O monitoramento desenvolvido pelo ISER, vem destacando ao longo dos meses, que a interseção entre a esfera legislativa e a mídia é evidente quando pautas de grande repercussão ganham espaço no cenário político por meio de projetos de lei. A sensibilização pública, impulsionada pelo caso da apresentadora de TV Ana Hickmann, fez com que, em novembro de 2023, o tema da violência doméstica emergisse como uma pauta central nos projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados. Da mesma forma, os acontecimentos trágicos que envolveram o show da cantora Taylor Swift, no Rio de Janeiro foram alvo de proposições parlamentares.

Caso da violência sofrida pela apresentadora de TV Ana Hickmann

A propósito da intensamente repercutida violência doméstica sofrida pela apresentadora de TV Ana Hickmann, foram apresentados muitos projetos de lei que visam alterações no Código Penal e na Lei Maria da Penha. São destacadas a seguir algumas dessas proposições:

  1. O PL 5672/2023, de autoria do deputado de identidade religiosa não identificada Cabo Gilberto Silva (PL/PB), é destinado a aumentar as penas previstas para o crime de violência doméstica e o crime de descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência.
  1. O PL 5663/2023, de autoria da deputada católica Laura Carneiro (PSD/RJ), busca estabelecer nova hipótese de flagrante delito. Em sua justificativa, afirma que “nos casos de violência doméstica e familiar, a falta de prisão imediata dos agressores, além de servir como estímulo ao cometimento de novos delitos, representa, em muitos casos, uma sentença de morte para as vítimas.”
  1. O PL 5674/2023, de autoria da deputada de identidade religiosa não identificada Maria Arraes (Solidariedade/PE), tem por objetivo alterar o Código Civil no intuito de incluir a exceção expressa à previsão de usucapião familiar em casos de violência ou ameaça de violência doméstica. O texto considera suficiente para tanto, a concessão, a qualquer tempo, de medida protetiva em favor de um dos cônjuges ou companheiros ou qualquer outro meio de comprovação da violência para a presunção de que o abandono do lar é legítimo. 
  1. O deputado evangélico Gutemberg Reis (MDB/RJ) é autor do PL 5432/2023 que aprimora a aplicação de medida protetiva, alterando a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
  1. O PL 5472/2023, de autoria da deputada católica Lêda Borges (PSDB/GO), prevê o sigilo dos dados e informações da mulher vítima de violência familiar ou doméstica e de seus dependentes nos diversos cadastros mantidos pelo poder público em que seja inscrita.
  1. O PL 5781/2023, de autoria do deputado cristão Aguinaldo Ribeiro (PP/PB), visa permitir que o juiz, de ofício, decrete medidas cautelares, inclusive prisão preventiva, bem como converta a prisão em flagrante em preventiva, nos casos de crime praticado no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher.
  1. O PL 5577/2023, de autoria da deputada cristã Silvye Alves (União/GO), busca garantir que a vítima de violência doméstica e familiar tenha acesso diferenciado e específico. Inclui ainda que ela seja encaminhada à sala reservada do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher (corredor e sala rosa), inacessíveis ao agressor, para participar de audiências em processo judicial em que seja a ofendida.
  1. O deputado cristão Fred Linhares (Republicanos/DF) é autor do PL 5498/2023 que altera o Código Civil Brasileiro. O texto dispõe sobre divórcio em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher com a perda dos bens, independente do regime de partilha de bens adotado na constância do casamento ou união estável
  1. O PL 5778/2023, de autoria do deputado católico Vicentinho Júnior (PP/TO), dispõe sobre a proibição da retirada de medidas protetivas de urgência em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

As situações em torno do show da cantora Taylor Swift no Rio de Janeiro

O show da cantora Taylor Swift, realizado no Estádio Nilton Santos, no  Rio de Janeiro durante o mês de novembro, e suas trágicas decorrências, com comprometimento da saúde de vários participantes, chegando a causar  uma morte, tiveram grande repercussão pública. O caso foi citado explicitamente em duas proposições na Câmara Federal:

  1. O PL 5547/2023, de autoria da deputada Érika Kokay (PT/DF) sem religião, que busca estabelecer medidas de proteção à saúde do consumidor em shows e eventos congêneres realizados em quaisquer ambientes, especialmente aqueles sujeitos a condições climáticas adversas. A proposição relata as centenas de pessoas que desmaiaram durante a realização do show de Taylor Swift e cita o nome de Ana Clara Benevides Machado, 23 anos, que perdeu a vida, “em meio ao calor extremo que se alastrou na cidade.”
  1. O PL 5632/2023, de autoria do deputado católico Capitão Augusto (PL/SP), tem o propósito de “aprimorar a legislação pertinente à internação de dependentes de drogas, permitindo que a internação involuntária desses dependentes se dê a pedido de servidores da área de segurança pública, bem como inserindo a possibilidade de internação compulsória, modelo existente no ordenamento para pessoas portadoras de transtornos mentais.” Em seu inteiro teor, o projeto cita o pronunciamento do prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes que defendeu a criação de uma proposta para internação compulsória de dependentes de drogas e o “crime de latrocínio praticado contra um fã da cantora Taylor Swift em Copacabana, ganhou ainda mais a preocupação dos gestores públicos, que clamam por medidas mais efetivas diante de pessoas que vivem nas ruas colocando em risco a vida dos demais cidadãos” . 

Religião

A religião aparece como aspecto central em três projetos que se destacaram no monitoramento em novembro de 2023:

  1. O PL 5646/2023, de autoria do deputado católico Marcos Pollon (PL/MS), que dispõe sobre feriados nacionais e religiosos do calendário nacional, extinguindo o ponto facultativo. O projeto de lei visa promover uma alteração significativa no calendário de feriados no país, transferindo as comemorações para o primeiro domingo subsequente ao dia do feriado e extinguindo os pontos facultativos. A justificativa da proposta é “mitigar os prejuízos econômicos causados pela paralisação do trabalho nos feriados e pontos facultativos. O calendário brasileiro e a legislação sobre feriados civis e religiosos foi tema do artigo de Isabella Bosisio, publicado na página do ISER no Nexo Políticas Públicas. 
  1. O PL 5379/2023, de autoria do deputado cristão André Fernandes (PL/CE), visa dispensar os templos religiosos ou igrejas de qualquer culto do pagamento de valor referente à unidade imobiliária regularizada. A proposição apresenta em sua justificativa que a dispensa do pagamento é uma medida que reconhece a importância dessas instituições para a sociedade. “Elas desempenham um papel crucial na promoção da coesão social, fornecendo apoio espiritual e emocional para muitos indivíduos, muitas dessas instituições também realizam trabalhos de caridade e serviços comunitários que beneficiam a população em geral”. Além disso, o PL afirma que é importante notar que esses benefícios se estendem a todos os templos religiosos ou igrejas, independentemente do culto praticado. Também considera  que isso demonstra um “compromisso com a liberdade de religião e crença, um princípio fundamental em uma sociedade democrática.”
  1. O PL 5313/2023, de autoria do deputado cristão Dr. Fernando Máximo (União/RO), visa uma alteração do Código Penal para aumentar a pena aplicada ao crime de desrespeito a crenças e símbolos religiosos. O projeto afirma que a nova tipificação torna crime manifestações no Carnaval, por exemplo, “que zombam e desrespeitam a fé dos cristãos, agindo reiteradamente de forma desrespeitosa contra os símbolos do cristianismo”. 

Pauta LGBTI+

O PL 5687/2023, de autoria da deputada cristã Duda Salabert, institui o Dia Nacional de Combate à Mutilação Genital Infantil. O projeto tem como objetivo promover a conscientização sobre os direitos humanos à saúde e à integridade corporal das pessoas intersexo, repudiando as práticas desnecessárias e violentas de cirurgias genitais mutiladoras na infância. O projeto foi solicitado pela Associação Brasileira Interesexo (ABRAI) e pela Aliança Nacional LGBTI+ que requisitaram a instituição da data no calendário nacional, cumprindo o requisito de consulta prévia à população. Essa data já existe no Estado de São Paulo, por iniciativa do deputado estadual Guilherme Cortez (PSOL/SP).

Outra pauta tem relação com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de agosto de 2023. Por seis votos a cinco, o STF fixou que cabe ao juiz decidir, de forma fundamentada, a instituição penal onde mulheres transexuais e travestis devem cumprir pena de prisão. A maioria derrubou a decisão que permitia a mulheres transexuais e travestis o direito de optar se cumpririam pena em presídios femininos ou masculinos.

Nesse contexto, o PL 427/2023, de autoria do deputado católico Marcos Pollon (PL/MS), susta a Resolução nº 348, de 9 de outubro de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que “estabelece diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente”. O argumento do deputado é de que todos os indivíduos são iguais, não se devendo aplicar nenhum tratamento diferenciado, sobretudo em relação ao gênero. Contudo, é também verificado na Constituição Federal a dignidade humana do preso, devendo ser resguardada a sua integridade moral e física. No caso da população LGBTI+, principalmente mulheres transexuais e travestis, o direito de optar por onde cumpririam pena está de acordo com a Carta Magna. 

Conselhos Tutelares

As discussões em torno dos Conselhos Tutelares vêm despertando o interesse e a mobilização de comunidades, bem como de atores religiosos. Por essa razão, o ISER vem acompanhando esses debates com especial atenção, considerando-os um campo vital para a pesquisa e o entendimento de dinâmicas sociais e religiosas contemporâneas. 
O deputado cristão Gilvan Máximo (Republicanos/DF) é autor do PL 5515/2023, que institui a bolsa Conselheiro Tutelar, que oferta vagas em universidades federais para cursos superior de assistência social e serviço social para Conselheiros Tutelares e institui adicional de periculosidade ao profissional. O PL destaca que, no Brasil, o conselheiro tutelar “executa trabalhos de acompanhamento domiciliar, em localidades com alto grau de criminalidade, zonas de alto índice de marginalidade, inclusive homicídios”. Ressalta também que “é de conhecimento, [que] muitos conselheiros deixam de praticar visitas em regiões de grande risco à integridade física, devido à marginalidade”.

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.