Um Brasil mais plural: um primeiro olhar sobre os dados de Religião do Censo 2022












Por Magali Cunha, Ana Carolina Evangelista, Clemir Fernandes, Lívia Reis, Ana Julia Bastos, Regina Novaes, Agnes Alencar, Matheus Cavalcanti Pestana, Ronilso Pacheco, Luciana Petersen, Laryssa Owsiany e Carolina Rocha
- 06 jun 2025
- 13 min de leitura

Atualizado em 09 jun 2025 às 20h08
Um Brasil menos católico e mais evangélico? Uma juventude desapegada de religiões? Um quadro de afirmação das religiões de matriz africana? Outras religiosidades ganham mais espaço? Estas são algumas questões que permearam a cobertura noticiosa e centenas de postagens em mídias sociais tão logo a equipe do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tornou públicos, na manhã de 6 de junho de 2025, os dados sobre religião do Censo Brasil 2022.
A equipe de pesquisadores do ISER oferece, nos pontos elencados a seguir, um primeiro olhar sobre os dados divulgados pelo IBGE e indica, de forma preliminar, as principais tendências do quadro das religiões no Brasil na segunda década do século 21. Elas, certamente, desafiam novas pesquisas, estudos e reflexões.
Um Brasil plural do ponto de vista das religiões
Os dados do Censo 2022 mostram que o campo religioso no Brasil continua bastante dinâmico: a crescente diversificação e pluralização do quadro das religiões no país já era observada nos Censos de 2000 e de 2010 e se confirma neste.
Desde o Censo da década de 1950 já se desenhava uma tendência de mudança na hegemonia do Catolicismo no Brasil. No retrato que o Censo permite ver do país, novos atores começaram a aparecer naquela década, entre eles os evangélicos, especialmente pentecostais, mas também outras religiosidades e as pessoas que se declaram sem religião. Este quadro foi se desenhando até os anos 1980, quando estas transformações se intensificam. O Brasil segue majoritariamente cristão, mas chama muito a atenção que, nas últimas quatro décadas, tenha ocorrido uma queda de 12% do número de cristãos no Brasil – de 95,6% em 1980, a 83,6%, em 2022.
Um olhar apurado dos números divulgados agora reafirma um país religioso e mais plural:
📉Católicos são 56,7% – diminuição de -12,7 pontos percentuais (- 8,3% em relação a 2010)
📉Espíritas são 1,8% – diminuição de -0,3 pontos percentuais (-14,3% em relação a 2010)
📈Evangélicos são 26,9% – aumento de 5,2 pontos percentuais (+23,9% em relação a 2010)
📈Religiões de matriz afro (classificadas como Umbanda e Candomblé, mas há outras neste grupo) são 1,00% – aumento de + 0,7 pontos percentuais (+233% em relação a 2010)
📈Outras religiosidades são 4,00% – aumento de + 1,3 pontos percentuais (+48% em relação a 2010)
📈Sem religião são 9,3% – aumento de +1,4 pontos percentuais (+17% em relação a 2010)
Católicos: entre o declínio e a presença hegemônica
O declínio católico, mantido nos dados do Censo de 2022, havia se acentuado nas últimas quatro décadas. Porém, chama a atenção que, pela primeira vez, há uma pequena redução na tendência de queda. O Catolicismo ainda é a religião majoritária no Brasil e em todas as grandes regiões do país, com sua maior concentração no Nordeste (63,9%), seguido da Região Sul (62,4%). Entre os estados, o Piauí é o mais católico (77,4%), enquanto Roraima é o que tem menos fiéis desta confissão religiosa (37,9%). Católicos também são maioria em 4.881 dos 5.570 municípios do Brasil.
Em relação ao declínio católico é preciso considerar as mudanças sociais: ampla migração do campo para as grandes cidades desde 1950, mudanças geracionais, alterações nas formas como as pessoas vivem o religioso e praticam a sua fé, e outras dinâmicas que o país atravessou nas últimas décadas. É importante demarcar que o Brasil mudou e as relações com a religião e as dinâmicas religiosas também.
Para conter o declínio, a Igreja Católica se moveu, reagiu. Ela vem tomando medidas para frear ou desacelerar a “competição” no campo religioso, a perda de fiéis para outras religiosidades e de hegemonia. Por isso, verifica-se um Catolicismo no Brasil que busca modernizar a sua linguagem e suas formas de comunicação. Vale reconhecer que o Papa Francisco teve um papel importante, com a sua presença mais internacional, seu carisma de liderança próxima das pessoas, e a visita ao Brasil, em 2013, que foi emblemática e motivadora. Nela ocorreu a Jornada Mundial de Juventude, que marcou uma aproximação da Igreja Católica com este grupo etário. Partiu do Vaticano, ainda, a realização do Sínodo da Amazônia com ênfase em uma região que é a que mais vem perdendo fiéis para o campo evangélico.
Por outro lado, um avanço conservador na política e em outras áreas da vida pública pode ser observado entre fiéis deste grupo religioso, o que tem sido objeto de pesquisas promovidas pelo ISER.
Mesmo com o quadro de declínio, e com o crescimento evangélico que se destaca, pela tendência dos números nesta edição e nos censos anteriores, a Igreja Católica seguirá como o grupo religioso com o maior número de adeptos. Ela poderá se manter nessa condição, ainda que em declínio e que o número de evangélicos siga em ampliação. Isto porque os evangélicos hoje têm menos da metade do contingente católico. É uma diferença muito grande. A Igreja Católica mantém um protagonismo na vida social brasileira, prevalecendo no imaginário cultural, nos calendários litúrgicos e cívicos e nas principais tradições nacionais.
Evangélicos: entre crescimento, visibilidade e números previamente inflados
Os números do Censo 2022 mostram que um em cada quatro habitantes do Brasil são evangélicos. É uma consolidação de crescimento deste grupo, o que se intensificou nas últimas quatro décadas, porém, desde 2010, em ritmo menor (+ 6% em 2000, + 6.3% em 2010 e +5,2% em 2022). O salto numérico de cerca de 50%, como tinha acontecido entre os anos 1980 e 90, foi contido de acordo com os últimos três levantamentos. O ritmo de crescimento no último Censo já indicava pelo menos uma manutenção desse ritmo.
Conforme vários comentários públicos, chamou a atenção de jornalistas, de analistas e do público que se interessa pelo tema, que os números do IBGE em relação a evangélicos tenham ficado abaixo de 30%. Houve abordagens prévias que indicavam até mesmo que este grupo religioso ultrapassaria o número de católicos. De fato, é possível reconhecer uma expectativa exagerada de crescimento exponencial do segmento evangélico, impulsionada pela “sensação” de domínio deste segmento religioso no espaço público. Entretanto, os dados não refletiram essa expectativa. Embora haja um crescimento dos evangélicos, ele é um pouco mais moderado em relação aos últimos censos.
É possível avaliar que a forte e crescente presença na política partidária, na cultura, na sociabilidade e em pautas sociais com muita visibilidade midiática, chamou a atenção para este grupo religioso na cena pública. Isto se deu por conta da hegemonia católica naturalizada na cena nacional e no imaginário de uma “religião natural do Brasil”. Por isso houve um interesse público, midiático e político maior e concentrado no campo evangélico desde o último Censo de 2010.
Os evangélicos, de fato, cresceram em número (são 26,9% sobre os 21,7% do Censo anterior), estão presentes na política e estão amplamente mais presentes em expressões de cultura – nas mídias sociais, na música, no mercado, nas novelas, na linguagem popular. Este é um dado muito relevante, pois quanto mais crescem, mais abrasileirados se tornam. Ou, provavelmente, tenham crescido mais, ao se tornarem mais inculturados à realidade brasileira.
Sobre a desaceleração do crescimento, é possível observar uma conjunção de fatores. Os evangélicos desde os anos 1990 são menos monolíticos. Variam também as formas de viver a religiosidade evangélica. Hoje temos igrejas autônomas, células independentes, ministérios, desigrejados, influenciadores religiosos, grupos de oração no whatsapp. Para além da fragmentação, há um sem número de formas de viver uma religiosidade evangélica sem necessariamente estar vinculado a uma igreja denominacional.
Ao mesmo tempo, embora o número de templos religiosos tenha aumentado, e este é um dado do próprio Censo, isso não se traduziu em número de fiéis. Uma hipótese é a de que a ampliação dos templos pode não significar uma multiplicação do número de fiéis, apenas uma fragmentação, com a abertura de igrejas dissidentes. Além disso, também é importante sublinhar a questão geracional. Um jovem com mãe evangélica pode se declarar sem religião por não estar frequentando sua igreja. Embora os evangélicos sejam mais jovens do que os católicos, há uma grande parcela de jovens sem religião, como será destacado adiante.
As pesquisas qualitativas e a observação empírica mostram algo que precisa ser melhor acompanhado e confirmado: o desgaste de um tipo de cristianismo entre os próprios evangélicos, com ênfase na prosperidade financeira. Há também uma vinculação menos sólida de fiéis, diferente da cultura dos movimentos de evangelismo do passado que chamavam mais a uma conversão comprometida com as igrejas. E é preciso considerar a emergência de uma radicalização política, desde o processo eleitoral de 2018, com a adesão de evangélicos à consolidada direita cristã, que agrega pessoas mas ao mesmo tempo afasta membros.
Os sem religião: o terceiro grupo no retrato das religiões no Brasil
O número das pessoas que se autodeclaram “sem religião” aparece em um crescente já há algumas edições do Censo do IBGE e se torna ainda maior no Censo 2022. A principal mudança ocorreu entre os anos 80 e os 2000, quando os “sem religião” passaram de 1,5% para 7%. Hoje são 9,3%.
Os “sem religião” representam um lugar importante do movimento de diversificação do quadro religioso brasileiro. Segundo o IBGE, neste grupo está quem afirma não ter uma religião, ateus e agnósticos. Porém, esta identidade não significa que quem assim se autodeclara não frequente uma comunidade religiosa ou não tenha fé.
Os declarados “sem religião” representam uma fatia maior do que todas as religiosidades não-cristãs (9,3% frente a 5,0%). Neste grupo se destacam os jovens (faixa entre 15 e 29 anos): eles são 40,3%da população sem religião. Isto revela uma progressiva diminuição da transferência geracional de filiação religiosa e uma ampliação da possibilidade de busca e de escolha pessoal da juventude.
Outros fatores como a perda da hegemonia do catolicismo e o crescimento das denominações evangélicas e das religiões de matriz africana constatadas nesse Censo, podem confirmar a vivência de boa parte da juventude em famílias multirreligiosas, o que legitima a desvinculação institucional dos jovens que se declaram “sem religião” (seja para fazerem suas sínteses pessoais, seja para encontrarem, posteriormente, motivação para novos vínculos institucionais)
O grande crescimento proporcional das religiões afro-brasileiras
O alcance do um ponto percentual, pela primeira vez, pelas tradições de matriz africana no Censo 2022 (um aumento de 233% em relação ao Censo 2010), revela o resultado do movimento de valorização deste grupo (que no Censo aparece como Umbanda e Candomblé). Isto se dá a partir da ampliação do debate racial no Brasil. As tradições de matriz africana são tradições negras. Estes números, portanto, refletem um amplo movimento de afirmação dessa identidade racial, de valorização de uma ancestralidade negra, por um lado, e de mobilização política, cultural e comunitária de lideranças religiosas e coletivos de terreiro, por outro.
Importa considerar o lugar das políticas públicas de inclusão racial, como as cotas, que dão mais acesso a pessoas negras às universidades, e são um espaço de formação crítica; a obrigatoriedade do Ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar. Tudo isso ampliou significativamente o debate racial na sociedade. Como resultado, muitas vezes ocorre um processo de ressignificação da fé, do pertencimento religioso e da identidade étnico-racial.
Nesta discussão é preciso levar em conta o racismo religioso, que desde o período colonial é um pilar na sociedade brasileira. Nesse sentido, um maior debate racial ajuda não só a dissipar preconceitos, como também leva as pessoas a conhecerem melhor o que são essas tradições de matriz africana.
Paralelamente, há também o trabalho histórico dos próprios religiosos de matriz africana em suas ações de resistência, de criação de memória e de patrimonialização, que ganham nova visibilidade em tempos de redes sociais. Tudo isso agrega novos seguidores e colabora para que pessoas que antes se declaravam católicas e espíritas hoje se autodeclaram afrorreligiosas.
Apesar disso, é possível que haja uma subnotificação considerável de adeptos das religiões de matriz africana nos dados do Censo. Ela está diretamente relacionada ao racismo religioso, que continua estruturando a sociedade brasileira e segue em crescimento.
Também é preciso considerar a fluidez e a porosidade das práticas religiosas no Brasil. As devoções não se encaixam, muitas vezes, nas categorias rígidas dos formulários censitários. A dupla pertença religiosa, as transições e as confluências são comuns, mas, nesse contexto, as religiões de matriz africana acabam sendo sub-representadas — tanto pela rigidez metodológica quanto pelas estruturas de preconceito que ainda as cercam.
Ainda não é possível concluir…
Como indicado na introdução, este é um primeiro olhar sobre os números lançados. Eles, certamente, instigam novas reflexões. Ressalta-se neste contexto que a pergunta do IBGE é aberta “Qual é a sua religião ou culto?” e observa-se, pelos números, que a população se sente mais livre para declarar o que é de fato a sua relação com religião.
É uma atmosfera social, política e cultural diversa de períodos anteriores em que havia constrangimentos e limitações à declaração pública de vinculações que fossem diferentes ou contrapostas ao Catolicismo hegemônico. É nesse sentido que a pluralidade aflora.
Como citar
CUNHA, Magali et al.. "Um Brasil mais plural: um primeiro olhar sobre os dados de Religião do Censo 2022". Disponível em: . Acesso em: .