Desde o momento fundacional na sociedade brasileira, o Catolicismo nunca foi unívoco, ainda que a Igreja Católica tenha buscado, ao longo dos séculos, assegurar certa univocidade a partir de seu rito agregador – a missa – e suas dinâmicas sociopastorais. 

Por isso, quando se trata de pensar como a cultura católica se disseminou na população brasileira, é importante considerar a multiplicidade do Catolicismo, sua multivocalidade, pluralidade e hibridismo. 

Sob o ponto de vista das pessoas, os Catolicismos são distintos, justapostos a outras formas de crer, praticar e vivenciar a própria crença e catolicidade. Por outro lado, a crença comum se veicula por meio da universalidade do Catolicismo que, ao abarcar as diferenças internas, impossibilita a fragmentação em outras igrejas como ocorre com o Protestantismo.

Podemos falar da existência, portanto, de um Catolicismo devocional, marcado pelo culto aos santos, que teve seu lugar notadamente no período colonial, mas prosseguiu ao longo da história. Este tipo de Catolicismo foi tratado também como Catolicismo popular e se caracterizou por apresentar um tipo de sincretismo muito particular e público que assegurava arranjos e desarranjos de crenças e práticas frente à doutrina oficial. Romarias, procissões, santinhos, promessas, imagens, são marcadamente o modo de expressão da fé do Catolicismo popular. 

Nesta vertente, os católicos assimilavam práticas institucionais da mesma forma que as subvertiam. A subversão pode ser compreendida, em tal contexto, como a prática que implica na junção ou justaposição entre os símbolos e crenças de outras tradições religiosas como o Espiritismo kardecista, além de práticas simultâneas que não ferem, ao menos tendo em vista a perspectiva dos sujeitos, sua própria catolicidade. 

A partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) ocorreu a efetivação de um processo de aggiornamento (atualização) do Catolicismo, após um século de oposição a ideias e projetos modernos, tais como democracia, socialismo e liberdade religiosa. Enquanto símbolo da modernização religiosa, o concílio instigou os católicos a “lerem os sinais dos tempos”, ou seja, a buscarem o engajamento na sociedade contemporânea e a valorizarem as contribuições da modernidade para o avanço da humanidade. Isto se deu mesmo que as diretrizes conciliares também lhes pedissem para enfrentar os desafios que se colocavam por meio da aplicação dos ensinamentos sociais da Igreja. 

Do Vaticano II emergiram novos Catolicismos: o chamado progressista, ancorado nas ideias defendidas pela Teologia da Libertação, e o carismático, marcado pela semelhança com determinada visão de mundo e práticas dos pentecostais como por exemplo, o “falar em línguas estranhas”, fenômeno compreendido como glossolalia. (Mariz, 2015; Fernandes, 2022). 

Importa salientar que a tensão entre pureza e mistura esteve presente em ambos. Assim, alguns carismáticos em camadas populares declaravam crenças em “espíritos de luz” e, em camadas médias, crenças em cristais, pirâmides e símbolos representantes de uma atmosfera mística. Católicos progressistas, especialmente nos anos de 1990, também podiam conviver com a musicalidade carismática, sem conflitos, a despeito do incômodo das lideranças. 

Em 1968, em Medellín, Colômbia, os bispos latino-americanos se reuniram em conferência para discutir as implicações do Concílio Vaticano II para a região. Lendo os sinais da época, as desigualdades sociais generalizadas mantidas pelos governos militares repressores e a ascensão de movimentos revolucionários que desafiavam o status quo, os bispos adotaram uma “opção preferencial pelos pobres” que teve consequências dramáticas para as relações igreja-Estado na América Latina. 

Após séculos de certa cumplicidade com os grupos políticos dominantes, uma relação moldada pelo regime de padroado (direito concedido pelos papas aos reis de Portugal de administrarem os assuntos religiosos nas terras colonizadas) e deixada bastante intacta pela Independência, os bispos fizeram dos vastos setores à margem da sociedade o lócus para a ação pastoral. Implementaram uma série de iniciativas entre grupos populares, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), visando a produção de uma reflexão teológica e ação política. 

A tarefa que emergiu em Medellín consistia em colocar a lente na realidade dos sujeitos considerados pobres latino-americanos. O contexto socioeconômico regional incluía fome, falta de moradia adequada e ausência de políticas globais de saúde, desemprego e subemprego, bem como repressão política. Na perspectiva dos religiosos, tornava-se urgente cotejar tal realidade com o que o Evangelho e o magistério da Igreja teriam a dizer sobre ela (Fernandes, 2022).

Nesse sentido, as duas grandes correntes emergentes do Concílio Vaticano II: Catolicismo da libertação e Catolicismo carismático ocupavam o mesmo solo institucional de outros Catolicismos, tais como aquele mais ligado à religiosidade popular; movimentos mais tradicionais, tais como Legião de Maria, Cursilhos de Cristandade, Apostolado da Oração, Movimento dos Focolares, dentre outros. 

Identificam-se ainda, nesse grande tecido multicor, que é o Catolicismo brasileiro, movimentos cuja inspiração vem da espiritualidade carismática, mas que a transcendem a partir da experimentação de outros modos de estar na igreja. Podem ser inscritos aí a Toca de Assis, os Arautos do Evangelho, a Renovação Carismática Católica que inspirou as Comunidades de Vida e de Aliança (Mariz, 2005), além das associações de fiéis cuja natureza na Igreja Católica vai assumir contornos distintos. 

Com a tendência mais intimista que emerge com os movimentos de inspiração carismática, o Catolicismo se musicaliza alinhado com a tendência cultural da música gospel (nascida entre evangélicos), marcada pelo tom individualizante de diálogo entre o fiel e seu Deus. Nessa tendência, o canto litúrgico que marcou o Catolicismo fundacional passa a ser menos relevante para esses fiéis que optam pela musicalidade própria às comunidades emocionais. 

Muitas vezes a ação de padres cantores como Marcelo Rossi, Fabio de Melo, entre outros, fortaleceu um certo proliferar de letras de música católicas muito diferentes dos cantos gregorianos presentes em missas tradicionais ou dos cantos estritamente litúrgicos.

Outro fenômeno que tem chamado a atenção no Catolicismo diz respeito ao acento ultra-tradicionalista ou neoconservador marcado por atores e/ou grupos radicais intelectualizados e com incidência na vida pública, notadamente, na política. Aí inscrevem-se o Centro Dom Bosco, um sem-número de youtubers católicos que disputam os “likes” nas redes sociais na defesa dos “pilares do catolicismo”. Há reivindicações, inclusive, de retornos a práticas pré-conciliares, como por exemplo a missa em latim. Nessas versões de Catolicismo, a denúncia às desigualdades sociais e o empenho nas lutas por mais justiça social, defendidas pelo Catolicismo progressista ficam subsumidas.

É importante salientar que as mídias sociais potencializaram a disseminação das discordâncias entre os vários Catolicismos. Há algumas décadas, tais discordâncias ficavam circunscritas ao espaço eclesial e a algumas faculdades (instituições de educação superior), diferentemente do que vem ocorrendo na atualidade. Desse modo, a realidade virtual pode produzir e exponenciar os conflitos internos que antes se davam no espaço da paróquia, das dioceses e dos ambientes de formação.

Fica claro que, embora a universalidade do Catolicismo não represente ausência de dissonância doutrinal, experiencial e prática, talvez seja exatamente essa universalidade que segue dando contornos às ações e reações do catolicismo no país. No jogo das disputas sobre o “Catolicismo autêntico”, os fiéis que estão fora do ambiente de formação de opinião, seguem fazendo suas composições e justaposições, ora valorizando dimensões tradicionais do Catolicismo, ora criticando normas e doutrinas que consideram inadequadas ao seu momento de vida ou a sua cosmovisão de mundo. 

Em tempos de pluralismo, os Catolicismos convivem, mesmo que não tão harmonicamente no colo da Igreja Católica, movimentando, ainda que lentamente, as dinâmicas institucionais internas.

Sílvia Fernandes, doutora em Ciências Sociais, Professora Associada da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Referências:

FERNANDES, S. Christianity in Brazil – An Introduction from a Global Perspective. London, New York: Bloomsbury, 2022. 

MARIZ, C. L. ; SOUZA, C. H. . Carismáticos e pentecostais: os limites das trocas ecumênicas. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar , v. 5, p. 381-408, 2015.

MARIZ, C. Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião. Tempo Social (USP. Impresso) , São Paulo, v. 17, n.2, p. 253-274, 2005.