O Monitoramento de Projetos de Lei na Câmara Federal, pelo ISER, neste outubro de 2023, levantou  20 novas proposições parlamentares. Nos destaques, apresentados a seguir, a equipe se deteve em 149, projetos que têm o potencial de originar conflitos e disputas, além de influenciar a maneira como são percebidos valores e questões relacionadas a comunidades ou entidades religiosas. Outras análises resultantes do monitoramento da Câmara dos Deputados em 2023 estão disponíveis neste espaço

Conflito Israel vs. Palestina

Como este monitoramento tem identificado, temas conjunturais/sazonais têm um impacto destacado na elaboração de propostas por parte dos parlamentares. Em outubro, isto ficou, mais uma vez, evidente, por conta do conflito Israel-Palestina. O caso foi pauta central durante o mês de outubro de 2023. Manifestações pró-Palestina e pró-Israel tomaram conta das ruas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Um Projeto de Lei apresentado na Câmara dos Deputados sobre o tema foi identificado como destaque no monitoramento:

O PL 4894/2023  cuja autoria coletiva pode ser consultada aqui, dispõe sobre sanções políticas e econômicas relacionadas aos partidos políticos de identidade islâmica Hamas, da Palestina, e Hezbollah, do Líbano, e propõe  a classificação deles  como grupos terroristas. Além disso, considera crime “a manifestação de apoio ao Hamas ou ao Hezbollah, por meio de atos públicos, divulgação de materiais, publicações ou qualquer outro meio de comunicação”.

Na justificativa do PL está registrado  que o “dia 7 de outubro de 2023 marcará para sempre a consciência internacional como uma data de profunda tristeza e indignação”, e que “estas atrocidades reacendem memórias dolorosas de genocídios anteriores e nos lembram da grave ameaça que grupos terroristas representam, particularmente contra o povo judeu e israelense.” 

O delito descrito neste PL “equipara-se aos crimes de promoção do nazismo, conforme estabelecido na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e ao crime de promoção do terrorismo, conforme estabelecido na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016.” 

Aborto e a retomada da ADPF 442

A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação voltou a ser debatida no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). O voto favorável foi uma das últimas ações da ministra Rosa Weber antes de deixar a presidência da Corte e se aposentar em outubro de 2023, após completar 75 anos. Depois disso, a ação pode ficar tanto sob a responsabilidade do ministro ou ministra que substituir a atual presidente da Corte, como na alçada do novo presidente do órgão, ministro Luís Roberto Barroso. Ele pediu destaque para a ação, o que leva o debate ao plenário presencial. Cabe agora a Barroso definir uma data para a continuidade do julgamento, como mostra o material de Gênero e Número disponível aqui. A criminalização do aborto é prevista em dois artigos do Código Penal e projetos de lei que pedem sua alteração ganharam destaque em outubro de 2023, são eles:

O PL 4979/2023, de autoria do deputado cristão Delegado Palumbo (MDB/SP), visa aumentar a pena para o crime de aborto, em suas diversas modalidades, bem como incluir o tipo penal no rol dos crimes hediondos.Já o PL 4891/2023, de autoria do deputado cristão Coronel Chrisóstomo (PL/RO), também propõe aumento de penas de reclusão em “consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo”.

O deputado de pertencimento religioso não identificado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL/SP) é autor do PL 5194/2023 , que visa reconhecer o direito do médico à objeção de consciência para a não realização de aborto.  Em sua justificativa é afirmado que “ o presente projeto tem o objetivo de deixar claro o direito que todos os médicos têm de se recusar a praticar um aborto, caso sua consciência assim indique, por entender que tal prática é errada”. 

O PL 5013/2023, de autoria da deputada cristã Priscila Costa (PL/CE), dispõe sobre o banimento de contas e domínios que promovam o aborto por meio de sites, aplicativos e plataformas on line. O “espaço virtual” é um dos temas de maior destaque no monitoramento de outubro de 2023, como indicado no tópico a seguir.

Sobre “o cenário tecnológico que vivemos atualmente”

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Pirâmides Financeiras, da Câmara Federal, “destinada a investigar indícios de operações fraudulentas sofisticadas na gestão de diversas empresas de serviços financeiros que prometem gerar patrimônio por meio de gestão de criptomoedas”  é autora do  PL 4931/2023. Ele atualiza tanto o Código Penal quanto a Lei 1.521/1951 (Crimes contra a Economia Popular) e a Lei 7.492/1986 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional) para inserir a tipificação relativa aos esquemas de pirâmide, também chamados de Esquema Ponzi. 

Tais práticas caracterizam-se pela promessa de retornos bastante elevados com riscos aparentemente baixos, atraindo investidores através de uma proposta de lucro rápido. Entretanto, a sustentabilidade desse esquema é ilusória, pois os retornos prometidos aos investidores não são gerados por meio de atividades de investimento legítimas, mas sim pelo aporte de capital proveniente de novos participantes. Ou seja, o lucro não é gerado através da circulação de um produto ou serviço, mas da compra dos mesmos por parte dos novos participantes. Esquemas de Ponzi costumam se mascarar como marketing multinível, dentre outras variações. 

O PL 4924/2023, de autoria da deputada cristã Dayany Bittencourt (União/CE), altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para criar o crime de violação virtual de domicílio. Em sua justificativa o PL afirma que “a era digital trouxe inúmeras vantagens e facilidades para a sociedade, mas também novos desafios dinâmicos em termos de privacidade e segurança”. O texto indica que “a criação do crime de violação virtual de domicílio é uma evolução natural para proteger nossas vidas íntimas em um cenário tecnológico que vivemos atualmente.” 

Como mencionado na justificativa do PL anterior, “o cenário tecnológico que vivemos atualmente” é tema de vários outros projetos, dentre eles:

  • O PL 5241/2023, de autoria do deputado de pertencimento religioso não identificado Rafael Brito (MDB/AL), que tipifica o crime de divulgação de deep fake durante período de campanha eleitoral. O projeto define deep fake como “todo e qualquer material audiovisual que, de forma deliberada e artificial, altere a fala, a imagem, ou o som de um indivíduo, por meio de técnicas de inteligência artificial ou manipulação de mídia, de forma a criar uma representação falsa e não autorizada.”
  • A deputada cristã Dayany Bittencourt (União/CE) apresentou o PL 5241/2023 que dispõe sobre o estupro na modalidade virtual e inserção do crime de “satisfação de lascívia por meio virtual” no rol de crimes hediondos. O projeto apresenta dados de denúncias de pornografia infantil e afirma que seu objetivo é “ser mais um instrumento de combate aos crimes virtuais, principalmente sexuais, contra crianças e adolescentes”
  • O deputado católico, Neto Carletto (PP/BA) é autor do PL 5142/2023  que altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 – Marco Civil da Internet, para dispor sobre a proibição da divulgação de conteúdos que fazem apologia ao uso de drogas ilícitas em redes sociais digitais. A justificativa é que “as redes sociais tornaram-se um aspecto inevitável do cotidiano contemporâneo” e que “o espaço virtual se tornou um veículo para práticas e conteúdos nocivos que afetam, em especial, as crianças e os adolescentes, um segmento vulnerável da população”.
  • O PL 4888/2023, de autoria da deputada católica Gisela Simona (União/MT), visa tipificar como crime contra a saúde pública a comercialização, a importação e a propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar. O projeto afirma que os DEFs que “podem ser chamados também de cigarros eletrônicos, vapers, e-cigaretes, e-ciggy, ecigar, pods” são apresentados como modernos, tecnológicos e se tornaram uma epidemia a ser combatida. A parlamentar propõe que “o poder de polícia estatal, com toda sua força, deve ser empregado para proteger a saúde pública do risco dos cigarros eletrônicos.”

Pautas morais e ideológicas em evidência nos debates parlamentares

Na diversidade de PLs com pautas variadas, o monitoramento do ISER observou propostas em evidência que refletem ênfases que vêm sendo desenvolvidas nos debates parlamentares neste primeiro ano da 57ª Legislatura, que envolvem temáticas como nacionalismo, “proteção a adolescentes”, cura gay,  justiça e segurança pública.

  • Nacionalismo: o PL 4984/2023,  de autoria do deputado católico Luiz Carlos Hauly (Podemos/PR), altera a Lei nº 5.700, de 1 de setembro de 1971, que “dispõe sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais”. O projeto propõe que “nas escolas, públicas e particulares, fica obrigatória a presença permanente de uma Bandeira Nacional em cada sala de aula e, diariamente, antes do início da primeira aula, os alunos prestarão o seguinte juramento: ‘Perante esta Bandeira, sob a proteção de Deus, prometo defender a Nação Brasileira, a democracia, a liberdade, a justiça, a paz, a vida humana e animal, sob todas as suas formas, o território brasileiro, a terra os rios, mar, as florestas, o ar que respiramos e os recursos naturais’ 
  • Assistência religiosa a adolescentes infratores: O deputado evangélico Marcos Soares (União/ RJ) é autor do PL 4867/2023,  que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, para regular a prestação de assistência religiosa nas unidades de entidades que desenvolvem programas de internação de adolescentes, conciliando essa assistência com as medidas de segurança desses estabelecimentos. 
  • Cura gay como crime de tortura: o PL 5034/2023, de autoria da deputada de identidade religiosa não identificada Erika Hilton (PSOL/SP), busca equiparar as ações e métodos que objetivam a conversão da orientação sexual e da identidade de gênero ao crime de tortura. O projeto menciona a “conduta criminosa de tratamento de cura gay”,  e mostra o envolvimento de organizações e autoridades religiosas no assunto.
  • Restrições ao auxílio-reclusão: o PL 5051/2023, de autoria do deputado cristão Fred Linhares (Republicanos – DF), dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social para permitir a suspensão da concessão de auxílio-reclusão em casos de cometimento de falta grave ou crime pelo segurado preso durante o cumprimento de pena. O projeto apresenta o auxílio-reclusão como “um benefício pago aos dependentes – pais dependentes, cônjuge ou companheiro, filhos menores de 21 anos ou de qualquer idade se inválidos ou com deficiência – de um segurado da Previdência Social que tenha sido preso, no valor máximo de um salário-mínimo, o qual deixa de ser pago assim que o segurado cumprir a pena.”  Na justificativa do PL é mencionado que os defensores da concessão do benefício afirmam que “embora o preso fique encarcerado por um bom tempo por conta do seu crime, sua família deverá ser assistida pelo Estado que o condenou, através do auxílio-reclusão”. O projeto é uma contraposição a este entendimento quando afirma que  “o auxílio-reclusão deveria ser concedido tão somente ao condenado que cumprisse com sua obrigação legal de forma ordeira e correta e não ser um benefício atribuído ao simples fato do segurado estar privado de sua liberdade esteja ele cumprimento a pena da forma esperada ou não.

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.