O termo “fundamentalismo” nasceu entre cristãos protestantes nos Estados Unidos no início do século 20 e ganhou novos sentidos, compreensões e significações de acordo com contextos históricos distintos. O movimento que ganhou este nome é originado no final do século 19, entre teólogos protestantes conservadores, calvinistas, no Seminário Teológico de Princeton (EUA), e ampliou-se, nos primórdios do século 20, entre outros grupos protestantes dos Estados Unidos.
Na passagem do século 19 para o 20, tempo de fortes mudanças socioculturais e econômicas, com o avanço da ciência, processos de modernização, urbanização e industrialização, o evangelicalismo se dividiu em duas alas: a liberal, que assumiu o humanismo que embasava as mudanças, estabeleceu o diálogo da teologia com as ciências humanas e sociais, e o surgimento das ciências bíblicas e da teologia liberal. A outra ala é a conservadora, que reagiu fortemente às transformações e à releitura da tradição.
O marco desse movimento conservador foi a publicação da coletânea de 12 volumes intitulada The fundamentals: a testimony to the truth (1910-1915) [“Os fundamentos: um testemunho da verdade”], que teve como editor o Rev. Reuben Ancher Torrey. A coletânea apresentava textos sobre a Bíblia, com defesa de sua inerrância, além de conteúdos de crítica à modernidade, à teologia liberal, à filosofia moderna e ao catolicismo romano. Nestas bases, o cristianismo evangélico é apresentado como a religião verdadeira e é oferecida uma lista de dogmas e doutrinas que sustentam esta afirmação. Outros temas tratados foram a arqueologia e a ciência, com destaque para o fato de a abordagem não ser negacionista, introduziam críticas quando afetavam negativamente “os fundamentos”, mas as valorizava a ciência como meio de validação dos fatos históricos da Bíblia.
Estes “fundamentos” se colocam, portanto, como uma reação contra os valores da modernidade iluminista e humanista, que colocariam em xeque a centralidade do Cristianismo na cultura ocidental, provocando o processo de secularização.
Característica comum deste posicionamento religioso é a revelação divina como princípio estruturante da organização da sociedade em todas as suas dimensões. Tendo como âncora a defesa do mito da civilização cristã ocidental, corporificada na cultura dos países protestantes dominantes, o fundamentalismo nascido entre evangélicos pleiteia para si o cristianismo verdadeiro recusando o diálogo ecumênico, o qual é avaliado como “relativização da fé”.
O movimento fundamentalista manteve-se ativo até os anos 1930, com militantes conservadores presentes em todas as denominações evangélicas. A radicalização fez com que muitos destes se desvinculassem das igrejas evangélicas históricas por conta da adesão delas ao movimento ecumênico (em torno do princípio da unidade na diversidade) e suas organizações. Nos anos 1960, “fundamentalistas” significava “separatistas” e não estavam mais relacionados a conservadores das igrejas históricas e mesmo das pentecostais.
Após a Segunda Guerra Mundial, o fundamentalismo é ressignificado, se internacionaliza e se expande pelo globo acompanhando a expansão do capitalismo estadunidense. O american way of life é exportado para o mundo. Nesse momento, fundamentalistas veem-se como personagens contraculturais, numa batalha pela reconquista da América pelos valores familiares e cristãos, supostamente sequestrados pelo humanismo secular, pela ameaça comunista, pelo feminismo e pelos homossexuais.
Isto se contrapõe, no período, às lutas pelos direitos civis e aos protestos contra a Guerra do Vietnã, abraçadas por amplas parcelas de evangélicos estadunidenses, e gera um certo mal-estar com as relações entre fundamentalismo e extrema-direita, que atingia certos teólogos alinhados com o movimento. Até o final da década de 1960, o segmento fundamentalista nos EUA se mantinha politicamente desarticulado, estabelecendo vínculos com a política quando se imbuía de discursos de anticomunismo e de patriotismo.
A noção de “fundamentalismo” popularizou-se durante a revolução (islâmica) iraniana no final anos 70, a qual foi classificada como tal por analistas e mídias noticiosas, na forma de “religião tradicional militante”. Anos depois, no alvorecer do século 21, é retomado o sentido popularizado, quando passou a ser usado intensamente pelas mídias noticiosas, em todo o mundo, após os atentados de 11 setembro de 2001, nos EUA, como classificação das ações violentas extremistas assumidas por grupos radicais islâmicos.
Com isso foi estabelecida uma imagem negativa do Islã, como, praticamente, sinônimo de fundamentalismo. A popularização do termo, tornou-o equivalente a radicalismo, extremismo, a partir de posturas de autoritarismo, intolerância, intransigência, fanatismo, recusa ao diálogo, negação da pluralidade, reconstrução da ordem moral e idealização do que existiu no passado.
Foi nestes mesmos anos 1970 que se iniciou um processo de recuperação do “evangelicalismo”, como fator de unidade e transição, e o termo “fundamentalismo” ganha nova significação. Herdeiras do fundamentalismo do início do século 20, figuras de destaque inauguram a era dos televangelistas que têm ampla atuação na América Latina.
É um tempo de maior ativismo político com aproximação ao Partido Republicano, formação de grupos de pressão, lobbies, articulações como a Moral Majority [“Maioria Moral”], a nova direita cristã, liderada por Jerry Falwell, em torno das pautas pró-vida e pró-família – isto é, contra o aborto (legalizado nos Estados Unidos em 1973), pela regulação das mídias, com indicações classificativas por faixa etária, contra as conquistas dos direitos civis de mulheres e LGBTI+.
Rapidamente a Direita Cristã, da qual a Maioria Moral seria a principal organização, se tornou uma grande força política nos Estados Unidos e tinha como principais bandeiras: a defesa dos “valores da família” (o que incluía a oposição ao aborto em qualquer caso, o combate à expansão dos direitos dos homossexuais e, também, a restrição à pornografia); a volta da prática das orações e o ensino do criacionismo nas escolas públicas; o combate à disseminação do comunismo juntamente com uma defesa de cunho patriótico ferrenha do capitalismo e do “modo de vida” americano; uma posição extremamente crítica às políticas de bem-estar social; a defesa de uma postura pró-Israel por parte do governo norte-americano; entre outras.
Nestes tempos, o conceito começa a ser utilizado, também, de forma análoga, a outras religiões, para além do Islã, como o Judaísmo. Uma das características comuns desta ampliação da utilização do termo a outras religiões é o antimodernismo, o que se amplia com outras análises para a reação a uma percepção de ameaça ou crise, a dramatização e a mitologização de inimigos da fé, o idealismo religioso, a infalibilidade das escrituras, o extremismo, o proselitismo.
A Maioria Moral entrou fortalecida nos anos 1980, mas foi nos 90 que ganhou mais espaço com a Presidência dos Republicanos Ronald Reagan e George Bush, com força fundamentalista amplificada nos anos 2000, com os governos de Bush filho e de Donald Trump, avaliado como extrema-direita.
Deste processo dos anos pós-Segunda Guerra aos 1990, emergiram teologias como: (i) a do Domínio – a busca do governo do Deus cristão sobre as nações, levando seus seguidores a ocuparem postos de comando no mundo (presidências, ministérios, parlamentos, lideranças de estados, províncias, municípios, supremas cortes) para incidirem na vida pública; (ii) a da Prosperidade – as bênçãos de Deus se manifestam de forma material na vida os fiéis (patrimônio, realizações profissionais, saúde, felicidade na família tradicional); (iii) a da Guerra Cultural – uma atualização das clássicas teologias de guerra espiritual para destruir o mal que busque impedir as ações de Deus no mundo, passando-se a nomear os inimigos do governo de Deus: comunistas, humanistas, feministas, ativistas por direitos civis, e todos que impeçam a realização da prosperidade.
Neste processo, a perspectiva fundamentalista foi se transformando e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma matriz de pensamento, uma postura, ancorada defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade.
É fato que, nas últimas décadas, grupos religiosos e não religiosos surgiram no espaço público, em diferentes contextos do mundo, com ações que podem ser classificadas como “fundamentalistas”, caracterizadas como reativas e reacionárias às mudanças sociais. Nesse sentido, observa-se que o fundamentalismo se torna um fenômeno social que ultrapassa a dimensão religiosa, ganha um perfil mais diversificado e adquire caráter político, econômico, ambiental e cultural.
Nessas atuações, certos “fundamentos” são escolhidos para persuadir a sociedade, a fim de estabelecer fronteiras e lutar contra “inimigos”, o que frequentemente resulta em um movimento polarizador e separatista, que nega o diálogo, a democracia e estabelece um pensamento único que visa direcionar as ações no espaço público.
Por isso, é importante tratar o termo “fundamentalismo” a partir de uma reconstituição histórica de suas diferentes expressões e rechaçar abordagens que o utilizam para denotar acusação e rótulo de contrários. Esta visão amplificada a partir das raízes e das transformações que o sentido de “fundamentalismo” experimentou, leva à compreensão do conceito no plural – “fundamentalismos” – consistindo em formas muito concretas, primeiro de interpretar a realidade (visões de mundo) e depois, de atuar em função desta interpretação.
Portanto, fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos, negação de abordagens científicas classificadas como nocivas à fé ou ao status quo, negação do valor da pluralidade cultural, da diversidade étnica, e dos direitos sexuais, reprodutivos. Matriz religiosa e ações políticas são mutuamente condicionadas nos fundamentalismos. Por isso é possível classificar certas posturas sociopolíticas e econômicas como “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos a serem combatidos em “defesa” da fé ou do status quo, movimentos sociais, ativistas de direitos humanos, cientistas, intelectuais, educadores, sindicatos, partidos políticos, lideranças sociais que atuam na direção oposta. As ações públicas de permanente embate contra estes “inimigos da verdade” são ancoradas no pânico moral (frequentemente com o uso de desinformação e fake news), como alimento do reacionarismo.
Saiba mais!
CUNHA, Magali do Nascimento. Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios à ação. Salvador: Koinonia, 2020. Disponível em: https://kn.org.br/wp-content/uploads/2020/10/FundamentalismosPT-1.pdf
PIERUCCI, Antônio Flávio. Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa. Revista USP, n. 13, p. 144-156, 30 maio 1992. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25620
RAMIREZ, Gabriela Arguedas. Políticas Antigénero en América Latina – “Ideología De Género”, Lo “Postsecular”, el Fundamentalismo Neopentecostal y el Neointegrismo Católico: La Vocación Anti-Democrática. Rio de Janeiro: Observatorio de Sexualidad y Política (SPW)/ABIA, 2020. Disponível em: https://sxpolitics.org/GPAL/