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Chegamos ao aguardado ano de 2022. Com eleições, bicentenário da Independência do Brasil, revisão da Lei de Cotas e outros marcos importantes para reflexão no nível nacional, os próximos meses reservam calorosas discussões sobre os rumos políticos, econômicos, ambientais e sociais do país.
O Congresso Nacional, palco das principais deliberações de interesse comum a todos os brasileiros, deu início ao seu expediente anual em 02 de fevereiro. Contudo, grande parte dos trabalhos ainda está restrita ao ambiente virtual, tendo em vista o agravamento da pandemia do coronavírus nos últimos três meses. Ao refletir sobre o avanço da variante Ômicron, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP/AL) determinou a volta presencial dos parlamentares somente após o Carnaval, em março.
Neste cenário de adaptações e alinhamento de expectativas com relação a 2022, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) – em especial, a parcela denominada Bancada Evangélica, com seu grupo reduzido e fortemente engajado nas pautas conservadoras – passou por mudanças na liderança e apresentou ao público suas pretensões para o último ano da legislatura vigente, que se encerra em dezembro.
Em análises publicadas anteriormente na plataforma Religião e Poder, explicamos as diferenças entre frentes parlamentares e bancadas, que, por vezes, são mencionadas nas mídias como articulações sinônimas. Porém, as frentes são agrupamentos relacionados a alguma temática comum, formalizados por meio de Ato da Mesa Diretora da Câmara e precisam cumprir regras para sua formação, como reunir pelo menos um terço dos membros do Congresso. Esta condição faz com que a maior porção dos integrantes das frentes não seja, necessariamente, comprometida com os temas centrais daqueles grupos, e assine a adesão como forma de apoio, em relação com articulações partidárias e outros alinhamentos. Os parlamentares realmente empenhados nas pautas de uma frente, por conseguinte, são, frequentemente, os que constituem as bancadas informais. Esses integrantes tendem a se restringir à diretoria da frente, no caso da FPE, à presidência e ao secretariado (em torno de dez deputados) e a um “núcleo duro” (cerca de onze parlamentares).
Esta distinção é primordial em qualquer estudo sobre as frentes parlamentares, principalmente a respeito da FPE. Nela, seus dirigentes estrategicamente optam por mobilizar o título “Frente Parlamentar Evangélica” em vez de “Bancada Evangélica”, já que isto garante uma imagem de amplitude e coesão em relação ao ajuntamento, além da formalização que a insere na estrutura da Câmara.
Tensões inéditas pelo comando da FPE
A legislatura 2019-2022 vem sendo marcada por disputas inéditas pela presidência da FPE. No início do período, em 2019, a FPE passou a ser presidida pelo pastor da Assembleia de Deus – Ministério Belém (AD Belém) Silas Câmara (Republicanos/AM), depois de grande disputa interna, que tinha o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC) Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ), como forte candidato ao lado de Câmara. Outros três também ligados à Assembleia de Deus – Ministério Madureira se apresentaram ao cargo: o pastor Antonio Cezar Correia Freire, o Cezinha de Madureira, o empresário Glaustin da Fokus (PSC/GO) e o pastor Abílio Santana (PR, depois PL/BA).
A disputa, tomada por tensões, foi considerada uma novidade por observadores do histórico da FPE. Eram seis candidatos à presidência da frente, que, em outras legislaturas, se unia em torno de um nome de consenso, sem eleição. O racha deu visibilidade às competições entre três pólos da Assembleia de Deus: o de Belém e o de Madureira, historicamente antagônicos, frutos de divisão no início do século 20, e o da ADVEC, cujo presidente é o Pastor Silas Malafaia, fruto de divisão com o Ministério Belém.
A Assembleia de Deus é a maior denominação evangélica do país, mas não deve ser vista como uma única igreja. Ela é, na verdade, um grupo de igrejas articuladas em torno do nome “Assembleia de Deus” atribuída a dezenas de ministérios, fundados por lideranças (famílias de pastores), resultantes de divisões internas, e convenções que são associações fraternas (para fortalecimento de laços) entre os distintos ministérios. Os ministérios são o espaço de exercício de poder e influência e as convenções são as articulações que também simbolizam jogos de força.
Belém, Madureira e Vitória em Cristo são os três ministérios com mais visibilidade nacional devido ao destaque das famílias que os lideram – respectivamente, Bezerra, Ferreira e Malafaia – na ocupação da política e das mídias. Entretanto, há dezenas de outros ministérios que acumulam poder eclesiástico, patrimonial e político, como o de Anápolis/GO, liderado pelo pastor José Clarimundo, e o de Perus/SP, presidido pelo pastor Elias Cardoso.
A contenda na primeira diretoria da FPE, na legislatura 2019-2022, deu forma, ainda, a um contexto de disputa de poder no interior de um segmento evangélico mais amplo, aliançado com o Presidente da República eleito, Jair Bolsonaro. A presidência da FPE certamente colocaria um capital político de peso no deputado que a conduzisse.
Depois de dias de conflito e hostilidades naquele início de 2019, houve acordo e cinco renunciaram em torno de um acordo pela eleição de Silas Câmara, com um discurso de que a frente precisava de unidade. Os cinco desistentes tornaram-se, então, vice-presidentes.
Ao final do primeiro ano da legislatura, uma nova tensão: em 26 de novembro de 2019, aliados de Silas Câmara realizaram reunião para mudar o estatuto da FPE e possibilitar a reeleição do presidente para 2020, cujo mandato estatutário de um ano se encerraria em dezembro daquele ano, sem direito à recondução. A decisão em reunião, com poucos participantes, articulada por Cezinha de Madureira, foi presenciada por jornalistas, e reacendeu as tensões vividas no início da legislatura.
Samuel Câmara – que aguarda julgamento do Supremo Tribunal Federal após denúncia de peculato – deixou o comando da FPE no final de 2020, após o segundo ano de mandato articulado. Nesta fase, o ambiente de disputa interna foi superado com a definição pelo nome de Cezinha de Madureira para liderar a FPE no ano de 2021. Sóstenes Cavalcante abriu mão de concorrer e permaneceu com uma das vice-presidências depois de acordar assumir a cadeira da presidência da frente em 2022, retomando o mandato de um ano sem reeleição. Analistas consideraram a possibilidade de influência do governo federal para que um novo racha fosse evitado, o que foi descartado por Cavalcante em entrevista.
A gestão de Cezinha de Madureira foi alvo de críticas já no primeiro bimestre do ano passado em razão de seu envolvimento com o projeto que visa regularizar os jogos de azar no país e também devido à tendência menos ortodoxa e de abertura às esquerdas da AD Madureira, da qual o deputado paulista é influente liderança.
Cumprido o acordo do final de 2020, no retorno das atividades legislativas deste ano, em 9 de fevereiro de 2022, Sóstenes Cavalcante foi empossado como o novo presidente da FPE. A assunção do deputado foi comemorada pelos deputados mais alinhados à Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (COGEADB), ligada ao Ministério Belém e ao bolsonarismo, uma vez que desaprovavam a flexibilidade política do antecessor.
Cezinha de Madureira, por exemplo, foi alvo de críticas de parlamentares evangélicos conservadores quando participou de encontro com o deputado federal Marcelo Freixo (PSB/RJ), pré-candidato ao governo do estado do Rio, em culto na AD Madureira, em dezembro do ano passado. Na ocasião, Freixo discursou no altar da igreja diante de 90 bispos e 900 pastores e entoou: “O caminho de Cristo é o caminho da verdade”.
Sob nova direção
O novo presidente da FPE Sóstenes Cavalcante tem, agora, o desafio de conduzi-la neste ano eleitoral, quando os evangélicos se traduzem numa força política amplamente disputada pelos candidatos.
Em entrevista à repórter da Folha de S. Paulo Anna Virginia Balloussier, Cavalcante compartilhou suas ambições para o futuro: o deputado pretende expandir o número de integrantes da FPE em 30% nestas eleições. Sua justificativa se refere ao contingente de evangélicos no país, número que só cresce e que, de acordo com a avaliação do parlamentar, deve ser devidamente representado no Legislativo federal. Vale ressaltar que o discurso do deputado aborda, estrategicamente, os termos “frente parlamentar” e “bancada” como sinônimos, o que não reflete verdadeiramente o cotidiano da atuação da FPE e das outras centenas de frentes do Congresso Nacional.
No depoimento à Folha, Sóstenes ainda lançou mão do discurso do antipetismo, que marcou a campanha eleitoral de 2018, e teceu críticas ao PT, considerado por ele um partido que “não consegue mais enganar o público evangélico”. O pastor projetou uma iminente reeleição de Jair Bolsonaro com apoio de 90% dos evangélicos do país.
O deputado ainda fez considerações ao governo Bolsonaro, que não cumpriu o prometido na campanha de 2018 e pouco avançou nas pautas de costumes como era esperado por evangélicos mais conservadores. Para Cavalcante, Bolsonaro acertou ao brecar discussões que “afrontam” os evangélicos e atribuiu à pandemia a dificuldade em caminhar com determinados temas.
Na abertura dos trabalhos da FPE no fatídico 2022, a bancada evangélica conquistou, em 18 de fevereiro, a Emenda Constitucional nº 116, que instituiu a isenção de IPTU para os templos religiosos alugados. Em postagem no Instagram, a FPE comemorou o feito e agradeceu ao antigo presidente, Cezinha Madureira, pelas articulações iniciais que culminaram na conquista. Dois dias antes, os parlamentares evangélicos da FPE se reuniram em culto nas dependências da Câmara, liderado pelo deputado Pastor Eurico (Patriota/PE). A pregação ficou sob a responsabilidade do pastor convidado, fundador da Comunidade Cristã Paz e Vida, com sede em São Paulo, Juanribe Pagliarin.
O acompanhamento da FPE deve ser tomado como tarefa complexa neste 2022. Como os episódios em torno da definição das diretorias nesta legislatura demonstram, olhar a bancada evangélica e suas movimentações no “tabuleiro político” exige muito mais do que atenção ao que se passa no Congresso Nacional. Exige foco também nas disputas históricas no interior da arena assembleiana, cuja dinâmica é intensa e frequentemente recheada de novos lances e personagens.
Gabrielle Abreu é historiadora, mestre em História Comparada (UFRJ) e pesquisadora no Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Colaboradora do ISER.
Foto: Divulgação Frente Parlamentar Evangélica