A Páscoa sob múltiplas perspectivas
Atualização em: 14 abr. 2025 às 11h53

Por Luiz Carlos Ramos
- 09 abr 2025
- 10 min de leitura

Origens, ressignificações e divergências entre religiões e no campo religioso cristão
Observada em praticamente todo o mundo, a Páscoa se destaca como uma das celebrações religiosas mais significativas, superando barreiras culturais e temporais. Ao adotar uma abordagem multidisciplinar, que integra as perspectivas sociológica, antropológica e política, torna-se possível revelar as dinâmicas de poder, as construções sociais de significado e as práticas culturais que caracterizam a festa.
Neste verbete é explorada a origem judaica da Páscoa, sua ressignificação no cristianismo, sua evolução histórica e as diferentes interpretações e práticas nos principais ramos do cristianismo na atualidade.
A “Páscoa Judaica”: raízes históricas e significado original
A origem da “Páscoa judaica” (Pessach) é tradicionalmente compreendida dentro do contexto histórico-mítico do Êxodo do Egito, considerado um evento seminal para o povo de Israel. Essa experiência fundante do povo de Israel, evoluiu cercando-se de rituais e símbolos que conferiam sentido memorial e teológico à celebração: o cordeiro pascal, o pão ázimo (matzá) e as ervas amargas, sempre conectadas à narrativa da libertação da escravidão.
O significado teológico e cultural de Pessach para o judaísmo, portanto, vincula-se à memória da libertação, à aliança com Deus e à identidade do povo judeu. Nessa celebração anual, mesclam-se aspectos culturais e sociais, tais como as refeições familiares (Seder) e as tradições transmitidas de geração em geração.
A perspectiva antropológica nos ajuda a entender de que maneira o Pessach funciona como um ritual de passagem e de reafirmação da identidade coletiva judaica, reforçando laços sociais e transmitindo valores culturais.
Não devemos desconsiderar que as origens da observância de Pessach entre os judeus pode ser explicada como um processo complexo de sincretismo cultural e adaptação de práticas agrícolas e rituais sazonais de povos vizinhos, que foram gradualmente incorporados e ressignificados dentro de uma narrativa histórica e identitária própria.
Estudos socioantropológicos nos permitem perceber as influências de culturas agrárias da Mesopotâmia e do Levante, particularmente dos Festivais da Primavera, que frequentemente envolviam rituais de fertilidade para garantir boas colheitas e a prosperidade da comunidade.
Em algumas dessas culturas, rituais de purificação eram comuns no início da primavera para afastar os “maus espíritos” ou a má sorte, preparando o terreno para um novo ciclo. Sacrifícios de animais, muitas vezes cordeiros, eram realizados como oferendas ou para expiação.
A prática de consumir pães não fermentados pode ter raízes em antigas tradições nômades ou em rituais de pressa associados ao início de novas empreitadas, como a partida para o plantio ou para migrações sazonais. A ausência de fermento poderia simbolizar pureza ou a urgência da partida e pode ter sido reforçada pela praticidade de pães não levedados, que demandavam menor volume para transporte em contextos de deslocamento.
O festival da primavera, com seus temas de renovação e libertação do inverno, encontrou eco na narrativa da libertação da opressão egípcia, transformando-se em uma celebração da liberdade e da identidade nacional.
A Ressignificação da Páscoa pelo Cristianismo: do Cordeiro Pascal ao Cristo Ressuscitado
O Êxodo, evento central da Bíblia Hebraica que originou a Páscoa, encontra um paralelo no Cristianismo, tal como registrado no Novo Testamento da Bíblia, com a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, que se configuraram como seu acontecimento central.
A narrativa do evangelho de Jesus Cristo atinge seu clímax em eventos que coincidem no tempo com a Páscoa judaica. Essa sobreposição cronológica possibilitou um arranjo teológico e literário que atribuiu um novo significado à festa para os seguidores de Jesus.
A Última Ceia de Jesus com seus discípulos constitui-se no ponto de transição entre a Páscoa judaica e a Páscoa cristã. Jesus passa a ser identificado com o cordeiro pascal (embora não haja uma única passagem em que Jesus declare explicitamente “Eu sou o cordeiro pascal”) e a instituição da Eucaristia (ou Santa Ceia) passa a ser entendida como um memorial de seu sacrifício.
As narrativas em torno da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus são assumidas como eventos centrais da Páscoa cristã, interpretados como o cumprimento das profecias bíblicas e firmemente estabelecidos como o núcleo da fé cristã.
Paulatinamente, a Páscoa cristã ressignifica o conceito de libertação, transcendendo a libertação política da escravidão para uma libertação espiritual do pecado e da morte através do sacrifício e da ressurreição de Cristo. Essa perspectiva teológica prevaleceu em grande parte do período medieval, embora a perspectiva política nunca tenha sido completamente anulada. Esporadicamente, novas Teologias da Libertação ressurgiam.
Evolução histórica e concepção teológica da Páscoa do Judaísmo ao Cristianismo
As primeiras comunidades cristãs eram compostas majoritariamente por judeus convertidos, que inicialmente celebravam a ressurreição de Cristo dentro do contexto de Pessach. A ressurreição era vista como o cumprimento das esperanças messiânicas e o novo significado da libertação.
Com o aumento de convertidos e a crescente separação do cristianismo do judaísmo, a Páscoa cristã começou a desenvolver suas próprias características, distinguindo-se do Pessach judaico em termos de data e ênfase teológica.
Houve uma significativa controvérsia sobre a data da celebração da Páscoa. Algumas comunidades celebravam-na no mesmo dia do Pessach judaico (14 de Nisã), independentemente do dia da semana, enfatizando a conexão com a crucificação. Enquanto outras comunidades celebravam no domingo seguinte ao Pessach, enfatizando a ressurreição.
Nisã é o primeiro mês do ano eclesiástico no calendário lunissolar hebraico. A Torá associa ao Pessach à época da colheita da cevada (Êxodo 9.31-32; Levítico 23.10-11), coincidindo com a primavera no Hemisfério Norte. Assim, convencionou-se entre os judeus que a data da Páscoa coincidiria com a primeira Lua Cheia da primavera (Hemisfério Norte). Os cristãos seguiram essa lógica, adaptando a celebração para o primeiro domingo da primavera.
A Liturgia Pascal cristã consolidou-se no Período Medieval (Século V ao XV). Nesse período se deu o desenvolvimento de rituais e cerimônias mais complexas. Entre elas, podemos mencionar a observância do Domingo de Ramos, festa muito antiga, que relembra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém com bênção de ramos; a Quinta-feira Santa, com a observância do Memorial da Última Ceia, da instituição da Eucaristia e, em algumas tradições, do lava-pés; a Sexta-feira Santa, dia de luto e penitência, dedicado à leitura da Paixão e à veneração da cruz; o Sábado Santo, dia de espera, que culmina na solene Vigília Pascal com a bênção do fogo novo, círio pascal e proclamação do “Exsultet”. O clímax da festa se dá no Domingo de Páscoa, que é quando se celebra a Ressurreição com alegres solenidades.
A importância e a centralidade da Páscoa na tradição cristã levaram ao desenvolvimento gradual de um período de preparação espiritual para as grandes solenidades da Semana Santa que culminará com o Domingo da Ressurreição. Esse período de quarenta dias, conhecido como Quaresma e dedicado à penitência, ao jejum e à oração, foi estabelecido com base em diversas referências da Bíblia Hebraica e na vida de Jesus.
Da mesma forma e pelos mesmos motivos, o Tempo Pascal teve sua celebração estendida por cinquenta dias, até Pentecostes.
Nuanças da Páscoa nos diversos ramos do cristianismo
A perspectiva exposta acima caracteriza o entendimento e a observância da Páscoa no contexto do Catolicismo romano, bem como nas igrejas protestantes históricas. Com maior ou menor riqueza, observa-se a ênfase litúrgica nos detalhes da liturgia da Semana Santa, incluindo o Domingo de Ramos, a Quinta-feira Santa (Lava-pés e Instituição da Eucaristia), a Sexta-feira Santa (Paixão de Cristo) e o Domingo de Páscoa (Celebração da Ressurreição).
O sentido teológico encontra sua centralidade na Eucaristia como memorial do sacrifício de Cristo e a importância da ressurreição para a salvação. Abstinência de carne na Quaresma e os ovos de Páscoa como símbolos de vida nova devem ser percebidas como práticas culturais de diversificadas origens e influências.
No Protestantismo Histórico (Luteranismo, Calvinismo, Anglicanismo), privilegia-se a centralidade da Escritura. Enfatiza-se a Bíblia como a principal fonte de autoridade para a compreensão da Páscoa; e foca-se na justificação pela fé, sendo a ressurreição de Cristo vista como a confirmação da justificação pela fé e da obra redentora de Deus.
No Pentecostalismo, a Páscoa é vivenciada com forte ênfase na experiência pessoal da fé, no poder do Espírito Santo e na manifestação de dons espirituais. As datas especiais e a observância dos tempos de preparação (Quaresma) ou festivos recebem pouca ênfase. Contraditoriamente, os pentecostais geralmente não celebram o Tempo Pascal que culmina com a festa de Pentecostes.
Alguns segmentos do chamado neopentecostalismo podem enfatizar a ressurreição de Cristo como um prenúncio de vitória e prosperidade terrena para os crentes. Algumas igrejas denominadas neopentecostais articulam a mensagem da Páscoa com questões sociais e políticas, buscando influência na esfera pública de maneira bastante particularizada, isto é, não como um processo de libertação política, mas como um reforço de uma teologia do domínio. É preciso, contudo, que se reconheça a grande diversidade entre pentecostais, com diferentes ênfases e interpretações da Páscoa.
Conclusão
A Páscoa revela dinâmicas sociais (coesão de grupos, transmissão de valores), antropológicas (rituais, símbolos, mitos) e políticas (influência religiosa na sociedade). A permanência e a adaptabilidade do significado da Páscoa no mundo contemporâneo convidam a considerar os desafios e as transformações no campo religioso.
Referências
CELAM, C. E. L.-A. Manual de liturgia II: A celebração do mistério pascal, fundamentos teológicos e elementos constitutivos. Tradução GONÇALVES, M. S. São Paulo: Paulus, 2005. 437 p. (Manual de Liturgia, v. 2). ISBN 85-349-2286-1.
DICIONÁRIO de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992. ISBN 85-05-01112-0.
GAED NETO, R. As comunhões de mesa de Jesus e a Ceia do Senhor. Tear: Liturgia em Revista, 2005, n. 16, p. 16, 2005 2005.
MANUAL de ciência litúrgica: Ciência litúrgica na teologia e prática da igreja. Tradução KIRST, M.;SANDERE, L. M., et al. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2013 400 p., v. História e forma do culto).
PASTRO, C. Iniciação à liturgia. São Paulo: Paulinas, 2012. 184 p. ISBN-13: 978-8535630770.
RAMOS, L. C. Em espírito e em verdade: curso prático de liturgia. 2 ed. São Bernardo do Campo: Editeo, 2012. 156 p. (Cristianismo Prático. ISBN: 978-85-80460-10-0.
Como citar
RAMOS, Luiz Carlos. "A Páscoa sob múltiplas perspectivas". Disponível em: . Acesso em: .