A plataforma Religião e Poder nasceu do interesse do ISER de investigar mais a fundo o lugar das religiões no Legislativo Federal. Para isso, foi desenvolvida uma metodologia inédita de monitoramento da atuação de três frentes parlamentares com identidade religiosa do Congresso Nacional: a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana (FPC) e a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos de Matriz Africana (FPMA).
As frentes parlamentares são, por definição, agrupamentos formados por deputados ou deputados e senadores (no caso das frentes mistas) que se reúnem em torno de uma temática comum, considerada de relevância pública. Com base no acompanhamento das articulações dessas três frentes com identidade religiosa, foi elaborado pelo ISER um rico banco de dados, além de ter sido possível identificar aspectos como o posicionamento dos parlamentares religiosos em votações do Congresso e as principais bandeiras defendidas por esses grupos. As análises realizadas a partir de 2020 podem ser acessadas do campo “Legislativo” desta plataforma.
O estudo sobre as frentes parlamentares com identidade religiosa deixou evidente que cada uma delas tem formas próprias de incidir no Congresso e que isto está relacionado com a maneira pela qual as religiões representadas pelas frentes se manifestam no debate público. As frentes católica e evangélica, por exemplo, que defendem os interesses dos dois segmentos religiosos com o maior número de praticantes do Brasil, têm um histórico mais longo de participação e influência nas decisões políticas do país, inclusive no âmbito da organização em frentes parlamentares ou nas chamadas “bancadas”. A presença organizada dos evangélicos, por exemplo, data desde o processo de redemocratização, com atuação marcante da “bancada evangélica” no Congresso Constituinte que desenhou a Constituição Federal de 1988. Os católicos, por sua vez, são íntimos do poder desde 1500, com destaque em diversos processos políticos desde então, a partir de diferentes tipos de intervenção.
Os religiosos de matriz africana, contudo, possuem uma ingerência mais tímida no Congresso e nos demais espaços que caracterizam a política institucional brasileira. Isto não acontece por acaso: as religiosidades de matriz africana têm sido historicamente marginalizadas e estereotipadas no país. Alvos preferenciais da intolerância religiosa no Brasil, os afrorreligiosos têm suas práticas constantemente demonizadas e associadas à barbárie. Os resultados da desinformação e do preconceito que circundam essas manifestações religiosas são os graves ataques aos espaços físicos de culto aos orixás e demais entidades reverenciadas (os terreiros), além das ofensas e agressões físicas contra homens e mulheres adeptos desta religião.
Por trás de toda essa repressão está o racismo religioso. Isso porque as religiões de matriz africana, conforme o termo indica, se originaram das práticas religiosas exercidas milenarmente no continente africano. Em solo brasileiro, trazidas pelos escravizados que atravessaram o Oceano Atlântico, essas manifestações ganharam rubricas próprias, sendo o candomblé e a umbanda as suas maiores expressões. No entanto, com a hegemonia histórica da fé cristã no país, muitos adeptos de religiões de matriz africana optam por ocultar sua identidade religiosa na tentativa de driblar o preconceito e a violência contra o segmento.
O Censo de 2010 identificou que apenas 0,31% da população brasileira é constituída por praticantes de religiões de matriz africana (pouco mais de 500 mil religiosos). Já o Instituto Datafolha, em pesquisa que buscou atualizar os dados do último recenseamento, indicou que, em 2020, os afrorreligiosos representavam 2% dos brasileiros. Apesar do crescimento neste intervalo de dez anos, pode-se aventar que este número, na realidade, é maior, visto que ainda há uma grande apreensão por parte desses religiosos em exteriorizar essas informações. De fato, a divulgação pública da pertença afrorreligiosa pode acarretar consequências perigosas para a vida de seus praticantes. Os resultados preliminares do Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011 – 2015) atestaram que são os afrorreligiosos as principais vítimas deste tipo de discriminação. Após análise de matérias na imprensa que noticiaram ataques a religiosos diversos (página 55), o relatório concluiu que os religiosos de matriz africana representaram 53% das vítimas informadas nas reportagens.
Diante de tanta hostilidade, lideranças afrorreligiosas perceberam, na via institucional, um caminho de combate à intolerância. Nas eleições municipais de 2016, de acordo com levantamento realizado por Ari Pedro Oro e Erico Carvalho (2017), 15 das 27 capitais do Brasil tiveram candidatos/as afrorreligiosos/as concorrendo ao cargo de vereador/a, somando um total de 37 candidatos pertencentes à religiões de matriz africana. Já nas eleições de 2020, segundo pesquisa realizada pelo ISER a ser publicada, estiveram na disputa ao Legislativo Municipal em oito capitais brasileiras, 1.044 candidatos religiosos (dentre evangélicos, católicos, afrorreligiosos, judeus e outros). Destes, 63 são candomblecistas ou umbandistas, ou seja, pouco mais de 6%. Muitos desses candidatos incluíram a defesa da religiosidade de matriz africana como pauta central em suas campanhas.
Outra incidência política importante que foi empreendida com o intuito de respaldar as experiências afrorreligiosas no Brasil foi a já mencionada Frente Parlamentar em Defesa dos Povos de Matriz Africana (FPMA). Presidida pela deputada federal Erika Kokay (PT-DF), a FPMA foi lançada na legislatura atual (2018-2022) e contou com as assinaturas de 214 deputados e quatro senadores. Todos eles se dispuseram a “promover o conhecimento e o valor universal dos povos de matriz africana, conforme consta dos tratados internacionais de direitos humanos, [a Conferência de] Durban e Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], dos quais o Brasil é signatário”, segundo o requerimento de formação da frente.
No entanto, a atual formação da FPMA remonta à criação de frentes de caráter semelhante em legislaturas passadas. Segundo Christina Vital da Cunha (2021), em junho de 2011, foi criada a Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Tradicionais de Terreiros, popularmente conhecida como Frente Parlamentar de Terreiros (FPT). Também liderada por Erika Kokay, a FPT mantinha, dentre todos os seus integrantes, 13 deputados federais que se engajaram mais ativamente com a frente e seus princípios. O desenvolvimento de núcleos mais reduzidos no interior das frentes parlamentares é bastante comum, já que o regulamento do Congresso exige o mínimo de 198 assinaturas (um terço dos parlamentares) para a formalização dos grupos. Os 13 deputados que constituíam este conjunto menor eram filiados a partidos de esquerda ou de centro-esquerda. Destes, dez eram do Partido dos Trabalhadores (PT).
Na legislatura seguinte, em 2015, foi formada a FPMA, que viria a ser relançada com o mesmo nome em 2019. Kokay se manteve na presidência, mas o núcleo articulador foi bastante reduzido, contando com apenas cinco deputados. Novamente, todos eles eram pertencentes a partidos de esquerda: PT, PSB, PSOL, PDT e PCdoB. Conforme assinala Christina Vital, as atividades da frente haviam sido interrompidas com o golpe de 2016 que afastou a então presidenta Dilma Rousseff do poder.
O que essas três temporadas de atuação da FPMA têm em comum é a incorporação do enfrentamento ao racismo e da valorização das culturas africana e afro-brasileira, alinhados à luta pelo fim da intolerância religiosa. Além do fato de nenhum dos signatários da FPMA se declarar adepto de qualquer religião de matriz africana, o tema da religião não é apresentado, portanto, de maneira primordial, como no caso da FPE e da FPC. Ele surge, na verdade, tangenciado pelos debates sobre cultura, patrimônio e antirracismo. O tom do requerimento oficial de formação da última versão da FPMA nos dá uma boa percepção disso ao mencionar a importância da garantia de direitos fundamentais e dos tratados internacionais dos quais o Brasil está pactuado.
Mais uma articulação importante e recente dos afrorreligiosos na política é a Teia Nacional Legislativa dos Povos de Matriz Africana, fomentada pelo Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma), que também esteve ligado à construção das frentes parlamentares afrorreligiosas. A Teia foi consolidada em julho de 2020 com o objetivo de “criar um canal direto de comunicação entre os mandatos e a sociedade civil. (…) Ela [a teia] deve ser um catalisador na mobilização dos povos tradicionais de matriz africana”. As lideranças acrescentam que o grupo “constitui espaços de formação política e comunicação permanente, a fim de permitir uma atuação efetiva dos seus membros junto aos movimentos sociais e mandatos parlamentares através da apresentação de novas pautas legislativas relevantes”.
Para dar cabo a essas movimentações, a Teia reuniu, em 2020, dez deputados federais comprometidos com seus valores e dispôs de pelo menos duas lideranças afrorreligiosas (chamadas de “autoridades tradicionais”) para orientar os parlamentares. Em nível nacional, os deputados escolhidos foram: Erika Kokay (PT/DF), Rosa Neide (PT/MT), Pompeo de Mattos (PDT/PE), Paulo Ramos (PDT/RJ), David Miranda (PSOL/RJ), Áurea Carolina (PSOL/MG), Jandira Feghali (PCdoB/RJ), Márcio Jerry (PCdoB/MA), Heitor Schuch (PSB/RS) e Alessandro Molon (PSB/RJ). Outra vez, vemos o protagonismo da esquerda no empenho legislativo a favor das religiões de matriz africana.
Atualmente, o expediente da Teia consiste na realização de lives, seminários e encontros de formação online sobre racismo e sistema alimentar. Ao longo das eleições municipais de 2020, a página da Teia no Facebook divulgou diversos candidatos afrorreligiosos ao redor do país. Em julho deste ano, a Teia comemorou a criação de um setorial específico para a discussão sobre as necessidades da população afrorreligiosa no interior do PT, o Núcleo Nacional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Tal Núcleo é um dos frutos da atuação da Teia.
As articulações dos afrorreligiosos na política institucional brasileira são relativamente novas e têm sido mobilizadas a partir de diferentes formatos. No geral, o aspecto religioso de combate à intolerância contra esses grupos é somado à pauta do enfrentamento ao racismo e da importância de salvaguardar elementos das culturas africanas e afro-brasileiras. A incidência das lideranças afrorreligiosas tende a crescer nos próximos anos, sobretudo em processos eleitorais, tendo em vista o aumento de candidaturas encabeçadas por elas entre os anos de 2016 e 2020, conforme demonstrado. Na mesma medida, cresce também a violência contra esses religiosos. A urgência por uma efetiva liberdade de crença no Brasil tem feito os afrorreligiosos superarem os receios frente à arena pública e colocarem na mesa as suas necessidades.
Gabrielle Abreu é historiadora, mestre em História Comparada (UFRJ) e pesquisadora no ISER.
Foto: Elson Sempé Pedroso/Câmara Municipal de Porto Alegre
Saiba mais:
CARVALHO JUNIOR, Erico Tavares de; ORO, Ari Pedro. Eleições municipais 2016: religião e política nas capitais brasileiras. Debates do NER. Porto Alegre, RS. Vol. 18, n. 32 (jul./dez. 2017), p.[15]-68, 2017.
VITAL DA CUNHA, CHRISTINA. Ativismo negro e religioso: O caso da Frente Parlamentar de Terreiros no Congresso Nacional Brasileiro. Novos estudos CEBRAP, v. 40, p. 243-259, 2021.