Ainda no início do ano legislativo, março teve 204 Projetos de Lei (PLs) na Câmara Federal, considerados de particular interesse para o ISER, de acordo com o levantamento do projeto de Monitoramento de PLs. Este projeto do ISER dedica atenção às proposições que podem desencadear conflitos, disputas e construir narrativas sobre questões que tangenciam valores, comunidades ou entidades religiosas. Este levantamento de março de 2024 se junta a outros, produzidos desde 2023, e, dentre os PLs identificados, duas pautas chamaram a atenção da equipe: a regulamentação do trabalho de motoristas de aplicativos e o foco no sistema socioeducativo.

Regulamentação do trabalho de motoristas de aplicativos

No início de março de 2024, o governo federal enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei Complementar, em regime de urgência, para regulamentação do trabalho de motoristas de aplicativos. É a implementação de uma proposta do plano de governo do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva quando candidato em 2022. 

A proposta de PLC é resultado das ações de um grupo de trabalho, criado em maio de 2023, com a participação de representantes do governo federal, trabalhadores e empresas, acompanhado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Ela prevê: criação da categoria “trabalhador autônomo por plataforma”; os motoristas e as empresas vão contribuir para o INSS – os trabalhadores pagarão 7,5% sobre a remuneração – o percentual a ser recolhido pelos empregadores será de 20%; mulheres motoristas de aplicativo terão direito a auxílio-maternidade; a jornada de trabalho será de 8 horas diárias, podendo chegar ao máximo de 12; não haverá acordo de exclusividade – o motorista poderá trabalhar para quantas plataformas desejar; para cada hora trabalhada, o profissional vai receber R$ 24,07/hora para pagamento de custos com celular, combustível, manutenção do veículo, seguro, impostos e outras despesas – este valor não irá compor a remuneração, tem caráter indenizatório; os motoristas serão representados por sindicato nas negociações coletivas, assinatura de acordos e convenção coletiva, em demandas judiciais e extrajudiciais.

Apesar do reconhecimento das injustiças trabalhistas com esta categoria de trabalhadores, nascida das novas dinâmicas sociais em torno da cultura digital,  a proposta de PLC não foi bem acolhida de forma unânime. Houve reações negativas de estudiosos do tema e muita desinformação produzida por grupos de oposição ao governo federal, o que criou pânico entre os próprios trabalhadores, e levou vários deles a realizarem manifestações de rua e até greve.

Tal atmosfera levou parlamentares, alinhados à esquerda, a produzirem PLs sobre esta pauta. O PL 893/2024 de autoria da deputada sem religião Erika Kokay (PT/DF)  apresenta muitos dados de pesquisas sobre a plataformização do trabalho em sua justificativa. O projeto tem como objetivo equiparar ao acidente de trabalho o acidente sofrido por trabalhadores de aplicativos de transporte particular de passageiros, de entrega de comida e produtos, e de prestação de serviços gerais ou profissionais durante o exercício da atividade profissional. 

O PL 606/2024, de autoria da deputada de identidade religiosa não identificada Erika Hilton (PSOL/SP), dispõe sobre a obrigatoriedade das plataformas de entrega por aplicativo de fornecer assistência jurídica e psicológica integral aos entregadores em casos em que forem vítimas de violência no exercício da profissão ou em razão dela.

O PL 583/2024, de autoria do deputado católico Tarcísio Motta (PSOL/RJ), assegura que os entregadores de aplicativo não sejam obrigados a subir até a porta das unidades habitacionais ou comerciais dos consumidores e dá outras providências

Foco no sistema socioeducativo

Esta é uma pauta com a qual o ISER trabalha e tem interesse há muitos anos, a partir das determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê a responsabilização judicial de   adolescentes autores de ato infracional para que cumpram medidas socioeducativas, que contribuam, de maneira pedagógica, para o acesso a direitos e para a mudança de seus  valores pessoais.

Este histórico tem relação com o fato de o Estado do Rio de Janeiro desenvolver ações em Medidas Socioeducativas, com estrutura própria, desde 1993. O Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), em 2008, propôs um conjunto de orientações voltadas para a temática Assistência Religiosa. No ano seguinte, 2009, o ISER publicou a pesquisa Pescadores de homens: O perfil da assistência religiosa no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. O anseio pela produção da informação e a percepção da importância do tema pelo próprio DEGASE foi fundamental para que a equipe do ISER pudesse ter agilidade e acesso a informação direta junto aos segmentos identificados como prioritários para a realização deste pioneiro trabalho. Desde então, esta é uma pauta presente nas atuações do ISER na área de Direitos e Sistema de Justiça.

Foi com base neste histórico que a atenção da equipe do Monitoramento de PLs do ISER se voltou para um maior número proposições na Câmara Federal, com foco no sistema socioeducativo, em março de 2024. Como, por exemplo, a do deputado evangélico Pedro Aihara (PRD/MG), com o PL 631/2024, que busca alterar a Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, visando incluir os agentes de segurança do sistema socioeducativo como parte integrante dos órgãos responsáveis pela segurança pública, já que trabalham atuando na ressocialização e na reintegração social de adolescentes em conflito com a lei.

Na mesma direção,  o  PL 547/2024, de autoria do deputado católico Delegado Caveira (PL/PA),  busca permitir o porte de arma para esses mesmos agentes. Segundo a justifica do parlamentar, “A proposta justifica-se no sentido de possibilitar aos agentes socioeducativos o porte de arma de fogo, ainda que fora de serviço, no intento de resguardar sua integridade física e de seus familiares, pois muitas vezes os mesmos sofrem ameaças em razão do exercício de suas funções.” 

Indicativos para futuras análises

As duas temáticas de destaque em março de 2024, chamam a atenção pela orientação de seus propositores: a pauta dos direitos no trabalho, enfatizada por parlamentares ligados a partidos de esquerda; a pauta da segurança pública, incluindo a ampliação do armamentismo, defendida por parlamentares alinhados à extrema direita. 

Vale reforçar, para futuras análises, que tais destaques estão em sintonia com o que a pesquisa Atlas-Intel, de março de 2024, apresentou. O instituto pediu aos entrevistados a indicação dos três maiores problemas do Brasil, escolhidos em uma lista de 20 tópicos. Em primeiro e segundo lugares, quase empatados, estavam, criminalidade/tráfico de drogas e corrupção, com respectivamente,  59.9% e 58.8% das escolhas, e, em terceiro, pobreza, desemprego e desigualdade social, com 20.6%. 



Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.