Entre os dados utilizados neste artigo estão os de identidade religiosa dos proponentes dos PLs, disponíveis para download aqui.

Projetos de Lei da Câmara dos Deputados (PLs) são o objeto do monitoramento implementado pela equipe de Religião e Política do ISER, para o conteúdo da Plataforma  Religião & Poder, em 2023. Com o objetivo de entender como os deputados federais se mobilizam em relação à produção legislativa, analisamos os projetos de lei que se enquadram em temas relevantes para o trabalho do ISER, como religião, gênero, raça, família, entre outros. 

Nos cem dias da 57ª Legislatura (2023-2027) , de 1 de fevereiro a 12 de maio de 2023, um marco significativo para avaliação do início de mandato do Poder Legislativo, identificamos um total de 2.535 Projetos de Lei. Eles abarcam também Medidas Provisórias, Projetos de Lei Complementar, Projetos de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo, Projetos de Decreto Legislativo, de Resolução, de Fiscalização e Controle, Medidas Provisórias, Projetos de Lei de Conversão, Propostas de Emenda à Constituição, dentre outros. 

Cada um desses tipos legislativos possui uma função específica, e, também, um trâmite distinto. Propostas de Emenda à Constituição, por exemplo, que alteram a redação de dispositivos da Carta Magna brasileira, precisam ser apresentadas com a assinatura de ao menos um terço dos parlamentares da casa proponente (171 deputados federais ou 27 senadores), e precisam ser votadas em dois turnos, com aprovação em ambos de ao menos três quintos da Câmara, o que equivale a 308 deputados federais e 49 senadores.

Monitoramento Legislativo da Câmara dos Deputados

Entre os 2.535 PLs dos cem dias da atual Legislatura, empossada em 1 de fevereiro, foram encontrados 464 que tangenciam valores morais religiosos ou acionam discursos e atores do campo religioso, como o caso de projetos sobre direitos humanos, família, gênero, raça, entre outros. A lista dos projetos levantados pode ser acessada aqui.

Para a realização do monitoramento, foi construída uma plataforma de uso interno que coleta dados de maneira automatizada da Câmara dos Deputados, e pesquisa, entre os PLs apresentados, aqueles cujos temas interessam ao trabalho do ISER. Cada grupo temático se baseia em um conjunto de palavras-chave relacionadas a eles, escolhidas de maneira supervisionada, a partir dos dados de legislaturas anteriores e do monitoramento de candidaturas ao legislativo. Estes grupos temáticos são: i) religião, ii) família, iii) direitos humanos, iv) gênero, v) raça, vi) indígenas, vii) drogas, viii) clima e meio ambiente, ix) segurança pública, x) causa animal, xi) imigração e xii) educação.  

Cada conjunto de temas possui um conjunto de palavras-chave selecionadas para o monitoramento, e, posteriormente, foi desenvolvido um modelo de inteligência artificial, que utiliza técnicas de aprendizado de máquina, para conseguir inferir se um projeto se enquadra ou não a um determinado tema. Dessa forma, conseguimos encontrar PLs relacionados às nossas temáticas pouco tempo depois de serem apresentados. Ao mesmo tempo, quando um projeto entra no radar do monitoramento, a tramitação dele é acompanhada para que entendamos os possíveis desdobramentos dele e os impactos que ele possa ter na sociedade, uma vez aprovado.

Entre os PLs destacados para análise da equipe de Religião e Política do ISER, alguns chamam a atenção, como o Projeto de Lei 563/2023, de autoria da deputada evangélica Coronel Fernanda (PL/MT). A proposta buscava instituir o Dia Nacional da Mulher Cristã, em 10 de novembro. Contudo, por não estar de acordo com a Lei 12345/2010, que institui que datas comemorativas só podem ser aceitas se tiverem alta significação, comprovada através realização de consultas e audiências públicas, o PL foi devolvido pelo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). O mesmo ocorreu com o Projeto de Lei 633/2023, de autoria do deputado católico, Rafael Prudente (MDB/DF), que buscava instituir o Dia Nacional do Cristão Ortodoxo, em 29 de junho. 

O PL 958/2023 de autoria do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Márcio Marinho (REPUBLICANOS-BA) altera a Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), para impedir o enquadramento do proselitismo religioso como prática discriminatória como consta na lei. Vale também destacar o PL 1655/2023,  apresentado pelo deputado de identidade cristã  Fausto Santos Jr (UNIÃO-AM), que institui uma Política Pública de Incentivo à “disseminação do evangelho” em unidades prisionais do país. 

Durante os primeiros cem dias do legislativo, diversos PLs que adotam pautas conservadoras e que, por sua vez, tangenciam a religião, também circularam na Câmara: projetos contra o aborto, seja pelo aumento da pena na execução do ato (Projeto de Lei 1.003/2023), de autoria do deputado evangélico Helio Lopes (PL/RJ), ou pela tipificação da venda e do comércio ilegal de produtos ou medicamentos abortivos (Projeto de Lei 349/2023), cujo autoria é da deputada católica Chris Tonietto (PL/RJ). Há ainda textos que propõem a  criação de protocolos que objetivam impedir situações de aborto, ainda que em situações de violência sexual (Projeto de Lei 2.490/2023, de autoria do pastor evangélico  Alex Santana[Republicanos/BA)) e também propostas que visam alterar a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que institui o Serviço Único de Saúde (SUS), como o PL 301/2023 de autoria do pastor evangélico Milton Vieira (Republicanos/SP), com o fim de alterar os procedimentos necessários para a realização de aborto em caso de gravidez resultante de estupro.

Outros projetos versam sobre impedir ações que interfiram na formação de gênero das crianças e adolescentes (Projeto de Lei 2.210/2023) de autoria do deputado evangélico Messias Donato (Republicanos/ES). Ainda, a, alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente  para criminalizar condutas de pessoas que “instigam, incentivam, influenciam ou permitem criança ou adolescente a mudar seu gênero biológico” (Projeto de Lei 192/2023, apresentado pelo deputado evangélico Kim Kataguiri [UNIÃO-SP]).

A educação foi outro mobilizador. Vale destacar o Projeto de Lei 1.903/2023, de autoria da deputada católica Carolina de Toni (PL -SC), que visa permitir o porte de armas de fogo para professores, e o PL 1449/2023, protocolado pelo deputado de identidade religiosa não identificada Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP), que dispõe sobre a implantação obrigatória de segurança armada nas escolas da rede pública e privada da educação básica de ensino numa tentativa de “conter” a onda de violência atual. Com o objetivo de “desburocratizar e facilitar o acesso dos cidadãos para a aquisição, o cadastro, o registro e a posse de armas de fogo e de munição” outros projetos foram apresentados neste período, como o PL 456/2023 de autoria do deputado cristão (de reconhecida identidade evangélica) Nikolas Ferreira (PL/MG). Também o PL 766/2023 que  concede isenção tributária para que mulher vítima de violência  compre armas e munições apresentado pelo deputado católico Marcos Pollon ( PL/MS).

A “causa animal” teve um grande protagonismo durante as campanhas eleitorais de 2022, acompanhando uma expressão cultural que se intensifica no país.   Os parlamentares eleitos para a 57ª legislatura apresentaram muitos projetos pautando a temática nos primeiros cem dias. Destacamos aqui apenas dois, como o projeto que reconhece a família multiespécie como entidade familiar e dá outras providências PL 179/2023 de autoria dos deputados de identidade religiosa não identificada Delegado Matheus Laiola (UNIÃO/PR)  e Delegado Bruno Lima (PP/SP) e o PL 1901/2023, de autoria da deputada de identidade cristã  Dayany Bittencourt (UNIÃO/CE), que isenta do pagamento de taxa de inscrição em concursos públicos os candidatos que comprovarem adoção de animais.

Entenda o processo legislativo a partir da Câmara Federal

Dentro do processo legislativo, na Câmara dos Deputados, há o seguinte rito: o(a) deputado(a) ou grupo de deputados redige o PL e o envia à Secretaria Geral da Mesa, que faz a distribuição para as comissões. As comissões existentes são órgãos majoritariamente temáticos: Comissão de Educação, Comissão de Defesa do Consumidor, de Direitos Humanos, de Cultura, Esporte, Saúde, Trabalho, Turismo, dentre outras. Essas são chamadas de Comissões Permanentes, e vão analisar o mérito da matéria em discussão, com total de 30. Existem também as temporárias, como as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) e algumas comissões especiais.  Há ainda as comissões mistas  integradas por deputados e senadores, podendo ser permanentes ou temporárias.

O PL é distribuído para até três comissões de mérito. Em cada uma, há um relator que analisa o projeto, recebe sugestões de outros membros da comissão, e elabora um parecer que pode ou não acatar a proposta, que por sua vez também pode ser alterada. Se mais de três comissões de mérito forem necessárias para avalizar uma proposta, é possível a criação de uma comissão especial, o que evita um período maior de tramitação. 

Depois de avaliado pelas comissões, o PL segue para o que é chamado de “análise de admissibilidade”: a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) analisa se a proposta está de acordo com o ordenamento jurídico, ou seja, se está alinhada à Constituição do País, e se a proposta gerar gastos ou disser respeito a finanças públicas, é analisada pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT). A proposta passa pela CFT apenas para tratar de finanças, caso contrário, é enviada apenas para a CCJC. Se em qualquer uma das duas ela não for admitida, seja por ser inconstitucional ou não ser consoante ao orçamento, ela é arquivada. 

Vale ressaltar que a maioria dos PLs não vão a plenário, sendo aprovados diretamente nas comissões, e em seguida, enviadas ao Senado, e, uma vez aprovados, são encaminhados à sanção presidencial. Se a matéria não tiver iniciado na Câmara, mas sim no Senado, o processo é inverso, e, após a aprovação na Câmara é enviada para o Poder Executivo sancionar ou não. 

No caso de matérias que vão a plenário, como PLs que não foram aprovados por todas as comissões de mérito, é preciso que haja quórum, ou seja, presença de ao menos 257 deputados (metade do número total de deputados mais um), e a aprovação depende de maioria simples dos votantes, ou seja, metade mais um.PLs que obrigatoriamente vão ao plenário são os Projetos de Lei Complementar, projetos criados por comissões, projetos em regime de urgência, projetos iniciados no Senado, Propostas de Emenda à Constituição, entre outros. 

A apreciação pelo Presidente da República precisa ocorrer em até 15 dias úteis, podendo o governante sancionar ou vetar o PL. Se sancionado, o projeto é publicado no Diário Oficial da União e se torna lei. Se vetado completamente, o veto é apreciado pelo Congresso (Câmara e Senado), podendo ser derrubado, ou seja, o PL pode se tornar lei ainda que o presidente não o sancione. Se o projeto for vetado parcialmente, a parte sancionada vira lei e a parte vetada passa pelo mesmo processo, retornando ao Congresso e sendo apreciada por ele, que pode mantê-la ou derrubá-la.

Como exemplo de veto total que foi derrubado pelo Congresso, houve, em dezembro de 2022, o caso do Projeto de Lei 488/21, do senador católico Fabiano Contarato (PT-ES), que ficou conhecido como “Lei Padre Júlio Lancelotti”. A proposta proíbe o uso de materiais e estruturas destinados a afastar as pessoas em situação de rua de locais públicos – a chamada arquitetura hostil (VET 55/22). 

Em 2022, foram viralizadas nas mídias sociais, imagens do Padre Júlio Lancelotti, notório promotor de projetos de alívio à realidade de pessoas em situação de rua,  em que tentava quebrar estacas pontiagudas de concreto instaladas pela Prefeitura de São Paulo sob um viaduto. 

Depois do veto publicado, em 14 de dezembro, a Presidência da República disse em nota que a expressão “técnicas construtivas hostis”, empregada no projeto, poderia gerar insegurança jurídica, por se tratar de “terminologia que ainda se encontra em processo de consolidação para inserção no ordenamento jurídico”. O Congresso Nacional derrubou o veto dois dias depois. No Senado, origem da proposta, a derrubada do veto teve 60 votos favoráveis e 4 contrários. Na Câmara dos Deputados, foram 354 votos pela derrubada e 39 pela manutenção. 

Projeções

Este primeiro exercício sobre as indicações para pesquisa e análise do projeto de monitoramento dos PLs na Câmara Federal, indica que a religião continua se mostrando um tema relevante, direta e indiretamente, como interseção com as  questões priorizadas no trabalho do ISER, entre direitos humanos, família, gênero e raça.  

Destacamos que será importante observar não apenas o teor dos PLs e o perfil de seus autores, como também a interrelação com atores e  movimentos no Congresso Nacional, como os vinculados às Frentes Parlamentares de perfil religioso e as demais frentes temáticas que enfatizam estas questões interligadas.  

Saiba mais sobre o Monitoramento Legislativo do ISER aqui.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER. 

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.