Axé-Amém – Encruzilhadas de Fé Negra no Brasil
O livro Axé-Amém – Encruzilhadas da Fé Negra no Brasil pode ser baixado em PDF gratuitamente.
Por Regina Novaes
- 04 dez 2025
- 8 min de leitura

O livro Axé-Amém – Encruzilhadas da Fé Negra no Brasil é resultado de uma ousadia. Trata-se de livro composto de textos de pessoas negras evangélicas e de terreiro que atenderam a uma convocação do ISER para participar de uma experiência “de formação” que trazia uma oferta desafiadora: “promover o diálogo, superar hostilidades e construir cumplicidades entre pertencimentos religiosos distintos”.
A primeira boa notícia é que, para tal oferta, havia uma significativa demanda: foram quase duas centenas de pessoas inscritas. Dentre essas, foram selecionados 27 participantes para os quais – segundo consta na Introdução assinada por Carolina Rocha – buscou-se oferecer “um território de confiança e intimidade” para que cada um/a pudesse “mergulhar em suas próprias memórias, dores, contradições e potências”.
A partir daí, como também está dito na mesma introdução do livro, “professoras, pastores, pais e mães de santo, enfermeiros, teólogas, trabalhadoras domésticas, ativistas, cozinheiros estiveram juntos a mediadores e mediadoras” foram “costurando os fios visíveis e invisíveis entre o pessoal e o coletivo” e, ao final, foram convidados a escrever os textos publicados no livro.
Porém, como descrever a ousadia contida no livro? Em primeiro lugar, a ousadia de lembrar que coube ao Catolicismo dominante promover múltiplas tentativas de apagamento cultural de escravizados. Por meio de proibição de rituais, perseguição a terreiros e repressão às expressões afro, nesse país de hegemonia católica, as religiões afro-brasileiras sempre foram combatidas e/ou, no máximo, toleradas (desde que em posição subordinada).
Em segundo lugar, também é importante lembrar que, após um largo período histórico de reduzido crescimento das denominações protestantes, o crescimento dos evangélicos no seio das populações negras e pobres, sobretudo em sua vertente pentecostal, acrescentou novos elementos à desqualificação das religiões afro. Nesse cenário, principalmente a partir dos anos de 1970, rituais de exorcismo e purificação cristã se multiplicaram buscando combater seres provenientes dos cultos afro-brasileiros identificados como malignos ou demoníacos. O que também resultou na ampliação de preconceitos, ataques aos terreiros introduzindo a noção de “guerra espiritual” nesse país que queria ser visto como pacífico e tolerante.
Entretanto, isso ainda não é tudo. Em terceiro lugar, a publicação desse livro pode ser vista como uma ousadia também porque, nas últimas décadas, o aumento de ativismo de certas lideranças evangélicas conservadoras e negacionistas teve duas importantes repercussões. Por um lado, a visibilidade midiática dos “coronéis/empresários da fé” que passaram a projetar o Brasil como “nação cristã” fez intensificar ainda mais os preconceitos em relação às religiões afro-brasileiras na sociedade. Por outro lado, em contrapartida, também fomentou uma forte generalização negativa existente em relação à população evangélica geralmente vista como “ovelhas” manipuladas por seus pastores como se não houvesse diversidade de vivências religiosas e políticas em seu interior.
Estas três camadas de lembranças – históricas e conjunturais – dão uma ideia da ousadia presente na proposta de convivência e de diálogo entre pessoas evangélicas e de terreiro. Ou seja, a convocação de Carolina Rocha, Ronilso Pacheco, Fabíola Oliveira e L. Obalerá foi ousada porque apostou na possibilidade de desnaturalizar polarizações, desfazer distanciamentos, vivenciar incômodos, aproximar sentidos.
Buscou-se “transformar o familiar em exótico e o exótico em familiar”, como ensinam os manuais de antropologia. A frase soa bem. Porém, a tarefa não é simples. Ao falar de religião estamos falando de rituais e símbolos que têm profundidade cosmológica, que fornecem sentido para a vida, que envolve disputas de valores. Por isso mesmo, tratando-se de cotejar pertencimentos religiosos, todo cuidado é pouco. São tênues as linhas que impedem ou favorecem o diálogo.
Como cantarolou Ya Vanda, no último dos textos que compõem o livro: “alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho” … “Respirei fundo e cheguei ao Axé-Amém”, continua a autora. No conjunto, cada texto – a seu modo – revela expectativas, incômodos, medos e movimentos de participantes e mediadores nos quatro meses de convivência. De início, o “encontro lúdico entre duas chaves de conhecimento: a terceira cabaça de Exu e a sabedoria bíblica do discernimento”, como descreve Carolina Rocha na introdução do livro, era apenas uma aposta, não estava dado.
Porém, ao ler os textos que compõem o livro, pode-se entender melhor o que realmente viabilizou o encontro dos “corpos negros” de professores, lideranças de terreiro, pastoras, pesquisadoras e mediadores. Foi a “ferida aberta pelo racismo” que fez possível a aproximação, o compartilhamento, o diálogo, o exercício da alteridade. Na construção da perspectiva antirracista, pessoas evangélicas se dispuseram a deixar de ver o povo de terreiro como ameaça e pessoas umbandistas e candomblecistas se dispuseram a não negar a ancestralidade africana aos negros evangélicos.
Olhados pela ótica da cidadania, pode-se dizer que os textos que compõem o livro repudiam o racismo religioso e reconhecem o direito de cada religião existir, praticar sua fé e expressar a cultura afro-brasileira. Mas, ao mesmo tempo, são múltiplas as trajetórias religiosas de quem as escreve.
Uma parte dos textos dos participantes e dos colaboradores nos traz histórias de pessoas negras que nasceram, foram socializadas e permanecem em denominações evangélicas ou nos terreiros de umbanda ou candomblé. E é desses lugares de pertencimento que se dispõem a conhecer, compreender e valorizar outras possibilidades de fé. Porém, há também quem já foi de uma tradição e hoje está em outra. Assim como há quem se defina como uma pessoa evangélica, mas não frequenta uma igreja específica. Bem como há quem se identifique como uma pessoa de axé, sem estar vinculada a nenhum terreiro. Há quem se perceba em trânsito. E há, ainda, quem se permite estar nas igrejas e nos terreiros, ao mesmo tempo ou em momentos distintos.
Importante notar que, por meio dessas histórias registradas neste livro, revelam-se características e movimentações do campo religioso brasileiro. E, nesse sentido, chama a atenção a apropriação que algumas pessoas autoras do livro fazem da expressão “dupla pertença”. O que nos faz perguntar: ainda vale diferenciar o universo católico (permeável em relação a crenças em espíritos e divindades diversas) do universo protestante (impermeável a tais crenças) em um contínuo processo de individualização e interiorização das práticas religiosas? O que diferenciaria uma “dupla pertença entre evangélicos e afros” se diferenciaria da “dupla pertença” católica?
“Ser católica e ser do terreiro” tornou-se uma maneira de anunciar o encontro sincrético entre duas tradições religiosas, seja como afirmação de uma vivência religiosa, seja como uma estratégia para contornar descriminalizações socialmente existentes. Não por acaso, em uma sociedade que se via (e ainda se vê) como branca e católica, campanhas como “Quem é de Axé, diz que é” questionaram criticamente a “dupla pertença” apostando no aumento do número de declarações de afro-brasileiros nos Censos do IBGE. Ou seja, a crítica à “dupla pertença” traz consigo uma denúncia sobre o peso do poder do Catolicismo hierárquico, oficial e dominante. Ou seja, uma composição assimétrica.
Já o uso da expressão “dupla pertença”, que está indicada em alguns dos textos do livro, pode trazer algo novo. Como nos disse uma das autoras: “Minha igreja me deu ousadia, o terreiro me devolveu a ancestralidade”. O enfrentamento do “racismo religioso” teria a capacidade de produzir uma nova possibilidade de vivenciar uma “dupla pertença” sem as históricas relações de subordinação impostas por relações de poder religioso? A força da identidade racial poderia produzir uma nova possibilidade de fazer complementares e simétricas as duas tradições religiosas? A experiência produz conhecimento novo. Vale à pena ler o livro.
Axé e Amém.
Como citar
NOVAES, Regina. "Axé-Amém – Encruzilhadas de Fé Negra no Brasil ". Religião e Poder, 04 dez. 2025. Disponível em: . Acesso em: .
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