Os dados utilizados neste artigo podem ser encontrados aqui.

Desde sua origem, há 51 anos, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) tem sua atuação pautada pela percepção da religião como um componente fundamental da sociedade brasileira. Como resultado desse trabalho, foram produzidas, ao longo das últimas décadas, publicações que são referências para estudiosos e interessados no tema, como Cadernos do ISER, Comunicações do ISER e a revista Religião & Sociedade, além de pesquisas como a “Novo Nascimento: os evangélicos em casa, na igreja e na política” e “Religião e Política”. 

Nos últimos anos, o ISER tem acompanhado o aumento da incidência de grupos religiosos no cenário nacional, sobretudo na política. Ao mesmo tempo, tem observado também uma certa homogeneização dos sentidos da palavra religião, muitas vezes mobilizada com uma conotação negativa. 

É muito comum, por exemplo, a associação direta entre religião, política e evangélicos, como se estes fossem o único segmento religioso a ocupar espaços institucionais, e, ainda, como se todos os evangélicos apoiassem pautas antidemocráticas. Não se pode negar, é claro, a influência de determinados grupos religiosos na política nacional, principalmente de grupos conservadores, muitos deles evangélicos. No entanto, essa influência apresenta camadas de complexidade e disputas que precisam ser consideradas quando são divulgados dados e análises sobre religião encontrados nas pesquisas do ISER.

A plataforma Religião e Poder foi concebida para se somar a esses esforços e tem como principal objetivo contribuir para um debate público mais qualificado sobre religião e poder institucional. Praticar uma religião não faz com que agentes políticos sejam religiosamente orientados e, por isso, os textos, análises e pesquisas aqui publicados partem de três premissas fundamentais. São elas: 1) agentes políticos que professam alguma religião vivem sua religiosidade de diferentes formas; 2) agentes políticos com algum pertencimento religioso nem sempre definem sua atuação pública a partir de princípios e moralidades religiosas; e 3) quando agentes políticos orientam sua atuação pública por princípios e moralidades religiosas, é necessário compreender como isso ocorre e em relação a quais atores. 

Não se trata, porém, de minimizar a influência da religião ou negar as relações de poder que atravessam essas relações, mas de um compromisso histórico do ISER em promover esse debate de forma coerente e responsável. É importante considerar que associar exclusivamente ao pertencimento religioso a atuação desses agentes no espaço público pode levar a conclusões equivocadas, e, mais importante, apagar a atuação de grupos religiosos comprometidos com o campo democrático. Por isso, os textos aqui publicados referem-se a “agentes políticos com identidade religiosa” ao invés de “agentes políticos religiosos”, em “Frentes Parlamentares com identidade religiosa” e não “Frentes Parlamentares Religiosas”. 

E por que falar em identidades?

Identidade é uma categoria construída por diferentes áreas de conhecimento – a antropologia, a sociologia, a psicologia social, a psicanálise, a filosofia – e possui diversas abordagens e ênfases.  Em comum, a compreensão de que a identidade pode ser individual ou coletiva e diz respeito ao sentido ou a forma que um indivíduo ou grupo social atribui sobre si, para si mesmo e para outros. É por meio da identidade que as pessoas e grupos se reconhecem, reconhecem o outro e estabelecem relação com ele. Por isso, a construção identitária está ancorada na imagem que uma pessoa ou grupo constrói de si: a forma como se percebe e quer ser percebido pelos outros.

Aqui se localiza de forma significativa o lugar das culturas, o modo de vida aprendido e compartilhado nos convívios sociais. As culturas têm influência direta sobre a construção das identidades, pois formam o contexto comum entre os indivíduos de um mesmo grupo e são parte fundamental da comunicação, da cooperação e dos conflitos entre eles. 

É importante demarcar que as identidades humanas estão sempre em construção, são inacabadas, pois constituídas na relação entre as pessoas e entre grupos, a partir das similaridades e diferenças. Por isso, identidade tem relação com a noção de alteridade. Para um ser humano existir, é preciso que exista em relação a um outro, e, neste relacionamento que dá sentido à vida, a pessoa ou grupo assimila certos elementos e descarta outros.

A identidade ganha um caráter social por conta das características ou qualificações de um indivíduo ou grupo adquiridas no relacionamento com os outros. É nesta forma de identidade que as pessoas ou grupos se posicionam ou são posicionados em relação a outros indivíduos ou grupos que tenham ou não as mesmas características ou qualificações. Nesta noção estão as profissões, os cargos eletivos, as filiações a grupos específicos, sob a dimensão do pertencimento. Daí ser possível observar identidades políticas, profissionais, religiosas, étnicas, de raça, de gênero entre outras, que resultam do sentido de pertença das pessoas a um grupo político, profissional, religioso ou outro. A identidade, portanto, também se constitui da tomada de consciência de se pertencer a um grupo ou grupos e de não se pertencer a outro/s.

Neste ponto, é importante observar que Stuart Hall, em seus clássicos estudos, demonstrou como o processo de descentramento dos sujeitos na contemporaneidade, isto é, o rompimento da ideia de que existe uma identidade fixa, tem contribuído para a formação de novas e múltiplas identidades. Se no passado, por exemplo, uma mulher nascia para se casar e ser mãe, uma única e definida identidade, na contemporaneidade ela assume várias identificações: pode ser, por exemplo, mulher, negra, mãe, solteira, bailarina, espírita, participante de um grupo de debates sobre os textos de Mia Couto.  As identidades já não são mais essenciais determinantes do ser humano, são variáveis, mutantes e podem ser acionadas de acordo com as diferentes situações vividas pelas pessoas em seu cotidiano. 

Identidade religiosa e sua mobilização na política

Com base nestas noções, é possível definir a identidade religiosa como a dimensão social de uma identidade, individual ou coletiva, pela qual uma pessoa ou grupo se autocompreende e se autodefine levando em conta elementos referentes à sua adesão a uma religião ou a espiritualidades. Isto quer dizer que a pessoa ou grupo constrói uma imagem de si e apresenta a si próprio e aos outros com características que incluem aspectos e qualificações próprias de uma religião ou espiritualidade.

Esta concepção tem orientado o ISER em seus estudos e pesquisas sobre a interface da religião com a política institucional no Brasil. Nesse sentido, por meio de diferentes projetos, o ISER tem buscado compreender e monitorar a atuação de agentes políticos com identidade religiosa tanto em processos eleitorais quanto na ocupação de cargos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Um aspecto reconhecido nestas pesquisas é que o mesmo descentramento que afeta os sujeitos e forma novas identidades sociais inclui também as religiões. Certas tradições religiosas, ancoradas na noção de religião herdada por conta de laços culturais, nacionais (de Estados confessionais) ou familiares, bem como a noção clássica de conversão religiosa, são cada vez mais ressignificadas, adaptadas ao contexto fluido das rupturas e fragmentações vividas pelos sujeitos e geram as múltiplas identidades.   

A contemporaneidade abre espaço para que as experiências religiosas se dêem de muitas formas, para além das organizações e instituições, sem necessidade de uma vinculação formal. Nesse sentido, torna-se cada vez mais difícil dividir ou classificar pessoas e grupos entre fiéis e não fiéis desta ou daquela religião. Escolhas religiosas e crenças são também elementos importantes na busca dos sujeitos por autonomia e lugar no mundo marcado pela pluralidade.

O fenômeno religioso na contemporaneidade é plural e é marcado por constantes transformações. Isso ocorre devido às afirmações, tensões e trocas em torno de ideias, símbolos, doutrinas e valores relacionados às diferentes expressões religiosas. Este cenário torna possível, também, a apropriação de diferentes formas de vivência e experimentação das religiões e religiosidades.

Estas diferentes formas de viver e experimentar a religião são identificadas também no contexto da política por candidatos/as em processos eleitorais para os Poderes Executivo e Legislativo, por políticos eleitos e também na atuação de agentes do Judiciário. Porque consideramos as diferentes formas de se viver a religião e as religiosidades, optamos por falar sobre a identidade religiosa desses atores e não definir seus posicionamentos, a priori, por conta da religião que professam. Ao mesmo tempo, entendemos também que a religião é um importante fator que orienta posicionamentos e ações destes mesmos atores, uns mais que outros, e isso também é levado em conta nas pesquisas realizadas. Diante do desafio de compreender a influência da religião na atuação pública destes agentes políticos, o ISER vem aprimorando suas metodologias de pesquisa.

Na pesquisa que monitora  o Congresso Nacional, por exemplo, foram inicialmente consideradas três Frentes Parlamentares com identidade religiosa. Se a Frente Parlamentar Católica e a Frente Parlamentar Evangélica, de fato, se articularam a partir de elementos religiosos comuns, todos bem definidos em suas atas constitutivas, o mesmo não se pode dizer da Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FPMA). Esta se compromete, de maneira mais geral, em defender direitos relacionados à população e à cultura negras, o que inclui também a religião, mas não apenas. Ao contrário das duas primeiras, o elemento religioso não aparece como mobilizador central da FPMA. Além disso, nenhum dos signatários da FPMA se autodeclara praticante de uma religião de matriz africana ao mesmo tempo em que nem todos os signatários das frentes católica ou evangélica, são, necessariamente católicos ou evangélicos. São vários os casos, como demonstrado  na pesquisa, em que deputados são signatários de todas essas três frentes de forma concomitante. Há, ainda, outros, que, embora não assinem quaisquer destas frentes, têm identidade religiosa declarada e se articulam, de alguma forma, com as pautas priorizadas por elas. 

Já no caso da pesquisa sobre “Candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”, cujos resultados serão divulgados em breve, foi necessário aprimorar ainda mais essa metodologia. Para além do nome de urna e vinculação religiosa dos candidatos, buscou-se classificar, também, os diferentes graus de relação dos candidatos com sua religiosidade e a forma como a vinculação religiosa foi mobilizada durante a campanha eleitoral. Trata-se de uma tentativa de apreender algumas nuances e gradações que ajudam a pensar o lugar das religiões e religiosidades para cada candidatura e os impactos disso para a eleição ou não de cada candidato.

Isso não significa, entretanto, que  a filiação religiosa dos agentes políticos pesquisados é aqui descartada, mas, sim, que o pertencimento religioso é uma importante variável considerada entre outras. 

Pertencimento religioso dos Parlamentares da 56ª Legislatura Federal (2019-2022)

Nesta plataforma, o ISER apresenta informações sobre os parlamentares da 56ª Legislatura Federal (2019-2022), cujo banco de dados inclui as identidades religiosas de cada um deles. Levantamentos semelhantes a este – relacionados ao pertencimento religioso de deputados e senadores – também foram realizados por diferentes veículos de comunicação, que, inclusive, têm sido fontes importantes para a construção do nosso banco de dados. Trata-se dos levantamentos realizados por Congresso em Foco e Portal DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar). Outro material amplamente mobilizado em nossa investigação referente à identidade religiosa de deputados e senadores, é a pesquisa feita pelo Metrópoles, que, em 2020, produziu a série “Poder e Fé” com reportagens sobre religião e política. A base de dados construída pelo Metrópoles e subsidiada com informações fornecidas por mais de 500 parlamentares foi cedida pelo Metrópoles para o ISER. Além disso, coletamos informações  nas mídias sociais dos parlamentares (Facebook, Instagram e Twitter) e consultamos o banco de dados produzido pelo ISER em pesquisa das Eleições de 2018.

Esses dados sobre pertencimento religioso dos parlamentares do Congresso Nacional, disponibilizado aqui, foi elaborado a partir das referidas fontes e pode ser utilizado por pessoas interessadas no tema. 

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Colaboradora do ISER.

Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.

Referências

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.