Compreender a política contemporânea passa necessariamente pela análise dos organismos do Estado mas não se basta nisso, dado que sua estrutura não está circunscrita ao núcleo imediato ou declarado do poder estatal, isto é, o governo e a administração pública. Se, por um lado, o Estado tem seus limites delimitados por um conjunto de leis, por outro, ele também aglutina formal e informalmente muitas outras instituições sociais. 

A literatura especializada tem chamado essas organizações e instituições sociais diversas, constituídas por pessoas diversas, de “Estado ampliado” (Mascaro, 2013). É justamente nessa fenda, ou melhor, atuando junto a este Estado ampliado, que evangélicos avançam – silenciosa ou escandalosamente – na construção de uma nova hegemonia religiosa no interior do sistema de justiça brasileiro e na ocupação dos três poderes.

Antes de continuar, no entanto, há pelo menos dois destaques a serem feitos. Primeiro, que o campo jurídico foi ocupado durante muito tempo por maioria católica. Além da relação histórica entre catolicismo e Estado no Brasil, ascender na carreira jurídica exigia, até bem pouco tempo atrás, capital cultural, social e financeiro elevados. Durante muito tempo, esse não foi o caso dos evangélicos. 

Ademais, tanto o catolicismo quanto a estrutura jurídica são anteriores à presença e ao protagonismo dos evangélicos no espaço público. Não por acaso, e aí está o segundo ponto, os evangélicos perceberam que, diferentemente da política institucional, ganhar poder no judiciário nacional exigiria, entre outras coisas, alianças com católicos. 

As recentes mudanças no campo religioso brasileiro passaram a exigir um maior diálogo entre católicos e evangélicos e até mesmo entre evangélicos e evangélicos em diferentes esferas da vida social. No interior do segmento evangélico, por exemplo, havia cisões absolutas e incontornáveis: evangélicos históricos dificilmente dialogavam com pentecostais e neopentecostais. As diferenças eram políticas, mas sobretudo e decisivamente, teológicas. 

Ocorre que, atualmente, essas distinções já não representam quase nenhum percalço e é possível verificar no campo jurídico brasileiro uma parceria, aparentemente frutífera, entre evangélicos (históricos, pentecostais e neopentecostais)  e católicos que se colocam dentro do campo conservador. Além de ocuparem os mesmos espaços, esses atores participam e organizam instituições e projetos conjuntamente. 

Diante desse contexto, uma pergunta se faz necessária: qual é o elemento unificador dessas identidades que historicamente foram diametralmente opostas? O que outrora fora inimaginável – diálogos amistosos entre evangélicos e católicos – agora constitui uma força motriz nos objetivos comuns desses dois campos: avançar pautas conservadoras e neoliberais. Importantes pesquisas sobre o chamado “neoconservadorismo brasileiro” apontam para essas afinidades (Biroli; Machado; Vaggione, 2020).

É neste quadro teologicamente nebuloso e politicamente estratégico que nasce mais uma organização do Estado ampliado: o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR). Em 21 de novembro de 2018, a Assembleia Geral de fundação desta organização ocorreu no Centro Histórico e Cultural da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP) e congregou juristas, filósofos, cientistas sociais, economistas e teólogos.

Em resumo, o IBDR é um think tank, isto é, um centro de reflexão – que nasce da tradição cristã, em sua grande maioria reformada – e tem agendas comuns relacionadas a pautas morais e econômicas. Conforme consta em seu site, o IBDR “produzirá artigos científicos de alto impacto, um banco de dados inédito no Brasil, que vincule os estudos mais promissores acerca da relação entre Direito e Religião sob a égide da cosmovisão cristã, além da interação destas áreas com a filosofia, teologia, economia e política. Ainda, o IBDR promoverá e organizará eventos, palestras, cursos presenciais e via streaming”. 

O IBDR, diferente da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), é composto por católicos vinculados a Opus Dei, evangélicos históricos (a maioria de tradição reformada), pentecostais e neopentecostais. Embora a grande maioria seja de evangélicos de igrejas que oferecem quadros político-técnico-midiáticos para o governo federal, são os católicos que ocupam cargos de destaque: o jurista Ives Gandra (presidente de honra) e Maria Garcia (presidente de honra do comitê científico). 

O IBDR afirma em seu site que não nasceu para ser “mais um think tank a surfar onda dos movimentos conservadores que ressurgem no país; ou seja, nesse sentido, não é ideológico, pois nega qualquer vínculo partidário. É, sim, pelo contrário, instituto de pensamento, interação e verdadeira usina de ideias formalmente comprometido em quebrar os muros da miopia cientificista e compromissos com poder político.”

Na prática, além da formação ideológica em igrejas, coletivos e instituições de ensino, o IBDR tem atuado diretamente na política nacional. O mais recente exemplo é a nota de congratulações ao presidente da república pela indicação de André Mendonça ao STF. A organização também foi ligeira ao se posicionar contra as manifestações  de organizações contrárias à indicação de Mendonça ao STF. Certamente, há outros inúmeros exemplos: o IBDR se posicionou por ocasião do Decreto do governador de São Paulo, João Dória, em relação às medidas restritivas impostas às atividades religiosas. Também se manifestou em razão  do Decreto do governador da Paraíba, João Azevedo Lins Filho, em relação às medidas restritivas impostas às atividades religiosas; Colocou-se, ainda, contra a tramitação do Projeto de Lei nº 26/2019, de autoria da Deputada Luciana Genro, por se tratar de “ideologia de gênero”. É bom lembrar que o IBDR foi amicus curiae do julgamento da ADPF 811, que tratava sobre abertura de templos na pandemia.

Outro dado importante é o fato de haver no IBDR importantes nomes do quadro político nacional. É o caso do segundo secretário da organização Antônio Cabrera Mano Filho, ex-ministro da Agricultura do governo Fernando Collor. Cabrera é membro da Mont Pelerin Society (importante organização de produção e disseminação de ideologias neoliberais, cujos fundadores são Milton Friedman e Ludwig von Mises), da World Buffalo Scientists Community e The Philadelphia Society (organização de produção e disseminação de ideologias neoliberais, tendo como participantes Milton Friedman e Friedrich von Hayek). Cabrera ainda exerce as funções de Capelão Nacional dos Gideões Internacionais no Brasil, é diretor da Sociedade Bíblica Brasileira  de presidente do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica, e Presidente do Grupo Cabrera, um grupo familiar de três gerações que atua no agronegócio em dez estados brasileiros. O secretário do IBDR foi um dos palestrantes da “Conferência de Escola Austríaca”, que aconteceu em 2017, na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo.

Este também é o caso de Warton Hertz de Oliveira, conselheiro fiscal do IBDR, assessor da Secretaria Nacional de Proteção Global do atual ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo federal. Roberto Tambelini, conselheiro deliberativo do IBDR e conselheiro diretivo nacional da ANAJURE, foi sondado pelo atual ministro do MEC, Milton Ribeiro, para ocupar o cargo de secretário executivo no ministério, segundo cargo mais importante na pasta. Outro nome é Guilherme de Carvalho, dirigente da L’Abri Fellowship Brasil e diretor para promoção e educação dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo federal. No Judiciário, destaca-se o caso do desembargador Delintro Belo de Almeida Filho, associado efetivo do IBDR, que manteve a sentença de indenização em favor da Primeira Igreja Batista em Goiânia em 2016, por ter sido “obrigada” a realizar o casamento de noiva grávida. Ressalta-se ainda que, o nobre desembargador sustenta a tese de Estado Laico, mas assina a decisão como “Diác.”, uma abreviação para diácono (cargo eclesial). O desembargador também proferiu decisão que condenou uma mulher a indenizar em R$ 25 mil o ex-marido por tê-lo traído.

Uma questão fundamental acerca da atuação do IBDR como Estado ampliado é, além das disputas religiosas, sua função de construtor e disseminador de ideologia (neste caso, sempre no singular). Como afirma o próprio segundo vice-presidente Jean Marques Regina, o objetivo é “reunir um bom banco de dados, produzir bastante material acadêmico e também produzir material de impacto cultural”. Com efeito, o IBDR trabalha no nível ideológico construindo subjetividades e relações sociais. A operação perpassa tanto o Estado, naquele núcleo pelo qual é tradicional e juridicamente identificado, chegando finalmente em regiões do plano político não imediatamente estatais: igrejas, escolas, cursos, faculdades. 

Certamente, não há qualquer problema na construção de instituições que fomentem o pensamento e o debate público. A pluralidade é sempre um elemento fundamental nas sociedades que se pretendem mais democráticas. Contudo, e aí está o problema, parece que a pluralidade e o pensamento diverso não são a tônica do IBDR. 

João Luiz Moura é Mestre em Ciências da Religião e pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Tem pesquisado religião, economia política e direito.

Foto: Pixabay

SAIBA MAIS:

MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013. 

BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.