Por que tantas pessoas falam em “ideologia de gênero”? Quando este termo surge? Sua origem está nas igrejas? Como este termo se relaciona aos movimentos feministas e LGBTIQA+? O que a escola tem a ver com tudo isso? Por que falar de gênero gera debates tão acalorados?

O conceito de gênero emerge no interior das políticas feministas. Sua elaboração articulou diferentes vertentes teóricas e ativismos que questionaram a vinculação do caráter biológico ao destino social das mulheres, combatendo os essencialismos persistentes na vida social. Gênero, portanto, surge como um termo que se contrapõe ao sexo biológico e considera que as desigualdades na distribuição do poder contribuem para a perpetuação de preconceitos, opressões e discriminações. Com o passar dos anos, o debate foi além da dicotomia com o sexo biológico. Se, em um primeiro momento, as discussões apontavam para uma alternativa à predominância da categoria mulher nos debates feministas, outras teorias sobre o gênero foram ganhando espaço através de vertentes como a pós-estruturalista, uma das quais vem produzindo interpretações mais atentas às masculinidades e feminilidades em suas dimensões de raça, classe, sexualidade e outros marcadores sociais da diferença.

Na medida em que esse debate ganhou proeminência, mobilizações de outros grupos passaram a classificar estas pautas como ideológicas, perigosas e contrárias ao que consideravam “fatos naturais” que diferenciam homens e mulheres, isto é, o sexo biológico. Inicialmente conduzido por representantes do Vaticano, tais críticas ao conceito de gênero entraram na esfera pública por meio de textos escritos pelo então Arcebispo Joseph Ratzinger e futuro Papa Bento XVI a partir de 1997. Nos textos, o cardeal acusa a “cultura moderna” de promover ideologias que se distanciavam dos preceitos cristãos da família nuclear e seus pressupostos, sustentados na reprodução dos ideais de boa esposa e mãe virtuosa.

Embora não haja consenso na bibliografia feminista, essas primeiras reações da Santa Sé costumam ser atribuídas aos debates promovidos durante eventos organizados pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao longo dos anos 1990, tais como a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), ocorrida no Cairo em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada um ano depois em Pequim.

Por meio do Documento de Aparecida, publicado pela Santa Sé em 2007, o termo “ideologia de gênero” ganhou ainda mais corpo no interior de grupos ativistas católicos, como o da norte-americana Dale O’Leary, que havia publicado ainda na década anterior o livro “A agenda de gênero”. Sua obra se opunha à “doutrinação marxista” que, supostamente, embasaria a também então chamada “ideologia feminista radical”, e exerceu um papel fundamental no impulsionamento de movimentos atuantes nas cruzadas anti-gênero e que logo extrapolaram os grupos católicos.

Com a influência de O’Leary, as acusações de que havia uma combinação entre uma influência maligna e uma teoria doutrinadora ganharam força. Esse posicionamento, entretanto, considera que as diferentes vertentes, linhas e escolas de pensamento feministas e de movimentos LGBTIQIA+ são homogêneos, além de transformá-los em inimigos a serem combatidos justamente no momento em que esses movimentos se expandiam.

Aos poucos, a estruturação da agenda anti-gênero passou a incluir alianças com outros sujeitos religiosos, principalmente grupos evangélicos, mas também com atores políticos que não apresentavam identidades religiosas. Em meio a esses múltiplos arranjos, a questão dos currículos escolares acabou se tornando um campo importante de disputas. 

Um dos episódios mais marcantes ocorreu durante os debates sobre o Plano de Implementação proposto pelo Programa Brasil Sem Homofobia. Rapidamente apelidado por seus opositores como “kit gay”, o programa ganhou críticas protagonizadas por juristas católicos, a exemplo das promovidas pelo idealizador do movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib. Sob o argumento de que o programa promoveria a sexualização precoce das crianças, ele acabou sendo vetado pela então Presidenta Dilma Rousseff, em 2011. Tal fato não impediu, entretanto, que fake news sobre a distribuição de “mamadeiras de piroca” nas escolas por governos de esquerda se tornassem destaque em pleitos eleitorais, sobretudo em 2016 e 2018.

A intensificação das críticas em torno do termo “ideologia de gênero” ajudou, ainda, a dar mais visibilidade à presença religiosa no espaço público brasileiro. Tal como vimos no verbete “Liberdade Religiosa”, publicado em nosso Glossário, a separação oficial entre religião e Estado, vigente após as legislações que instituem o Estado Laico, não foi suficiente para garantir a igualdade entre religiões, crenças e pensamentos. 

No Brasil, a forte presença católica herdada da colonização portuguesa é visível em muitos aspectos e exerce atuação determinante em escolas e repartições públicas. Símbolos católicos como crucifixos e imagens religiosas, por exemplo, usualmente presentes nesses espaços, materializam as relações de poder que determinam comportamentos e currículos escolares. Não por acaso, o ambiente escolar se transformou em uma das principais arenas de disputa em torno da chamada “ideologia de gênero”. Neste mesmo espaço, o ensino religioso, sempre restrito ao cristianismo, ainda é praticado ao mesmo tempo em que professoras e professores encontram dificuldades para cumprir a lei que obriga a inclusão do ensino da História da África nos currículos escolares.

Os enfrentamentos no campo da educação pública também podem ser observados no interior das universidades, sobretudo nos cursos de ciências humanas. Ataques promovidos à filósofa Judith Butler, quando de sua visita ao SESC Pompeia em São Paulo, em 2017, serviu como prenúncio daquilo que a agenda anti-gênero vem impondo a intelectuais e atores políticos que debatem o tema publicamente. São linchamentos, discursos de ódio, intimidações que incluem desde invasões a eventos acadêmicos por grupos de direita e extrema-direita a outros tipos de perseguições no cotidiano digital de docentes e discentes nas universidades públicas, a exemplo do que ocorreu com professoras como Débora Diniz e Lola Aronovich.

O caso do também professor e ex-deputado federal Jean Wyllys combina essa a outra face das coerções promovidas pelos defensores da “ideologia de gênero” no campo institucional: a crescente violência cometida contra parlamentares LGBTQIA+. Segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 80% das parlamentares trans e travestis eleitas relataram não se sentirem seguras no exercício de seus cargos.

No campo dos direitos civis e da saúde, são os argumentos contra o aborto e a patologização das identidades de gênero e de orientações sexuais que ganham maior espaço. Não por acaso, são constantes as manifestações e pressões por parte dos grupos antigênero para suspender a Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, que impede que profissionais de Psicologia colaborem com tratamentos e curas das homossexualidades, a chamada “cura gay”. 

De modo geral, as ações dos grupos antigênero são compreendidas por especialistas do campo de gênero e sexualidade através de fatores relacionados à “eleição de perigos” ou “produção de pânicos morais”. Essas estratégias são múltiplas, modificam-se historicamente e adaptam-se aos contextos nos quais se inserem. Assim, enquanto no Brasil o campo cristão constrói seu protagonismo nos ataques à “ideologia de gênero”, ele também elege inimigos supostamente ligados à esquerda, como a Rede Globo de Televisão. Em outros países da América Latina, como a Colômbia, os pânicos morais são associados ao diálogo entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e os governos de esquerda do país. Em ambos os casos, estes atores políticos são contrários às propostas de candidatos vinculados aos partidos de esquerda e, de forma mais ampla, a uma agenda político-institucional comprometida com a defesa e à garantia dos Direitos Humanos.

Para além de seu sentido mais restrito ao campo das identificações em gênero e sexualidade, estes exemplos mostram como aquilo que se chama de “ideologia de gênero” é um campo de disputas que encontra nos atores religiosos seu principal sustentáculo. O termo também compõe uma agenda política transnacional, financiada por atores conservadores, que tem atuado diretamente em pleitos eleitorais em diversos países.  

Conforme indicamos ao longo deste verbete, esses agenciamentos ocorrem na arena política brasileira via atores religiosos e conservadores, de maneira geral, que se articulam no âmbito dos três poderes. A atuação conjunta entre componentes das Bancadas do “Boi”, da “Bala” e da “Bíblia” contra a “ideologia de gênero” e em defesa de uma família, concebida exclusivamente em sua versão heterossexual e monogâmica, marca mais uma das diferentes etapas da gramática moral na geopolítica anti-gênero e enfraquece a luta por Direitos Humanos e defesa de minorias.

Lorena Mochel é antropóloga, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Corpos, Gêneros e Sexualidades (NUSEX/MN/UFRJ).

Referências

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Organizações e Movimentos sociais

Católicas pelo Direito de Decidir

Evangélicas pela Igualdade de Gênero

Frente Evangélica pela Legalização do Aborto

Sexuality Policy Watch