Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 25 mar 2024

Dashboard disponível aqui 

A lista dos projetos levantados pelo ISER pode ser acessada aqui.

A equipe de Religião e Política do ISER monitora, desde 2023, os Projetos de Lei (PLs) da Câmara dos Deputados para a Plataforma Religião e Poder. Temos como foco compreender quais temáticas são mobilizadas por deputados federais na produção legislativa, sobretudo aquelas identificadas como relevantes nos debates do campo religioso nos últimos anos, seja porque impulsionados por lideranças e políticos religiosos, seja porque são importantes para membros de comunidades de fé/eleitores.

A capacidade de identificar esses temas, por sua vez, é resultado do acúmulo do ISER em pesquisas sobre candidaturas com identidade religiosa nas eleições feitas nos anos de 2018, 2020 e 2022. Na análise da atuação legislativa dos eleitos, esse conjunto de temáticas relevantes foi transformado em 16 categorias de monitoramento: Direitos da Mulher; Crimes e Segurança Pública; Causa animal; Ameaça ao Estado Democrático de Direito; Imigração; Educação; Política de drogas; Direitos da Criança e do Adolescente; Regulação de Mídias; Família; Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais; Direitos Humanos; Calendários oficiais, patrimonialização e homenagens; Religião; Direitos Sexuais e Reprodutivos; Raça e Racismo. Essa escolha metodológica, no entanto, faz com que sejam eliminados do monitoramento projetos de lei com foco em outras pautas, como aqueles relacionados à execução orçamentária, por exemplo. 

Depois de definidas as categorias, desenvolvemos um modelo de inteligência artificial usando técnicas de aprendizado de máquina para identificar a relevância temática dos projetos. Com isso, conseguimos reconhecer os Projetos de Lei de interesse logo após sua apresentação e classificá-los de acordo com sua categoria específica. Além disso, monitoramos o progresso legislativo de cada projeto identificado para analisar suas potenciais consequências e impactos na sociedade, caso sejam aprovados. Nossa equipe já publicou diversos artigos sobre esse monitoramento, todos disponíveis na Plataforma Religião e Poder.

As categorias mais abordadas em 2023

As três categorias com maior número de projetos protocolados durante o ano de 2023 foram 1) “Educação”, com 322 proposições; 2) “Crimes e Segurança Pública”, com 293, e; 3) “Direitos da Mulher”, com 282 projetos. A legislatura teve início em fevereiro, com 64 projetos relacionados a temáticas sobre Direitos da Mulher. Atingiu um pico de proposições em abril, com a temática “Educação”, com 83 Projetos de Lei, tema que se manteve como principal foco dos legisladores ao longo do ano. O ritmo de produção foi maior em março-abril, com uma forte queda em junho e uma estabilização a partir de agosto, como pode ser visto na dashboard disponível aqui

“Educação” foi um tema altamente relevante no debate público durante todo o ano. Estão classificados nesta categoria os projetos que têm impactos diretos no ambiente escolar e nos processos educacionais. Diante dos ataques realizados em escolas no primeiro semestre de 2023, a temática foi monopolizada por projetos de lei que previam “medidas de seguranças” para alunos e professores, como segurança obrigatória armada nas escolas, planos de prevenção a ataques, instituição de botão de pânico, sistemas de monitoramento, instalação de cercas elétricas, instituição de defesa pessoal nas escolas e acolhimento psicológico para alunos e professores, por exemplo. No entanto, muitos projetos educacionais previam o combate à chamada “ideologia de gênero” e  a criminalização da educação sexual nas escolas.

Já o cruzamento das temáticas Educação e Religião pode ser exemplificado com o projeto que versa sobre a fé dos professores. O texto, na realidade, dispõe sobre a modificação da Lei de Diretrizes e Bases para não considerar infração administrativa a recusa do profissional em lecionar matéria que seja contrária às suas convicções morais ou religiosas – o que, na prática, configura intolerância religiosa.

A categoria “Crimes e Segurança Pública” apresentou a segunda maior concentração de PLs e evidenciam os impactos do monopólio da direita na temática. A categorização dos projetos sugere uma tendência, entre parlamentares afiliados a partidos de direita e centro, de negligenciar a ideia de ressocialização para indivíduos que cometeram delitos. Isto se reflete no número de projetos que versam sobre restrições ao auxílio-reclusão, acabam com o direito às “saidinhas” (liberação temporária de presos de instituições penitenciárias para trabalhar, estudar ou para atividades que possam contribuir para sua reintegração social) e questões que consideram a punição de menores de idade. Nesta categoria, observa-se que a direita defende penas mais duras para qualquer pessoa que já tenha transgredido a lei, inclusive adolescentes, e também propõe a inclusão de mais delitos na lista de crimes hediondos.  

O terceiro maior número de projetos de lei apresentados em 2023 versa sobre “Direitos da Mulher”, temática quase sempre conectada com as violências de gênero, como violência doméstica e abuso sexual, por exemplo, mas também com propostas sobre paridade de gênero, saúde pública e masculinidades. 

Por ser uma categoria central para o campo religioso, entendemos que isolá-la analiticamente nos ajuda a mapear os movimentos feitos entre os atores deste e de outros campos neste debate fundamental. Note-se, entretanto, que a categoria “mulher” é, na maior parte dos projetos, utilizada de maneira restritiva e no singular, isto é, incluindo apenas mulheres cis inseridas em um núcleo familiar heteronormativo, ainda que com exceções. Alguns projetos falam abertamente sobre mulheres transexuais e travestis, outros de pessoas em situação de violência doméstica, pessoas com útero e todas as mulheres. 

Os projetos classificados nesta categoria, foram, em sua maioria, propostos por deputados ligados a partidos de centro e de direita e preveem o aumento de penas ou tipificação de crimes relacionados a casos de violência doméstica e sexual contra mulheres, ou, ainda, o aumento de situações que autorizam o porte de armas para mulheres. Alguns chegam a prever expressamente educação sexual e de gênero para homens que cometeram violência contra mulheres em sua ementa. O “empreendedorismo feminino” também aparece como pauta sobre direito de mulheres, além de projetos que preveem facilitação de crédito e acessos a financiamentos públicos por mulheres vítimas de violência.

Entre projetos que tematizam a violência doméstica, havia aqueles direcionados a estabelecer novas penas para homens condenados pela Lei Maria da Penha, como, por exemplo, as que proíbem acesso a cargos públicos. Mudanças de leis penais, trabalhistas e administrativas para pessoas condenadas por violência contra a mulher existem entre as propostas, além daquelas que tipificam o crime de misoginia.

Alguns dos projetos de lei direcionados a mulheres vítimas de violência doméstica incluem em seu rol violência sexual contra crianças e adolescentes, mas também descendentes e ascendentes das vitimadas, articulando a discussão com os debates sobre família, infância e direitos dos idosos. Outra gama de projetos prevê a facilitação de venda de armas de fogo para mulheres, algo que também foi identificado nos projetos destinados a professores e profissionais da educação.  Uma análise sobre a batalha regulatória pelas armas de fogo a partir dos dados do monitoramento foi publicada em artigo no Nexo Políticas Públicas e pode ser acessada aqui.

O caso de violência doméstica sofrido pela apresentadora Anna Hickmann gerou reações dos parlamentares, que pediram alterações no Código Penal e na Lei Maria da Penha, no mês de dezembro. Um total de nove projetos foram apresentados, e abrangem não só aumento de punição, como também dispõem sobre a divisão de bens após o divórcio.  Notamos que poucos projetos são pedagógicos ou direcionados a homens.

Temas relevantes para o campo religioso

No ano de 2023, Projetos de Lei que evidenciam calendários oficiais, homenagens e processos de patrimonialização ganharam destaque, com 83 textos apresentados. Como  exposto em artigo de Izabella Bosisio, publicado na plataforma do ISER,  estas ênfases são parte importante das tentativas de construção de uma identidade nacional e ajudam a compreender as disputas em torno de um  imaginário de nação, sobretudo entre aqueles que tentam emplacar o imaginário de um Brasil cristão. 

A escolha de monitorar a questão da “Imigração”, por sua vez, foi impulsionada, em grande parte, pelo envolvimento significativo de igrejas em atividades de assistência a refugiados. Embora a Igreja Católica sempre tenha sido um ator chave nesse trabalho, nota-se um aumento na participação das igrejas evangélicas nesse campo. 

Já a consolidação da “Causa Animal” como pauta do campo conservador foi identificada nas pesquisas do ISER sobre eleições em 2022. Como ficou demonstrado nos projetos em trâmite na atual legislatura, o debate central gira, por exemplo, em torno do reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos e da disputa pela noção de família multiespécie.

Já Direitos Sexuais e Reprodutivos são uma importante categoria de disputa no campo religioso. O monitoramento do ISER levantou 89 proposições parlamentares referentes a esta temática, abordando temáticas como aborto e debates de gênero, por exemplo, que acabam impactando, também, projetos de lei sobre “Educação” e “Direitos da Criança e do Adolescente”. Projetos de lei criminalizando qualquer tipo de intervenção hormonal em crianças e adolescentes também foram foco de deputados alinhados a partidos direita, indicando que o tema passou a ser foco de ataque por esse campo político.

Temas que dominam debate público e redes sociais repercutem 

Alguns temas foram alvo de debate público, com ampla cobertura noticiosa e debates nas mídias sociais, ganharam repercussão no Congresso Nacional e passaram a ser objeto de atividade legislativa. Um exemplo foi o caso da atriz Larissa Manoela, em agosto de 2023, que rompeu relacionamento com os pais e abriu mão de seu patrimônio. A propósito deste ocorrido, foram elaborados Projetos de Lei de  relações abusivas entre pais e filhos sobre a gestão de patrimônio de crianças e adolescentes. 

No mês de julho, banheiros unissex foram o centro das discussões, com projetos de proibição da instalação deles, com o intuito de proteger crianças e adolescentes. No mesmo mês, a pauta da identidade de gênero também sofreu ataques, bem como surgiram projetos que pediam anistia aos acusados de participação em crimes de natureza política ou eleitoral, com o objetivo de anistiar os participantes do 8 de janeiro.

O processo eleitoral para membros dos Conselhos Tutelares no País, em setembro e outubro de 2023 também influenciou na elaboração de  proposições no primeiro ano da 57ª legislatura. Em setembro, a Câmara recebeu projetos que buscam ampliar o papel dos Conselhos Tutelares, bem como a criação de bolsas em universidades públicas para que conselheiros possam cursar graduação em Assistência Social. 

Episódios de racismo que ganharam destaque nas mídias de notícias, como o caso do brasileiro, jogador de futebol do clube espanhol Atlético de Madrid, Vinícius Jr, também foram objeto de Projetos de Lei, como foi registrado na compilação realizada por Elena Wesley para a Plataforma Religião e Poder do ISER.

A criminalização de movimentos sociais também foi outro campo de investida por parte dos congressistas, principalmente os que ameaçam propriedades que não cumprem sua função social, como é o caso do MST. No período houve a CPI do MST na Câmara e, no contexto dela, inúmeros vídeos circularam entre fiéis católicos e evangélicos, denunciando um suposto aumento de invasões de terra por membros do movimento após o início do governo Lula.

O Projeto de Lei 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet  (apelidado nas mídias de PL das Fake News), aprovado no Senado e encaminhado à Câmara, foi alvo de críticas de lideranças religiosas na casa. Elas alegam ser um projeto de censura do governo federal contra a livre expressão das religiões, com o argumento de que “penalizam a pluralidade de ideias e sobretudo os valores cristãos”, o que foi desmentido pela checagem de fatos do Coletivo Bereia

A crescente discussão em torno do uso de novas tecnologias digitais, como deep fake, reconhecimento facial, instalação de câmeras em fardas policiais e utilização de inteligência artificial em processos eleitorais também gerou amplo debate legislativo. O tema também aparece associado à produção de falsa pornografia. Um exemplo emblemático envolvendo uma liderança religiosa foi o vídeo de Padre Julio Lancellotti.

As discussões sobre direitos reprodutivos, com foco principalmente na temática do aborto, ganhou força após o voto favorável da relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF) .  Ação foi protocolada no STF pelo PSOL, em 2017, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O voto da relatora levou a diversas reações do Congresso, incluindo Projetos de Lei que pedem alteração da legislação do Código Penal sobre o aborto para endurecer a criminalização. 

Assim como o aborto, a política de drogas também teve centralidade temática na Câmara dos Deputados, reflexo direto das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a possibilidade de descriminalização da maconha. Neste eixo temático, os debates sobre internação compulsória e sobre comunidades terapêuticas, com suas imbricações religiosas, também se destacaram.

O conflito armado entre Israel e Palestina, iniciado em outubro, também foi alvo de discussões na Câmara. Os PLs apresentados buscam categorizar o Hamas e o Hezbollah como grupos terroristas, considerando crime qualquer manifestação de apoio a eles, a ser enquadrada como  promoção ao nazismo e ao terrorismo. 

Embora a “bancada do cocar” tenha atuado em prol dos direitos dos povos indígenas, com a apresentação de muitos projetos que se destacaram no monitoramento, parte significativa dos projetos vinculados a categoria “Direitos dos Indígenas” foram propostos por deputados alinhados a partidos de direita. Os projetos tematizam versam sobre demarcação de terras indígenas, garimpo e mineração, mas também propuseram a suspensão da portaria Portaria Conjunta – FUNAI/SESAI de 2023 que proíbe o exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas, bem como o uso de roupas com imagens ou expressões religiosas, tema abordado em artigo da Religião e Poder que pode ser encontrado neste link.

Monitoramento terá continuidade em 2024

Este primeiro ano de pesquisa e análise do monitoramento dos PLs na Câmara dos Deputados Federal pelo ISER indica que a religião continua se mostrando um tema relevante, direta ou indiretamente, isto é, na interface com temáticas relevantes para o campo religioso, sejam eles fiéis ou lideranças.

Repetimos o que já afirmamos em outras abordagens sobre o projeto: a importância de se observar não apenas o teor dos PLs e o perfil de seus autores, mas também a inter-relação com atores e  movimentos no Congresso Nacional, como as Frentes Parlamentares de perfil religioso e as demais frentes temáticas que enfatizam estas questões interligadas.

Saiba mais sobre o Monitoramento Legislativo do ISER aqui.

Sobre os autores:

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.