Pessoas sem religião: entre desafeição, desinstitucionalização e individualização da fé

Flávio Senra

Por Flávio Senra

  • 26 jun 2025
  • 6 min de leitura
Pessoas sem religião: entre desafeição, desinstitucionalização e individualização da fé
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A presença cada vez mais visível de pessoas que se identificam como sem religião, 9,3% em 2022, tem levado a comunidade de cientistas sociais da religião a refletir sobre os limites institucionais do religioso.

Pesquisas qualitativas no âmbito do grupo de pesquisa Religião e Cultura (PPGCR PUC Minas/CNPq) têm revelado trajetórias de pessoas que se autodeclaram sem religião com crença. Esta identidade, longe de significar ausência de fé, está associada a formas alternativas de crença que dispensam o vínculo com instituições, doutrinas ou sistemas de culto. 

No Brasil, alguns dos primeiros esforços de compreensão do campo foram realizados por estudiosos como Marcelo Camurça, em Os “Sem Religião” no Brasil; Silvia Fernandes, em seu capítulo Sem religião: a identidade pela falta?, e Marcos Nicolini, em Religiosidade Laica

O trabalho de Regina Novaes também é fundamental nesse campo, tanto em Jovens sem religião: sinais de outros tempos quanto em Os jovens “sem religião”: ventos secularizantes, “espírito de época” e novos sincretismos

A esses estudos se soma a extensa produção de Denise dos Santos Rodrigues, com publicações como Juventude sem religião, religiosos sem Igreja, liberdade de afirmar-se sem religião e Os sem religião nos censos brasileiros – obras que apontam para a crise do pertencimento institucional como uma das chaves interpretativas centrais.

Sendo esta uma temática de âmbito global, é preciso reconhecer a densidade dos estudos produzidos em diversos países da América Latina. Na Argentina, por exemplo, destacam-se as contribuições de Juan Esquivel, em Religiously Disaffiliated: Religiously Indifferent, or Believers without Religion?; e de Hugo Rabbia, com Explorando los “sin religión de pertinência” en Córdoba

No Uruguai, Néstor da Costa desenvolve uma longa trajetória de investigação, desde Religión y sociedad en el Uruguay del siglo XXI até Crença e descrença nas experiências cotidianas. No Peru, Catalina Romero e Veronique Lecaros, em ¿Quiénes son los sin religión en Lima?, analisam esse fenômeno na capital do país. 

No México, os trabalhos de Renée de La Torre e Cristina Gutiérrez Zúñiga, como Tendencias a la pluralidad y la diversificación del paisaje religioso en el México contemporáneo, contribuem para o mapeamento do pluralismo e da desfiliação religiosa. 

O caso chileno também vem sendo investigado. Ignacio Cáceres Draper e Andrés González, em Progressivism and Religious Disaffiliation in Chile, analisam como movimentos sociais e culturais têm impulsionado o afastamento institucional. De Fabián Bravo Vega, destacamos os trabalhos No-religión y religiosidad liminal e Religious Disaffection and “Unaffiliated” Individuals

Na Colômbia, William Beltrán e Lorena Peña abordam, no artigo Creencias y prácticas de jóvenes creyentes no afiliados en Bogotá, as formas de crença entre jovens que, embora não afiliados, mantêm práticas espirituais significativas. 

Já a publicação Exploring the Nonaffiliated in South America, coordenada por Néstor da Costa e colaboradores, oferece uma visão panorâmica da emergência dos não afiliados no continente, articulando análises empíricas e contribuições teóricas. 

Por fim, merece menção a leitura de Gustavo Morello et al., que em An Enchanted Modernity exploram o sentido do moderno encantado no panorama religioso latino-americano. Também Fortunato Mallimaci e Verónica Giménez Béliveau, com Creencia e increencias en el Cono Sur de América, oferecem um retrato das ambiguidades e tensões em torno da não-religião na região.

A partir de pesquisas empíricas, de viés qualitativo, em trabalhos de mestrado e de doutorado, sustentamos a hipótese de que o afastamento da religião institucional ocorre em muitos casos por um processo inicial de desafeição religiosa, levando à desinstitucionalização, o que é alimentado pela individualização da crença. A agência da fé ou da não fé é assumida com autonomia, o que não implica a perda do reconhecimento de alguma realidade supramaterial.

No contexto brasileiro, além das análises demográficas e sociológicas mais amplas, começam a ganhar relevo investigações que se debruçam sobre experiências concretas e subjetividades de pessoas sem religião. Destacamos algumas contribuições recentes do nosso Grupo de Pesquisa Religião e Cultura (PUC Minas), na expectativa de que possam contribuir com novas reflexões sobre o campo.

José Álvaro Campos Vieira, que dedicou seus estudos de doutorado ao tema Ensaio de espiritualidade não religiosa, faz uma leitura sobre sujeitos sem religião em Belo Horizonte. Ele demonstra como essas pessoas, mesmo desinstitucionalizadas, constroem referências de transcendência e práticas de sentido. 

Claudia Danielle de Andrade Ritz traz uma contribuição ao investigar o perfil de pessoas que se identificam como “sem religião com crença”. Em sua tese de doutorado intitulada Eu sou sem religião com crença, a autora analisa o enfraquecimento da herança religiosa familiar e a permanência da crença como um elo de memória, retomando as ideias de Danièle Hervieu-Léger sobre o papel da filiação simbólica nas religiões contemporâneas.

Outras pesquisas buscam mapear grupos específicos e suas espiritualidades alternativas. Flávio Lages Rodrigues, por exemplo, em O rock e a espiritualidade não religiosa, investiga como roqueiros e roqueiras constroem sociabilidades que foram interpretadas como expressões espirituais não institucionalizadas. 

A dissertação de Beatriz de Oliveira Pinheiro, Vidas precárias, é um dos exemplos de pesquisa qualitativa com pessoas sem religião. A autora explora as formas de espiritualidade vividas por profissionais do sexo autodeclaradas sem religião em Belo Horizonte. Na mesma linha, sob a perspectiva dos estudos de gênero, Sandson Almeida Rotterdan defendeu a tese intitulada À Igreja o armário, na qual reflete a desinstitucionalização de homens gays sem religião. 

Estes trabalhos, ao lado de outros em andamento, reforçam a ideia de que há um campo emergente de espiritualidade que vai se constituindo sem o aparato institucional das religiões. As Ciências Sociais da Religião, ao se abrirem para essas experiências liminares, amplia sua capacidade de leitura dos modos contemporâneos de viver e materializar a experiência religiosa – dentro e fora da religião. 

A pesquisa sobre pessoas sem religião desafia categorias estabelecidas, escapa aos manuais e resiste a enquadramentos tradicionais. É um campo de liberdade, mas também de incertezas. Por isso, recomenda escuta atenta, rigor metodológico e disposição para o inédito.

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