O tema da(s) família(s) é fundamental em diversas discussões políticas. O discurso político religioso que visa construir uma verdade sobre a família para defender seus valores e existência se intensificou a partir de 2011, com a aprovação da união homoafetiva. Muitos episódios envolvendo algumas formas de “defesa da família” aconteceram desde então e as discussões que envolvem a “família tradicional” tomariam novos contornos.

É o caso da chamada “ideologia de gênero”, debate que ganhou espaço entre as tramitações do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE) e cuja principal argumentação religiosa para rechaçar o ensino com base em gênero e orientação sexual nas escolas foi a família. Posteriormente, durante as tramitações dos Planos Municipais de Educação (PMEs), a argumentação migraria para a defesa das crianças, mas com base na defesa da autoridade familiar e do papel dos pais na criação dos filhos. Uma das principais argumentações evocadas neste período seria um ataque à “família tradicional”, base da sociedade brasileira e que culminaria em seu fim.

Com a aprovação do PNE, destituído das diretrizes de gênero e orientação sexual, novos discursos sobre a família emergiriam tanto para comprovar a criminalidade da “ideologia de gênero” sob um falso pretexto de sua criminalidade graças à retirada do termo gênero da redação final da lei 13.005/2014. Outros argumentos utilizados durante o período posterior ao PNE evocam “cidadãos de bem” e uma ampla defesa das crianças. Muitas destas argumentações, por sua vez, foram associadas a estereótipos relacionados à população LGBT para assustar a população e mobilizá-la em favor da perspectiva religiosa.

O tema da família também é caro ao cargo político mais elevado do país. Durante as votações para o processo que resultou no Impeachment da ex-presidente, Dilma Roussef, em 2016, o termo família foi um dos mais utilizados nas justificativas. Especificamente o então deputado Jair Messias Bolsonaro declararia seu voto “pela família e pela inocência das crianças, em sala de aula, que o PT nunca teve” e finalizaria seu voto com o futuro slogan de sua campanha à presidência durante o pleito eleitoral de 2018, “por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos”,  

Bolsonaro se tornaria, com a promessa de defender os valores da família, o primeiro presidente a participar de uma Marcha pra Jesus, em 2019. Dividindo o palco com os líderes da Igreja Renascer em Cristo, idealizadora do evento e o então governador de São Paulo, João Dória. No próprio evento Bolsonaro já daria indícios de que “valores” seriam esses ao fazer sinais de arma com as mãos ao mesmo tempo em que ria no palco com o líder da igreja, Bispo Estevam Hernandes. Enquanto candidato, Bolsonaro fez amplo uso do capital político construído sobre a retórica dos valores da família.

No entanto, é possível observar diversas configurações familiares no mundo. Independentemente do arranjo familiar do qual as pessoas fazem parte, elas aprendem a “ser” família desde muito cedo. Aprende-se a ser família e a exercer papéis sociais dentro da própria dinâmica familiar e em outros ambientes, como a escola, a igreja, a mídia, a partir das leis e outros. A imposição de papéis rígidos para a convivência de homens e mulheres implica em consequências que, muitas vezes, afetam esta dinâmica e, também, as relações sociais.

Esses papéis rígidos são ensinados a indivíduos desde que nascem e desde a infância são marcados pelo sexo biológico. Meninas aprendem a se comportar, sentar, falar ao mesmo tempo em que são treinadas para serem meigas. Meninos aprendem, por sua vez, o papel de provisão e defesa. A partir destes papéis, as famílias são constituídas quando indivíduos se agrupam com outros.

Seja a família tradicional, monoparental, composta por casais do mesmo sexo e até do sexo oposto, o próprio Censo do IBGE aponta a diversidade de arranjos familiares presentes na sociedade brasileira. Mesmo assim, quando se aborda um “modelo” de família, muito provavelmente a primeira imagem que vem à mente é a de um casal, mãe e pai, com seus filhos. Isto tem uma explicação.

A família “tradicional” nuclear é um modelo amplamente reproduzido nas mídias, aludida nos discursos religiosos e na retórica majoritária sobre família(s). Por causa disso, há a criação de um imaginário sobre a(s) família(s) e como ela(s) deveria(m) ser. Consequentemente, toda família que não se encaixa nesse padrão passa a ser “menos” família. Há um amor em torno da família e cada uma passa a ser vista como tão importante quanto qualquer outra. Entretanto, o mesmo não acontece necessariamente quando a(s) família(s) se tornam foco pelas lentes do Estado. Mesmo que não aconteça efetivamente uma crítica às famílias “não tradicionais”, o simples fato de um discurso político reforçar a “família tradicional” como sendo a ideal, já aponta para uma hierarquia entre as famílias e a partir de um imaginário que naturaliza e normaliza uma organização econômico-familiar em que o homem exerce seu poder como pai por ser o “sexo mais forte”.

Como esse imaginário é construído? A partir do século 17, uma nova forma de organização social foi construída em cima dos contratos, incluindo o casamento. Apesar de uma suposta “neutralidade” dos contratos, esta concepção nos levou a enxergar o mundo como se o direito dos homens (pais/patriarcas) sempre tivesse existido e, ainda, ocupado uma posição de “supremacia” sobre a família, submetendo todos os outros direitos (conjugais, da mulher e dos filhos), aos direitos do homem. Esta centralidade do casamento na procriação e no domínio masculino terminou por ser enxergada como uma centralidade na masculinidade. Sendo assim, em um contrato em que deveria haver uma coparticipação entre homem e mulher, criou-se uma dinâmica de poder.

A dinâmica de poder estabelecida entre homens e mulheres pelo contrato do casamento designou papéis de gênero muito específicos para cada membro familiar. Desta maneira, em uma família patriarcal, o homem, sendo o sexo forte, domina e a mulher, o sexo frágil, deve ser dócil e submissa. Os/as filhos/as, por sua vez, economicamente dependentes, devem ser submissos ao patriarca, bem como sua mãe, e crescer e se desenvolver, reproduzindo seus exemplos, para exercer seus devidos papéis como futuros dominadores e submissas. É necessário perceber, portanto, que este papéis são ensinados ao longo da vida e nos diferentes espaços de socialização. Às pessoas que não cumprem suas funções sociais como homens e mulheres (biológicos) restam diferentes formas de violência como xingamentos, repreensões, ostracismo social e, até, agressões.

A religião exerce um papel fundamental na construção desse imaginário sobre a família. Primeiro porque o contrato do casamento, muitas vezes, não é celebrado somente no âmbito jurídico e contratual, mas também dentro das instituições religiosas. A(s) família(s) passara(m), assim, a ser santificada(s), não somente em sua dimensão social e econômica. Esta consagração, paulatinamente consolidou cada papel a ser performado por cada membro familiar, construindo e consagrando um “imaginário ideal” e, portanto, um ideal de família santificado. Em segundo lugar, porque o maior modelo familiar religioso reconhecido, no Brasil e na maioria das sociedades ocidentais, reside no mito de origem judaico-cristão de Adão e Eva.

Adão e Eva seriam, neste contexto, a família que Deus teria instituído. O casal pretendido para a construção familiar “sagrada” e, portanto, digna de destaque e de privilégios sociais como, por exemplo, a proteção do Estado. O papel da religião na construção e reforço desta concepção é fundamental. Isso porque, religiosos, sejam políticos ou lideranças se apoiam neste pensamento para produzir discursos que mantém a família no centro da sociedade. A hierarquia estabelecida por este modelo, portanto, constrói a crença de que existe um modo correto ou até “melhor” de ser família. Sendo assim, famílias de mães solteiras, de casais homoafetivos, casais sem filhos e outros arranjos que não o “tradicional” passam a ganhar um status de “menos família” quando em comparação com a “família tradicional”.

A existência de uma configuração específica para perfazer a “família ideal” parece tão óbvia aos legisladores brasileiros que a Constituição Federal reconhece a instituição familiar como base da sociedade, em seu artigo 226 e oferece sua proteção, no parágrafo 3º, para as entidades constituídas por um homem e uma mulher. 

Mesmo que esta Carta Normativa influencie e condicione diversos segmentos do direito, produzindo muitas ramificações a partir de novas demandas sociais, foi somente em 2011 que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por exemplo, a união de casais homoafetivos. Apesar de este reconhecimento ser assegurado por decisão do STF, ele ainda não foi garantido por lei, o que denota uma hierarquia entre as famílias. 

Este reconhecimento, contudo, gerou uma série de reações por parte de parlamentares religiosos, sobretudo evangélicos, na inclusão de Projetos de Lei e Projetos de Decreto Legislativo variados com o intuito de construir uma retórica para reafirmar a família heterossexual e monogâmica como sendo a “verdadeira”. Novamente, se percebe a tentativa de produção de uma hierarquia entre as famílias.   

A redação da Constituição é recorrentemente utilizada por políticos religiosos como argumentação para reafirmar e defender a primazia da família patriarcal, ao mesmo tempo que ignoraram e colocam obstáculos aos direitos de outras famílias que não perfazem este arranjo. Considerando que mais da metade das famílias brasileiras não vivencia o ideal defendido por parlamentares religiosos, todas estas famílias “não tradicionais” se tornam vulnerabilizadas no que diz respeito à proteção do Estado. Isso, muitas vezes, acontece com o apoio da população. Também porque, mesmo apesar de a maioria da população brasileira não se ajustar ao ideal proposto, muitos compartilham deste mesmo imaginário ou se submetem a ele por não percebê-lo como uma construção.

A tentativa de construção de uma “defesa da família” deposita nesta falta de conhecimento a possibilidade de fazer passar a família heterossexual como a família “verdadeira”. Como se uma configuração específica familiar, carecesse de defesa para que a sociedade continuasse a existir. A intenção é, na verdade, manter uma hierarquia entre as famílias que preserve uma posição de poder para os maiores privilegiados pelo patriarcado. Esta alusão à existência de uma família ontológica esconde a pluralidade histórico-social das famílias bem como fatores que afirmam outras composições e desvelam a realidade de existência de outros arranjos e funções para a família que não a procriação.

Assim como políticos religiosos que regulam e legislam “em nome de Deus e da família”, lideranças religiosas proeminentes atuando politicamente nas mídias e nos bastidores do Congresso como o católico Padre Paulo Ricardo, o assembleiano Pastor Silas Malafaia e outros. Tais figuras religiosas, por conta de seu acesso a parcelas significativas da sociedade, também possuem acesso relevante à políticos que os ouvem em nome da população e também a partir de seus valores e concepções de mundo. Mais uma vez, a religião ocupa papel central na retórica sobre a família.

É muito importante olhar para a sociedade e perceber que a maioria das famílias brasileiras não é tão “tradicional” assim. Apesar de ocupar um lugar central no discurso religioso, a família não deve ser instrumentalizada para defender os direitos de uma única parcela da população.

Fernanda Marina Feitosa Coelho é doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Vencedora do Prêmio ABHR Pierre Sanchis de Dissertações.

Referências

COELHO, Fernanda Marina Feitosa. “IDEOLOGIA DE GÊNERO É COISA DO CAPETA”: Transições discursivas em um percurso político-religioso contra gênero no Brasil no período 2012-2021, 2022. Tese de Doutorado (Ciências da Religião). Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2022.

COELHO, Fernanda Marina Feitosa. “MENINO JÁ NASCE MENINO, MENINA JÁ NASCE MENINA”: Fobia religiosa de gênero e suas implicações no debate sobre o Plano Nacional de Educação brasileiro no período 2012-2014, 2017. 131p. Dissertação de Mestrado (Ciências da Religião). Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2017.

CUNHA, Magali do Nascimento. Da imagem à imaginação e ao imaginário: elementos-chave para os estudos em comunicação e cultura. In: Discursos Midiáticos: representações e apropriações culturais. Org.: Laan Mendes de Barros. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2011, p. 33-48.

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo demográfico 2010: Famílias e domicílios. Resultados da Amostra, Rio de Janeiro, 2010.

PATEMAN, Carole, O contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

SANTOS, Naira Pinheiro dos; COELHO, Fernanda Marina Feitosa. A mobilização católica contra a “ideologia de gênero” nas tramitações do Plano Nacional de Educação brasileiro. Religare, vol. 13, n. 1, 2016, p. 27-48.

Saiba Mais!

Documentário – CIRANDA CIRANDINHA: HISTÓRIAS DE CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS EM CLASSES POPULARES. Direção: FONSECA, CLAUDIA / GODOPHIN, N. / ROSA, R. / CARDERE, A. Ano 1994. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LKOST2Hxp60