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As eleições de 2022 terão a cara do novo desenho partidário no Congresso? A rearrumação partidária, uma dessas vergonhas brasileiras – para os partidos – será capaz de pautar as tendências do eleitorado? Como isto se dará nas disputas para o Executivo e o Legislativo? E nos níveis Federal e Estadual? E como as tendências religiosas na política brasileira se reposicionaram nesse processo? 

A grande maioria das mudanças teve lugar entre os partidos governistas. Tratou-se de uma rearrumação do cenário ideológico vigente em 2018, que demonstra o capital político que o presidente da República ainda tem (mesmo que não maior que aquele que tinha), mas também um distanciamento relativo de forças que o apoiaram solidamente, então, mas que já não mais convergem com as mesmas convicções ou apoiam sem cobrar seu preço (caro!). 

Isso também indica que o campo conservador, migrando um pouco mais ao centro do que em 2018, busca firmar-se como força política estável e falando em seu próprio nome, inclusive atraindo deputados/as de partidos da centro-esquerda (particularmente o PDT e o PSB) que já votavam em muitas propostas do governo. 

O Centrão é o verdadeiro partido da ordem no Brasil. É uma “federação partidária” que tem como lema garantir-se em qualquer governo ao mesmo tempo em que flutua ao sabor de negociações e de circunstâncias. Não importa que partidos se situem nesse ponto gravitacional da política brasileira: pagarão o preço do fisiologismo. Podem mudar de nome, se reagruparem, “ressuscitarem” (como o PL), mas jamais existirão como programas próprios. 

Sua reafirmação, após o impacto dos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, indica que a identidade de direita deve voltar a ser brandida apenas pelos linha-dura do bolsonarismo, mas não será mais uma bandeira partidária. Com o Centrão não tem discurso oficial “de direita”,  o “centro político” é a reação à brasileira. Sem ele nada se faz, com ele nada se muda.

Por outro lado, é possível identificar uma recomposição partidária do Centrão com três grandes vertentes: o PL como cerne do governismo; o Republicanos como indicação da consolidação da IURD como ator político, desbancando a Assembleia de Deus, cujo PSC minguou aos níveis de 2010; e o PSD como campo mais “alternativo” e “laico”, com influxo de quatro deputados de partidos da centro-esquerda (PDT, PV e Cidadania). 

Onde estão os congressistas religiosos (devíamos dizer “cristãos”?) nesse novo desenho? Onde já estavam: divididos entre o núcleo ideológico do bolsonarismo e o Centrão. Não seria possível esperar outra coisa. Os marcos do alinhamento político brasileiro pós-eleição de Bolsonaro, só se mexeram parcialmente. Não há alterações no campo católico – que se move, mas pouco se exibe no cenário político, deixando-se “representar” por porta-vozes evangélicos, mas afirmando-se ao sabor de temas nas votações. 

A novidade do novo cenário é a fragmentação do “assembleísmo” político e o reforço do protagonismo neopentecostal (leia-se IURD), uma força reemergente, com o crescimento do Republicanos (inclusive atraindo o vice-presidente Mourão) e se apresentando como o “verdadeiro partido conservador brasileiro”. 

A direita evangélica é um fato da política brasileira. Porém, não há uma correspondência exata entre sua conformação no Congresso e sua representatividade entre as massas evangélicas do país. Há uma visível movimentação ocorrendo nas bases do mundo evangélico, com vozes dissidentes se tornando mais audíveis e organizadas. No interior das igrejas, o conservadorismo predomina sob a forma do controle exercido pelos pastores e pastoras sobre a livre manifestação política de seus/suas fiéis. No entanto, as paredes dos templos já não contêm como antes a formação da vontade política dos membros – as mídias sociais, os pequenos agrupamentos de opinião (grupos informais, coletivos, movimentos, organizações não-denominacionais), a influência da mídia convencional e a discussão difusa em espaços privados pluralizam a opinião evangélica. Mais do que em 2018. 

Naturalmente, o campo é dinâmico e o início da campanha eleitoral mexerá nessas águas. Podemos, sim, ter um cenário de nova onda conservadora se levantando, arregimentando as forças bolsonaristas e seus aliados pragmáticos do Centrão para “radicalizar” o discurso sobre temas sexuais, família tradicional e a toxicidade espiritual da “esquerda”. Entretanto, também é possível que os avanços da dissidência evangélica, se apoiados por aliados laicos, se consolidem e dividam mais o eleitorado evangélico. As intenções de voto em favor de Lula parecem indicar algo assim.

Em outras palavras, o cenário futuro recebe sinais da chamada “janela partidária” e seus resultados imediatos, mas em política se trabalha com múltiplos cenários, todos mais ou menos cambiantes e sobrepostos, e com pouco controle sobre a direção dos ventos. Por enquanto, pode-se dizer que o status quo político confirmou sua opção majoritária por Bolsonaro na disputa, ao mesmo tempo em que impôs a este uma “moderação” que o manterá refém do Centrão. 

Os evangélicos dividem-se partidariamente, mas maciçamente na órbita do governo – nenhuma novidade  –  desde  1986! Seu conservadorismo moral tem tradução quase direta na opção por partidos de centro-direita e direita, e isso deverá continuar rendendo frutos legislativos, mas o cenário das disputas ao Executivo continuará marcado por linhas de força locais e não pela confessionalidade dos candidatos e candidatas. Até hoje não se provou que ser religioso faz de alguém um bom prefeito, governador ou presidente. Deve continuar sendo assim.

Numa palavra, mexeu-se muito, mas não mudou quase nada. O processo político precisa de atores. Não funciona automaticamente. Quais serão os de 2022? Precisamos esperar as próximas semanas, quando as peças do jogo eleitoral começarem a entrar no tabuleiro (ou melhor, nos tabuleiros). 

O campo das religiões deve ser de novo alvo de muitos investimentos, ainda mais quando os jogadores da ordem percebem sinais de inquietude, irritação e reposicionamento entre os fiéis. E por certo renderá frutos. Do ponto de vista dos resultados eleitorais, toda a questão é quanto barulho os grupos religiosos minoritários e à esquerda conseguirão fazer. Junto com tendências de piora das condições sociais e econômicas na conjuntura, isso pode fazer alguma diferença. 

Do ponto de vista da dinâmica ético-política do campo religioso brasileiro, minha aposta é que quanto mais avançarmos na direção do que já está aí, maior o desgaste sociocultural dos atores mais salientes, maior sua divisão interna e mais desafiadoras as demandas por identidade e coerência.

Joanildo Burity é cientista político. Pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Abaixo, uma visualização interativa que permite entender as movimentações dos deputados entre os partidos. Cada partido mostrará a soma entre os que saíram e os que entraram, e cada caminho mostrará, nas duas direções, quantos foram de um partido para o outro:

Visualização: Matheus C. Pestana

Esta é a tabela que originou os dados acima: