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Atualizado em 02/09/2024 às 17h37.

Julho é um mês com recesso de duas semanas no Congresso Nacional. Na quinzena de atividades, o projeto de Monitoramento de Projetos de Lei na Câmara Federal, realizado pelo ISER, identificou ênfases em temas recorrentes nos boletins anteriores: crianças e adolescentes, uma nova ofensiva contra resoluções de Conselhos de Direitos pró-Comunidades Terapêuticas e direitos de gênero, mais especificamente, de mulheres, relacionados à educação, e da população LGBTQIA+. 

Chamou a atenção na pesquisa a apresentação de propostas em outros temas, como o enfrentamento do negacionismo antivacina, direitos para gestantes e para mães e pais recentes, fomento ao turismo religioso e limpeza social, tendo como alvo a população em situação de rua.  

Crianças e Adolescentes

Propostas em torno dos direitos de crianças e adolescentes foram o tema mais enfatizado na quinzena de atividades na Câmara, em julho de 2024, conforme os critérios adotados para este monitoramento do ISER. A maioria delas foi apresentada por parlamentares da extrema-direita, uma vez que a pauta é frequentemente acionada por este bloco político, como fonte para disseminação de pânico moral e apelo a “ações de proteção”. 

Nesta linha foram três os projetos identificados no monitoramento de julho. O PL 2791/2024 de autoria do deputado evangélico Capitão Alberto Neto (PL/AM), garante às crianças e adolescentes do sexo feminino vítimas de violência sexual o direito de serem examinadas por profissional mulher, sempre que isso não importar retardamento ou prejuízo da diligência. O PL 2694/2024, de autoria da deputada católica Yandra Moura (União/SE), dispõe sobre a criação de programas de apoio a jovens egressos de orfanatos ao completarem 18 anos e serem desligados do abrigo. O PL 2807/2024, de autoria do deputado católico Júnior Mano (PL/CE), dispõe sobre a proteção da imagem de crianças, com a proibição da utilização de fotos delas para alimentar ferramentas de inteligência artificial, sem o consentimento expresso dos pais ou representantes legais.

Educação 

Os dados expostos ao público pelo Atlas da Violência 2024, divulgado em julho de 2024, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, gerou o PL 2753/2024, de autoria do Pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ). O texto propõe a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade de aulas de prevenção a abusos sexuais. O deputado justifica no texto que a proposta foi estimulada pelos números do Atlas que mostram que meninas de até 14 anos sofrem, proporcionalmente, mais violência sexual do que mulheres adultas: seis em cada dez vítimas de violência no Brasil têm, no máximo, 13 anos de idade.

A proposta do Pastor Henrique Vieira mantém acesa a discussão sobre a criminalização do aborto imposta pelo PL 1904/2024, apresentado em maio, como o Boletim do Monitoramento de Junho detalhou. Ela aponta para a necessidade de se discutir o alto índice de estupros contra crianças e adolescentes e para o direito ao aborto legal nestes casos, ao contrário da criminallização destas vítimas, o que pode ser evitado por meio educaçaõ sexual nas escolas.

Direitos para gestantes e para mães e pais recentes


O foco em direitos para gestantes e para mães e pais recentes, em três projetos do deputado evangélico Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), chamou a atenção no monitoramento de PLs de julho de 2024.  O PL 2674/2024 acrescenta o art. 392-D à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943), para assegurar ao cônjuge ou companheiro empregado o direito à licença-maternidade, em caso de abandono da criança pela genitora ou do impedimento da mulher de exercer os cuidados da maternidade por questões de saúde. O PL 2855/2024  também altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para ampliar a licença paternidade de cinco para quarenta dias. Já o PL 2854/2024 altera a Lei nº 6.202, de 17 de abril de 1975, que dá à estudante gestante o direito ao regime especial de estudos em exercícios domiciliares, para estender de três para seis meses o período de assistência educacional especial.

Nova ofensiva contra resoluções de Conselhos de Direitos pró-Comunidades Terapêuticas

A ação ostensiva de parlamentares extremistas de direita contra Resoluções aprovadas por conselhos de políticas públicas, por meio da apresentação de Projetos de Lei de suspensão destes instrumentos, já havia sido observada no monitoramento de outros meses deste 2024. Em maio, houve PLs apresentados contra duas Resoluções publicadas, no mês anterior, por dois conselhos distintos, que deliberam sobre temas relacionados a práticas religiosas na assistência a dependentes químicos e a pessoas privadas de liberdade. 

Neste julho, o alvo foi a Resolução nº 249, de 10 de julho de 2024, do CONANDA, que dispõe sobre o acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas. Proposições apresentadas por deputados federais, alinhados à extrema-direita e às bancadas cristãs, pedem a suspensão do instrumento: o  PL 326/2024 de autoria da deputada católica Bia Kicis (PL/DF) e o PL 322/2024, de autoria do deputado evangélico (PSD/SC) Ismael.

A Resolução nº 249, de 10 de julho de 2024, do CONANDA, além de se basear na recente Resolução do CNAS, já contestada por outros PLs na Câmara Federal, se refere a outras resoluções e recomendações de órgãos públicos publicadas em mandatos governamentais passados e no presente. Entre elas está a “Recomendação Conjunta nº 01, de 04 de agosto de 2020, pela qual o Conselho Nacional de Saúde – CNS, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA e o Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH recomendam medidas em sentido contrário à regulamentação do acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas, entre outras providências”. 

A Resolução do CONANDA também indica os caminhos apropriados para que o Poder Público aja de forma adequada e justa nesta questão, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com toda a documentação que embasa o texto.

Neste monitoramento é possível observar  que, mais uma vez, as Comunidades Terapêuticas são colocadas em questão, no tocante a políticas públicas comprometidas com direitos, o que provoca a contestação de tais ações por parlamentares com identidade religiosa, em uma defesa da “liberdade de atuação” dessas organizações.  

Direitos LGBTQIA+

Os temas referentes aos direitos LGBTQIA+  têm sido mais visibilizados entre os Projetos de Lei na Câmara Federal, dado o maior número de parlamentares identificados com esta causa.  Isto pode ser explicado pelo fato de a 57ª Legislatura ser a primeira na história da Câmara Federal a ter uma bancada LGBTQIA+ formada por quatro deputadas federais: Daiana Santos (PCdoB-RS), Dandara (PT-MG), Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), que se autodeclaram lésbica, bissexual e travestis, respectivamente.  

Um balanço da Agência Diadorim indica que estas deputadas encerraram o primeiro ano desta legislatura com a apresentação de um total de 74 projetos de lei distintos, com cerca de 30% voltados à população LGBTQIA+. Dentre eles, 21 beneficiam diretamente o grupo: sete são voltados ao combate à violência; cinco, dedicados à instituição de datas celebrativas; três, com foco em emprego e trabalho; outros três, para cidadania; cultura, educação e saúde têm, cada uma, um PL proposto. Vários destes projetos estão destacados nos Boletins do Monitoramento de PLs do ISER, de 2023.

É neste contexto que a deputada de identidade religiosa não identificada Erika Hilton (PSOL/SP) apresentou, neste julho de 2024, o PL 2667/2024 que institui o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero. A proposta visa “garantir a efetivação dos direitos fundamentais e a promoção da cidadania às pessoas autodeterminadas e pertencentes à população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexo, Não-binárias (LGBTQIA+), por meio da criminalização e reconhecimento da discriminação, intolerância e preconceito em razão da orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero e características sexuais, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos das minorias sexuais e de gênero”.

Foi também apresentado em julho, o PL 2921/2024, de autoria do deputado católico Clodoaldo Magalhães (PV/PE), que dispõe sobre a criminalização da intersexofobia. O termo é definido no texto como “qualquer ato de discriminação, violência, preconceito ou pressão contra pessoas intersexo, bem como seus familiares, em função de suas características sexuais, anatômicas e/ou genéticas”. A proposta dedica artigo específico a crime de intersexofobia em ambiente hospitalar: atos que forcem crianças intersexo a cirurgias estéticas ou procedimentos de hormonização, violência física, psicológica, moral ou simbólica e atos de preconceito e discriminação, sendo prevista pena de reclusão e multa.

Direito à Vacinação 

Os efeitos do negacionismo contra a imunização por meio de vacinas, movimento antivacina, que ganhou força no Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro e a pandemia da covid-19, são recorrentes nos últimos anos. Além dos casos fatais de covid-19, a postura antivacina tem causado o retorno doenças que haviam desaparecido no país, especialmente entre crianças, apesar de alguns avanços com as políticas de saúde implementadas a partir de 2023

O negacionismo antivacinas tem alcançado grupos religiosos, o que é mais evidenciado entre evangélicos, seja entre fiéis encontram sintonia religiosa com o discurso, seja por meio de ações de missionários entre povos indígenas. 

O PL 2658/2024, de autoria da deputada católica Ana Paula Lima (PT/SC), propõe uma resposta do Legislativo contra o negacionismo, e busca alterar o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) para tornar crime a apologia contra a vacinação obrigatória, conforme classificação do Ministério da Saúde. É prevista  pena de detenção de três a seis meses, ou multa. No texto, a deputada alega que “a liberdade de expressão não é absoluta e encontra limites, mormente quando colide com outros direitos fundamentais, como é o caso da saúde e da vida”.

Limpeza social: população em situação de rua

Preocupado com os espaços públicos ocupados por pessoas em situação de rua, “como uma praça, um parque ou uma praia”, o que “prejudica que as famílias usufruam adequadamente desse bem e do seu direito de ir e vir”, o deputado católico Doutor Luizinho (PP/RJ) propôs o PL 2950/2024. O projeto, que pode ser inserido na categoria de limpeza social, visa à regulamentação das ações de remoção e guarda de bens e pertences de pessoas em situação de rua, bem como a remoção e o encaminhamento de pessoas em situação de rua para serviços de assistência social. 

No texto, o deputado reconhece a liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ADPF 976, que proíbe remoções forçadas de pessoas em situação de rua e seus pertences, e a omissão dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de implementar a Política Nacional para a População em Situação de Rua. No entanto, o parlamentar alega que essa decisão da Corte “reforça a necessidade de uma abordagem equilibrada e respeitosa, porém não pode ser utilizada como cerceamento do direito dos demais cidadãos de usufruírem do espaço público com segurança e tranquilidade”.

Turismo religioso

Uma das atividades que move a economia do Brasil, o turismo, tem na versão religiosa uma fonte cada vez mais ampla de produções, dada a presente  visibilidade, mais intensa, da pluralidade de expressões religiosas. O que era pouco tempo atrás restrito ao Catolicismo, seus monumentos, festas e locais de romarias, hoje divide a procura de visitantes com locais e eventos sagrados (que já tinham alguma visibilidade e agora se amplia) das religiões de tradição africana, do Espiritismo, das religiões orientais, e com os novos investimentos do Cristianismo evangélico. Este quadro é identificado como alvo importante de políticas públicas pelo Poder Executivo.

No Legislativo, a deputada evangélica Missionária Michele Collins (PP/PE) está atenta a ele, com a proposição do PL 2910/2024. O projeto institui uma lista de diretrizes básicas para o fomento do turismo religioso, e estabelece a responsabilidade do Conselho Nacional de Turismo (CNT) no encaminhamento da presente Lei, se aprovada, ao Poder Executivo para regulamentação.

Sobre os autores

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.