Em março de 2020, vários estados e municípios brasileiros decretaram a suspensão temporária de aulas em escolas e universidades, comércios foram fechados e empresas passaram a operar remotamente em razão do alastramento da contaminação da população pelo novo coronavírus. Somente os serviços considerados essenciais continuaram a funcionar regularmente. Conforme a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 53/2016), um acréscimo ao art. 6 da Constituição Federal definia como serviços públicos essenciais: “a saúde, a educação, o transporte, a segurança, o fornecimento de energia elétrica, água e telefonia, a captação e o tratamento de esgoto e lixo, a compensação bancária, a administração da justiça, os serviços funerários e o controle do tráfego marítimo e aéreo”. Contudo, a suspensão provisória destes serviços pode ocorrer em determinadas situações.

Neste sentido, durante o período inicial de isolamento social, decretado por prefeitos e governadores a partir da segunda semana de março de 2020, muitas atividades foram suspensas temporariamente. Dentre elas estão a realização de cultos presenciais e a abertura de templos religiosos, de todas as tradições. Todas elas acataram os decretos estaduais e municipais, com exceção de igrejas evangélicas. Na Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, seu líder máximo, bispo Edir Macedo, argumentava que era preciso ter o antídoto cunhado como “coronafé” para combater o coronavírus, chamado por ele como praga ou “coronadúvida”.

Impelidos a manter regularmente as atividades religiosas nos templos, parlamentares e líderes evangélicos de presença midiática pressionaram Jair Bolsonaro que expediu, em 25 de março de 2020, o  Decreto nº 10.292/2020 ampliando a lista de serviços e atividades essenciais durante a pandemia. Nele constavam as “atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”. Em apoio ao presidente, e com o propósito de combater o novo coronavírus, líderes evangélicos convocaram um jejum nacional para o dia 05 de abril de 2020, uma semana antes da Páscoa daquele ano. 

A expedição do decreto deu início a uma batalha judicial. Em 27 de março de 2020, uma liminar suspendia os efeitos do decreto e previa o pagamento de multa aos municípios e à União por seu estímulo ao descumprimento do isolamento social. Estava claro em termos legais, na ocasião, que não se tratava de um impedimento à liberdade religiosa, tendo em vista que as atividades poderiam ser realizadas pela Internet e televisão. Em 30 de março de 2020,  a liminar foi suspensa mediante ação da Advocacia Geral da União (AGU) que levou a questão ao TFR2. Em vários estados, municípios e no Distrito Federal, diversas ações públicas foram movidas e provocaram o judiciário a se pronunciar. 

Nessa ocasião, a ANAJURE se mostrou contrária ao encaminhamento dado pelo Ministério Público Federal propondo a suspensão do Decreto nº 10.292/2020 e sinalizou que a questão caberia à Procuradoria Geral da República (PGR). A avaliação jurídica “técnica” sobre a evolução da questão fica em suspenso, na medida em que o procurador-geral da República, Augusto Aras, é aliado da ANAJURE e na sua posse assinou uma carta de compromisso da associação pela defesa de pautas como a isenção de impostos de igrejas, a preservação da família nuclear, heterossexual e monogâmica e a possibilidade do tratamento de “reversão sexual”. 

Naquele momento, a posição da ANAJURE não se misturava à dos líderes evangélicos com presença midiática, pois defendia o cumprimento das orientações feitas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e da manutenção do isolamento social temporário. A associação era favorável à manutenção dos templos abertos para serviços de assistência social, considerados de primeira ordem em um momento crítico. Já os cultos deveriam seguir suspensos, a não ser que fossem realizados por meio de Internet ou televisão. Diante de “abusos” cometidos em alguns estados com a suspensão flagrante de cultos por policiais militares, a ANAJURE começou a se organizar para se contrapor juridicamente ao fechamento dos templos e pela “garantia da liberdade religiosa”. Assim foi criado o “Observatório Anajure das Liberdades Civis Fundamentais”. 

Após um ano de atividades do Observatório, quando o número de mortes diárias pela Covid-19 no Brasil já superava três mil pessoas, o recém ministro empossado por Jair Bolsonaro, Kassio Nunes Marques, autorizou a liberação de atividades presenciais religiosas como missas e cultos em todo o território nacional, atuando como um Aliado dos Evangélicos (Vital da Cunha, 2020; Vital da Cunha e Evangelista 2019). A medida foi tomada no dia 03 de abril de 2021 e respondia favoravelmente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)  nº 701 apresentada pela ANAJURE. Na ADPF, a associação informa que o artigo 6º do Decreto Municipal 031/2020, de João Monlevade, em Minas Gerais, viola a Constituição ao proibir as cerimônias religiosas.

Deste modo, a ANAJURE solicitou a suspensão do artigo do Decreto Municipal 031/2020, “bem como dos demais decretos estaduais e municipais que determinam a suspensão/vedação/proibição de atividades religiosas”. Nunes Marques não se limitou a suspender os trechos do decreto em questão e determinou que estados, Distrito Federal e municípios se abstivessem de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proibissem as celebrações religiosas. Desta forma, o ex-ministro dava abrangência nacional à solicitação da ANAJURE e ratificava a uma só vez seu lugar como Aliado dos Evangélicos (ADE) e fiel escudeiro de Bolsonaro, que se beneficiaria da decisão junto a outros líderes religiosos.

A partir deste episódio, uma celeuma jurídico-política se estabeleceu. Veículos tradicionais de TV, inúmeros programas de rádio e canais na Internet e nas mídias sociais passaram a comentar diariamente o evento, que se confundia com um debate sobre liberdade religiosa. Assim estava em curso uma tática comum entre parlamentares evangélicos no Congresso Nacional caracterizada pela produção de interpelações judiciais e proposição de projetos de lei que, a despeito de não produzissem vitória direta, é muito eficaz em pautar a agenda pública (Vital da Cunha e Lopes 2012). Em relação à ADPF  nº 701, algumas trapalhadas foram cometidas, colocando em risco a decisão favorável que obteve do ministro Nunes Marques. A primeira delas foi o desrespeito à decisão tomada pelo pleno do STF, no início de 2021, vedando a ANAJURE de propor ADPFs em razão desta não ser nem entidade de classe, nem confederação sindical. A segunda foi o desrespeito de Nunes Marques à praxe do STF em liminares nas ações constitucionais. Nestes casos, seriam necessários, no mínimo, o voto de seis ministros, com exceção de recessos de fim de ano (o que não era o caso). 

A controvérsia sobre a privação de liberdade gravitou na agenda pública durante toda a semana pós decisão de Nunes Marques e com a subsequente sessão do STF para decidirem sobre a ADPF 811, de autoria do Partido Social Democrático (PSD), contra decreto estadual de São Paulo que suspendia a realização de atividades religiosas presenciais temporariamente durante a pandemia. O argumento da ANAJURE e outros líderes evangélicos de que a liberdade religiosa estava sendo ameaçada no Brasil, lançada sem a devida consideração de contextos específicos, gera desconfiança e demanda atenção analítica. 

Acompanhamos e observamos os usos da noção de liberdade religiosa pela ANAJURE desde 2017 por meio de pesquisas realizadas pelo LePar/UFF em parceria com o ISER, apoiadas pelo CNPq e Fundação Ford. O posicionamento da associação contra o fechamento de templos durante o lockdown em diversas cidades brasileiras está em consonância com estratégias reveladas por articuladores da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, como mostramos acima (Vital da Cunha e Lopes 2012) e busca criar fato político. Ministros da Suprema Corte brasileira foram impelidos a se pronunciarem sobre o tema e acabaram por avançarem em definições sobre Deus e religião, como vimos no julgamento da ADPF 811 (caso que abordaremos em matéria subsequente). 

O fato político de que estaríamos vivendo uma situação de privação de liberdades no Brasil estava posto, encontrando ressonância em outros setores da sociedade não necessariamente religiosos. No caso específico, correspondia à privação de liberdade religiosa junto à perseguição direta aos cristãos e mais especificamente aos evangélicos. No entanto, não há base empírica que sustente essa afirmação. Mas a eficácia simbólica do fato político reside em influenciar o sistema de crenças das pessoas, ou seja, insistir em falácias (neste caso) até que elas alcancem mentes e corações e ganhem aparência de verdade. 

Neste bojo, observamos um crescendo de tentativas de emplacar a noção de que há uma cristofobia no Brasil. Isso foi levantado no espaço público a partir do avanço do Projeto de Lei PLC 122/2006, cujo objetivo era criminalizar a homofobia no país. Uma disputa acirrada em torno desta agenda ocorreu no parlamento e na sociedade civil. Líderes religiosos alegavam a privação de seu direito fundamental à liberdade de culto e expressão. Esta agenda culmina com a aprovação de um projeto de lei na Câmara Municipal de São Paulo, em 2016, estabelecendo 25 de dezembro como Dia de Combate à Cristofobia. Fernando Haddad, prefeito à época, vetou o projeto. Em 2020, no âmbito federal, começou a tramitar um Projeto de Lei com objetivo de instituir 06 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Cristofobia. Vale destacar que a tramitação deste projeto teve início após o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU. 

Há um grupo específico de religiosos que atua na justiça, na política, nos poderes executivos, na sociedade civil e na economia para pautar o debate público de acordo com seus interesses. Até então esse grupo obteve êxito no uso de mídias sociais e no aquecimento de bases sociais não para combater a desigualdade social, garantir justiça social e a melhoria de vida da população em geral, Visam fortalecer suas organizações, empresas e redes de sustentação internacionais. Há muito mais evangélicos e católicos, não só de esquerda, mas também conservadores (lembrando que este é um grupo muito numeroso e composto por diferentes pessoas, a minoria delas extremista e fundamentalista) mais interessados no bem-estar social do que aqueles que se colocam como seus representantes. Mas estes estão pautando o debate público no Brasil há uma década, e com reiterada eficácia desde 2015. O que podemos fazer para retomar o espaço de diálogo social e pautar as questões que mais afligem a população? Como por exemplo, o combate à pobreza e à desigualdade, o uso sustentável dos recursos naturais, o investimento em educação e saúde de qualidade. É urgente construirmos caminhos.  

Christina Vital da Cunha é Professora Associada do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF. Coordena o Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião (LePar) e é colaboradora do ISER desde 2002.