Atualizado em 26/04/2023 às 11h04

O genocídio yanomami, só recentemente alvo de devida atenção, teve como um de seus efeitos fazer com que as missões evangélicas voltassem a ser notícia. Um artigo do teólogo Ronilso Pacheco registrou, sem meias palavras, a omissão dessas missões no auxílio aos Yanomami, apontando como sua principal causa a aliança feita por setores religiosos conservadores, formadores dessas missões, com o governo de Jair Bolsonaro.

No entanto, esta não é a primeira vez que atividades de missões evangélicas aparecem vinculadas a ações danosas contra povos indígenas. Isto indica que a aliança com o governo Bolsonaro não explica completamente o caso, levantando uma outra questão: por que essas organizações, que a princípio existiriam apenas para transmitir uma mensagem religiosa cristã, aparecerem nos noticiários como entidades suspeitas, não idôneas e, muitas vezes, associadas a interesses econômicos nas Terras Indígenas? Para responder a essa pergunta é preciso deslocar a agência missionária do campo da religião e transportá-la para o da política, como faz Pacheco, e perguntar, afinal, que tipo de jogo político fazem essas missões.

As missões de fé transculturais

Antes, no entanto, é preciso dizer quem são essas missões. Numa definição muito sucinta, as missões de fé transculturais são organizações religiosas interdenominacionais que têm como objetivo difundir a doutrina cristã em sociedades de tradição não cristã. Caracterizam-se pelo conservadorismo relativo ao dogma e à moral religiosa e por terem a Bíblia como o lugar de revelação. 

A doutrina religiosa que as orienta é a visão escatológica do mundo que aguarda a segunda vinda de Jesus Cristo à Terra. Para que isso ocorra, as missões devem cumprir a “Grande Comissão”, qual seja, levar a mensagem do evangelho a todos os povos que não conhecem o Cristianismo. Daí o monumental esforço linguístico das missões transculturais para traduzir a Bíblia para diversas línguas em todo o planeta. 

Em termos práticos, os missionários transculturais e seus interesses têm colidido com os direitos indígenas e as políticas de Estado que os protegem, que se fundamentam no princípio do respeito à autodeterminação, garantido pelo capítulo “Dos Índios” da Constituição de 1988, conquistado pelo movimento indígena. Para driblar os impedimentos postos pelas leis e pela política indigenista do Estado brasileiro, as missões transculturais adotaram a estratégia de camuflar seu viés religioso, apresentando-se como organizações vinculadas a universidades, formadas por “pesquisadores”, ou como organizações provedoras de assistência social, sobretudo, à saúde. Isso faz com que os missionários joguem com uma “dupla identidade” (conforme Stoll, 1982 e Barros, 2004): para o Estado, apresentam-se como educadores, provedores de saúde, linguistas ou antropólogos; para os indígenas, como evangelizadores e tradutores da bíblia.

No governo de Jair Messias Bolsonaro, as missões puderam deixar um pouco de lado esse jogo da dupla identidade, bem como a discrição com que sempre se movimentaram no campo da política. Alguns de seus representantes ocuparam cargos de destaque, como foi o caso, entre outros, da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves, fundadora da missão transcultural ATINI – Voz Pela Vida. 

A ação política das missões na área da saúde, que é o ponto nevrálgico das acusações de omissão dirigidas a elas atualmente, foi extensa e, especificamente no caso yanomami, a Missão Evangélica Caiuá tem convênio firmado com o governo federal, desde 2021, para a contratação e transporte de médicos e enfermeiros. 

Afirmando não fazerem política, as missões transculturais vão se movendo ora pelas beiras ora pelo centro (no caso do governo Bolsonaro) do tabuleiro das políticas públicas e das negociações com governos locais e federais. Porém, essa ação política termina por esvaziar um outro sentido do fazer político, aquele que mira o bem coletivo a partir da participação direta dos movimentos sociais nas decisões que os afetam. 

Contornando os direitos coletivos dos povos indígenas, fixando-se no apoio pontual aos povos evangelizados com os quais se relacionam diretamente, as missões terminam por produzir um modo de ação antipolítica como parte de seus próprios modos de fazer política. A definição dessa noção se inspira na leitura da cientista política Wendy Brown sobre a política feita pelo ideário neoliberal conservador estadunidense. Essa ação antipolítica é o que permite compreender o sentido mais profundo da crítica dirigida às missões por sua omissão no caso yanomami. 

Num texto resposta a essa crítica, produzido pelo missionário-antropólogo Cassiano Luz, é possível mapear o sentido da antipolítica feita pelas missões. Nas explicações sobre a crise nos Yanomami, o texto atribui parte da culpa a um “fator cultural”. Segundo o autor, os Yanomami teriam uma cultura caracterizada como “individualista” (porque eles não têm e não seguem lideranças) e “existencial” (porque se preocupariam apenas em viver o presente). Tais características teriam feito com que os Yanomami sucumbissem às “facilidades” da oferta de acesso às mercadorias, deixando de lado “o duro trabalho” na roça, caça, pesca e coleta. Para além da leitura culturalizada, guiada pelas lentes de um etos do trabalho cristão, essa perspectiva joga a culpa do genocídio yanomami neles mesmos, ao mesmo tempo em que esvazia o caráter político da crise. 

O artigo do missionário apresenta ainda algumas sugestões para o enfrentamento do problema nos Yanomami, entre elas, a de que não se deve procurar culpados, pois as adversidades que geraram a crise seriam antigas e atravessariam vários governos; e faz uma exortação para que o movimento missionário evangélico amplie seu campo de atuação para além das comunidades específicas com as quais trabalha. 

Se essa última sugestão apresenta uma abertura para uma ação de ordem mais coletiva, no sentido de agir politicamente pelo bem comum e coletivo dos Yanomami, concomitantemente omite a participação direta das missões transculturais nos quatro anos de governo Bolsonaro. 

Ao tentar se eximir da responsabilidade e ao minimizar a ação do governo Bolsonaro no genocídio dos Yanomami, as missões transculturais expõem sua antipolítica política. Em outras palavras, se por um lado, eram agentes políticos com força para influenciar as ações do Estado e apoiar os Yanomami; por outro, optaram por seguir com seu modo de agir antipolítico, calando-se face ao genocídio que testemunhavam. Contudo, a proposta de engajamento numa ação coletiva mais ampla, feita pelo missionário Cassiano Luz, talvez seja um indicativo de que, sob pressão pública, essas missões possam se abrir a mudanças.

ARTIONKA CAPIBERIBE é professora de Antropologia da Unicamp, membro do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI) e autora do livro Batismo de Fogo: Os Palikur e o Cristianismo, Ed. Annablume, 2007.

Foto: Google Maps/TerraMetrics

SAIBA MAIS:

Barros, Maria Cândida Drumond Mendes. O contexto político e intelectual da entrada do Summer Institute of Linguistics na América Latina (1930-1960). Revista Internacional de Lingüística Iberoamericana, v. 2, n. 2 (4), p. 149–208, 2004.

Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2019

Stoll, David. Fishers of Men or Founders of Empire? The Wycliffe Bible Translators in Latin America. London: Zed Press, 1982

Sobre a participação direta das missões no governo Bolsonaro ver Capiberibe, Artionka. Reaching Souls, Liberating Lands: Cross-cultural Evangelical Missions and Bolsonaro’s Government. Braz. political sci. rev., v. 15, n. 2, 29 fev. 2021.

Para uma reflexão sobre o culturalismo em que se baseia a antropologia missionária ver Almeida, Ronaldo. Tradução e mediação: missões transculturais entre grupos indígenas. In: P. Montero (org.), Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. p. 277–304.