propõem a suspensão da portaria Portaria Conjunta – FUNAI/SESAI de 2023 que proíbe o exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas, bem como o uso de roupas com imagens ou expressões religiosas. 

Um projeto dispõe sobre o uso “econômico sustentável em terras indígenas” – propondo modernidade e industrialização de terras indígenas e a defesa do marco temporal, outro defende o uso da Lei Rouanet para projetos em comunidades tradicionais e indígenas. Outro institui Institui a Política Nacional de Saúde, Educação e Assistência Social dos Povos Indígenas, e dois projetos preveem a proibição da realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas. 

A deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL/MG) aparece como autora de três dos quatro projetos de lei propostos pela esquerda, um deles alterando o Regimento Interno para dispor sobre as competências da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais; outro para sustar os efeitos de uma alvará da Agência Nacional de Mineração (ANM) que autoriza pesquisa para busca de ouro em uma área de 9.800 hectares, vizinha à Terra Indígena Yanomami. O terceiro cria o serviço telefônico de recebimento de denúncias – “Disque PARENTE” da Fundação Nacional dos Povos Indígenas-FUNAI – para dar assistência às especificidades dos Povos Indígenas.

  1. DIREITOS HUMANOS

A categoria “Direitos Humanos” inclui toda uma vasta gama de direitos fundamentais, individuais ou coletivos, com destaque para projetos sobre tortura e trabalho análogo à escravidão, pessoas idosas e com deficiência. Também foram enquadradas aqui os projetos sobre a tipificação de crimes de ódio e racismo relacionados a ideologias como comunismo, socialismo, fascismo e nazismo, dependendo do espectro ideológico do deputado proponente. 

O projeto da Coronel Fernanda (PL/MT), por exemplo, enquadra o comunismo como preconceito racial. Já o deputado evangélico Marco Feliciano (PL/SP) protocolou projeto de lei para criminalizar nazismo e crimes de ódio contra o povo judeu. Os 34 projetos classificados nesta categoria demonstram como os “Direitos Humanos” vêm sendo disputados por atores da direita.

Outros projetos propõem projetos educacionais para crime de racismo (ao invés de punição); versam sobre a garantia da liberdade de expressão; sustam portarias dos Ministérios da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, como, por exemplo, o decreto que institui o prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos (neste caso, com uma exaltação à Princesa Isabel na justificativa); tornam hediondo crime análogo à escravidão e outros tipos de penalização (como a proibição de participar de licitaçoes etc); incluem o impedimento de aborto legal como prática de tortura, preveem assistência psisológica a policiais por problemas decorrentes do serviço; instituem o Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política de Gênero e Raça, punição para violência política de gênero; definem objetivos para políticas públicas de igualdade racial e combate à discriminação. 

  1. CALENDÁRIOS OFICIAIS, PATRIMONIALIZAÇÃO E HOMENAGENS

Como exposto em artigo da plataforma Religião e Poder escrito por Izabella Bosisio, calendários oficiais, homenagens e processos de patrimonialização são parte importante das tentativas de construção de uma identidade nacional. As disputas em torno dessas temáticas ajudam a entender as disputas em termos de u  imaginário de nação.  

Dos 15 projetos aqui classificados, quatro têm fundamentação religiosa: o que constitui a Catedral Basílica Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e os eventos e manifestações culturais e religiosas a ela relacionados como Patrimônio Cultural Material e Imaterial do Brasil; o que institui o Dia Nacional da Mulher Cristã; o que institui o Dia Nacional do Cristão Ortodoxo e o que declara a Festa Maranhense do Divino Espírito Santo como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

A instituição do Dia Nacional das Mulheres Rurais, da evangélica Coronel Fernanda (PL/MT), também chama atenção porque reconhece os direitos de mulheres ruralistas e agropecuárias, diferenciando-as dos já conhecidos movimentos de trabalhadoras rurais ligadas a sindicatos e movimentos de esquerda. 

Entre os projetos, há aquele que institui o Dia Nacional da Memória, Verdade e Justiça pelos Crimes contra a Democracia e em defesa das liberdades democráticas, a ser anualmente celebrado no dia 08 de janeiro e o que institui o Dia Nacional da Policial Militar Feminina. Também o que Proíbe homenagem a escravocratas, higienistas ou genocidas no Sistema Nacional de Viação (SNV), em obras de arte, nomeação de Prédios Públicos da Administração Federal e nos Monumentos Nacionais em todo território nacional e altera a Lei nº 6.682/79 e Lei nº 6.682/79, para substituir homenagens a escravocratas, higienistas e genocidas por nomes de eventos ou personalidades históricas cuja ocorrência ou vida tenha sido notabilizada pela defesa de direitos individuais, coletivos ou difusos de pessoas negras ou indígenas. 

Outros projetos versam sobre a instituição do Dia Nacional de Proteção e Combate à Violência às Mulheres Indígenas; do Dia Nacional do Acolhimento Familiar; da Medalha Construtores da Democracia destinada a agraciar pessoas naturais ou jurídicas que, no País, tenham se destacado na promoção da cidadania, na defesa e no fortalecimento das instituições democráticas; do Dia Nacional de Proteção e Combate à Violência às Mulheres Indígenas;do Dia Nacional da Dança Afro-Brasileira; a inclusão do 8 de março no rol de feriados nacional, sobre a inscrição no Livro dos Heróis da Pátria de Tibira do Maranhão, indígena reconhecido como primeira vítima fatal documentada da homofobia no Brasil, assassinado em 1614.

  1. RELIGIÃO

O Projeto de Lei que obsta o enquadramento do proselitismo religioso como prática discriminatória está enquadrado nesta categoria porque a temática da liberdade religiosa aparece na justificativa, mas há outros PLs impulsionados pelo mesmo fato –  as portarias da Funai já citadas – na categoria direitos dos povos indígenas. Há  também projeto específico do católico Capitão Augusto (PL/SP), que propõe a tipificação do crime de charlatanismo religioso e estabelece penas para o crime de “falsos milagres” e exploração financeira relacionada à fé. Outro institui a Política Pública de Incentivo à Disseminação do Evangelho em Unidades Prisionais do País, em um evidente ataque à liberdade religiosa.

  1. DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

Direitos Sexuais e Reprodutivos são uma importante categoria de disputa no campo conservador, extrapolando o campo religioso, e, não por acaso, apenas três de um total de 38 projetos foram propostos por partidos de esquerda. Os demais estão divididos entre o centro a direita, e tentam, basicamente, dificultar o acesso ao aborto legal, questionar a equiaparação entre mulheres cis e trans, criminalizar os tratamentos hormonais em crianças e adolescentes e coibir o uso de linguagem neutra. Todos os deputados que propuseram projetos nesta área tiveram sua identidade religiosa identificada, sendo católicos, cristãos ou evangélicos.

Facilitação da laqueadura de trompas para mulheres e violência obstétrica foram temas de alguns projetos neste início de legislatura. Os projetos sobre esta temática foram classificados majoritariamente como direitos sexuais e reprodutivos, já que versam sobre liberdade reprodutiva e saúde pública, embora um deles tenha sido classificado como relacionado com direitos da mulher, devido à justificativa que equiparava a violência obstétrica à violência doméstica, revelando diferenças de enquadramento.

Muitos PLs tentam obstruir o acesso ao aborto legal, sobretudo em casos de estupro, em reação à portaria Portaria do Ministério da Saúde GM/MS nº 13, de 13 de janeiro de 2023, casos em que tentam manter a exigência de comunicação às autoridades policiais, e também criminalizam a venda de medicamento abortivo Cytotec.

Há uma forte ênfase na proibição de tratamentos hormonais para crianças e adolescentes. O evangélico Kim Kataguiri (União/SP), propõe criminalizar pessoas que instigam, incentivam, influenciam ou permitem a criança ou adolescente a mudar seu gênero biológico e para proibir linguagem neutra no âmbito da educação básica.

Em relação ao uso da linguagem neutra em instituições de ensino, vale ressaltar que os argumentos contrários incluem a defesa da norma culta, inserindo o debate sobre cultura. Há projeto que estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes de aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino. 

Foi identificado proposta que susta os efeitos de do Decreto nº 11.430, de 08 de março de 2023, que institui cotas para mulheres trans, travestis e outras possibilidades do gênero feminino em ações de equidade entre mulheres e homens no ambiente de trabalho, sendo portanto, contrária à equiparação de mulheres trans e cis.

A discussão sobre banheiros unissex voltou às midias sociais religiosas devido à portaria que dispõe sobre a utilização de banheiros, dormitórios, vestiários e demais espaços segregados por gênero conforme a identidade de gênero individual, e foi alvo de pedidos de sustação. Essa seria a materialização da ameaça do banheiro unissex que ocupou o centro do período eleitoral em 2022 no campo religioso.

Como informado anteriormente, um dos PLs susta a Portaria GM/MS nº 230, de 7 de março de 2023, que institui o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo  a proposta,  o problema é o conceito de gênero e o ataque à família. 

Saiba mais sobre o Monitoramento Legislativo do ISER aqui.

Lívia Reis é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional (UFRJ) e coordenadora do núcleo de Religião e Política do ISER.