Um Cristo de muitos

Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Uma versão deste texto foi publicada no Nexo Políticas Públicas, em 30 set 2025.
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Emerson Giumbelli

Por Emerson Giumbelli

  • 02 out 2025
  • 8 min de leitura
Um Cristo de muitos
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Como apontam notícias recentes, a administração do espaço onde está instalado o monumento ao Cristo Redentor está sob disputa. Entre os atores implicados estão o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Mitra Arquidiocesana do Rio de Janeiro e os comerciantes que mantêm estabelecimentos no alto do Corcovado. A disputa no presente envolve narrativas sobre o passado, em contextos bastante distintos. Retornemos então à história do Cristo para ver como ela sempre foi feita por muitas mãos e até hoje coloca em jogo uma definição sobre nosso país.

Mais do que uma estátua

1931, Rio de Janeiro, então capital federal: no dia da inauguração do monumento ao Cristo Redentor, diante do presidente da República e de outras autoridades, um dos bispos presentes apelou: “Senhor! Salvai o Brasil!” Durante a consagração da imagem, uma frase se destacava, conclamando que “Ser brasileiro seja crer em Jesus Cristo!”. Tais fragmentos dão uma noção dos ideais que cercaram a apresentação da colossal estátua no cume do Corcovado, pretendendo-se signo da essência católica de uma nação, demonstrada pela história brasileira e pelas estatísticas sobre a religião da população.

Em 1921, quando um grupo de católicos se organizou para erigir um monumento ao Cristo Redentor, o plano era que ele ficasse pronto no ano seguinte. Novamente, os motivos eram políticos: marcar presença nas comemorações do centenário da independência nacional. Afinal, em 1922, apenas uma pedra fundamental foi lançada, em cerimônia para a qual um hino foi elaborado. Ele começava assim: “Brasileiros proclamemos que Jesus é o nosso Rei!”. 

Um dos fatores que fizeram o projeto atrasar foi o parecer do Consultor-Geral da República, que se manifestou ainda em 1921. Diante do pedido da instalação de uma estátua católica no Corcovado, Rodrigo Octavio argumentou: “Considerado o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável. O Estado é leigo.” Relembrando o caso que envolveu a presença de um crucifixo na parede de um tribunal, o parecer ponderava: “mesmo quando o culto seja o da grande maioria da população, [há fatos que] ofendem e oprimem a consciência da minoria, e em matéria de consciência não pode prevalecer o direito da maioria, que é a força do número, porque as questões de consciência são questões essencialmente individuais”.

Apesar disso, amparado em um abaixo-assinado de milhares de católicos e em outras opiniões jurídicas, a proposta do monumento foi adiante, vencendo ainda a oposição de lideranças evangélicas, que ao princípio da laicidade acrescentavam a acusação de idolatria. A hierarquia católica encampou o projeto, com o arcebispo do Rio de Janeiro Sebastião Leme à sua frente. Campanhas de arrecadação levantaram a maior parte dos recursos, embora cerca de 10% dos custos tenham sido cobertos com dinheiro público.

Outro motivo para a conclusão do monumento, quase dez anos depois da data inicialmente planejada, foram as mudanças no projeto. Heitor da Silva Costa ganhara o concurso, realizado em 1921, com um desenho que apresentava um Cristo hiper-realista acompanhado por uma enorme cruz. Foi na França que o projeto de Costa se redefiniu, com a intervenção do escultor Paul Landowski. Assumiu ares mais modernos, o metal substituído pelo concreto e a cruz confundida com o corpo, que adquiriu feições simplificadas e linhas sóbrias. As mudanças contribuíram para um dos propósitos do que era então a maior imagem de Cristo já feita em todo planeta: uma imagem discernível mesmo à enorme distância, aproveitando sua localização privilegiada.

Símbolo da cidade

A despeito de suas enormes pretensões e proporções, constata-se que o Cristo Redentor não deixou de se inserir em uma paisagem já estabelecida. O alto do Corcovado era visitado desde o século XIX e tornou-se um ponto turístico com a inauguração da estrada de ferro em 1884, mesma época em que se desenvolviam as ações de reflorestamento que produziram as características que a região guarda até hoje.

Em 1961, o governo federal criou o atual Parque Nacional da Tijuca, um dos maiores parques urbanos do mundo, que abriga mais de mil espécies vegetais e centenas de espécies animais. Ingressos para a área do Cristo Redentor começaram a ser cobrados na década de 1970. Em 1989, a administração do Parque foi assumida pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e em 2007 pelo ICMBio. Ambas instituições são vinculadas ao Ministério do Meio Ambiente, que conta com recursos dos ingressos para o cume do Corcovado para manter outras unidades de conservação existentes no Brasil. 

Em 1990, o monumento passou por sua segunda reforma, custeada com recursos privados. O slogan que a apresentou é revelador: “Salve o Cristo!”. Se na inauguração do monumento entregava-se ao Cristo a redenção católica do país, agora eram empresas que apelavam para a salvação restauradora da imagem e de seus arredores. Esta inversão aponta para um processo mais amplo, que transformou o Cristo Redentor em símbolo de uma cidade, alterando suas conotações religiosas iniciais.

De fato, a imagem do Redentor tornou-se um personagem carioca, habilitado a apresentar tanto as maravilhas quanto as mazelas do Rio de Janeiro. Usos publicitários ou mesmo charges mais prosaicas fizeram o Cristo literalmente falar pela cidade que o abrigava. Um momento icônico ocorreu em 1989, quando a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis projetou trazer para o desfile de Carnaval um carro alegórico com uma réplica do Cristo Redentor, em feições esfarrapadas e cercado de mendigos. A Arquidiocese do Rio de Janeiro foi à Justiça e conseguiu interditar a exibição do carro, que apareceu na avenida enrolado em um plástico preto com o escrito: “Mesmo proibido, olhai por nós!”.

De quem é o Cristo?

Do lado da Igreja Católica, uma mudança importante foi a criação do Santuário Cristo Redentor, em 2006. Ao longo de sua história, poucos eventos religiosos ocorreram junto ao monumento, mesmo existindo uma capela dentro do espaço do pedestal. Havia uma Ordem do Cristo Redentor, mas ela foi absorvida pela Mitra Arquidiocesana em 1960. Com a criação do santuário, estabeleceu-se uma estrutura que lhe permite estar mais presente no alto do Corcovado.

Na prática, isso envolve a realização de missas, batismos, casamentos e outras cerimônias junto ao monumento. Assim, a Igreja Católica pretende “retomar” o Redentor, acentuando os sentidos religiosos do lugar. Entretanto, muitos dos eventos religiosos que lá ocorrem, quando envolvem celebridades, inevitavelmente contribuem para manter a polissemia da imagem.

Na mesma direção apontam outros acontecimentos na primeira década deste século. Em 2003, uma grande reforma é concluída, equipando o lugar com elevadores e escadas rolantes. Em 2006, ocorre a exposição “Christo Redemptor”, celebrando sua brasilidade. Em 2007, o monumento é eleito como uma das “novas maravilhas do mundo” – notando-se que motivos religiosos estiveram pouco presentes nos debates. Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) efetiva o tombamento da estátua, que se acrescenta à medida que já protegia o Corcovado desde 1973. Essa dimensão patrimonial é reforçada em 2012, com a decisão da UNESCO que destacou o Rio de Janeiro como a primeira área urbana no mundo a ter reconhecido o valor universal da sua paisagem cultural.

O Santuário Cristo Redentor apresenta-se como o “primeiro santuário a céu aberto no mundo”. As reformas do monumento e no seu entorno, contudo, sempre dependeram de recursos mobilizados por outras entidades. Além disso, de acordo com recente decisão judicial, a área em que se situa o monumento e os estabelecimentos comerciais que existem no Alto do Corcovado nunca deixou de ser propriedade da União. Outras decisões judiciais ou projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional podem mudar essa situação.

Faz sentido pensar que a melhor solução jurídica para a administração do monumento é aquela que reconhece a pluralidade de dimensões e de atores que cerca o Cristo Redentor – algo que as projeções noturnas que ocorrem sobre a estátua nos últimos anos ilustram cenicamente. Segundo os dados do Censo IBGE de 2022, o Rio de Janeiro é a capital brasileira com o menor percentual de católicos: 43,6%. O conjunto das outras religiões soma quase o mesmo, aí incluídos os fiéis de religiões afro-brasileiras que adotam imagens similares à do Cristo Redentor para representar Oxalá. O Cristo, há muito tempo, é de muitos. Tomara que assim continue sendo.

Referências

Giumbelli, Emerson. Símbolos Religiosos em Controvérsias. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

Pereira, Edilson; Giumbelli, Emerson; Toniol, Rodrigo. Uma Encruzilhada Modernista: Victor Brecheret, Mário de Andrade e o Cristo Redentor. Porto Alegre: Zouk, 2023.

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