Bancada Cristã: uma articulação conservadora na Câmara dos Deputados que dobra a aposta

Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

Ana Carolina Evangelista

Por Ana Carolina Evangelista

  • 23 out 2025
  • 10 min de leitura
Bancada Cristã: uma articulação conservadora na Câmara dos Deputados que dobra a aposta
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A recente tentativa de articulação de uma Bancada Cristã na Câmara dos Deputados (Projeto de Resolução nº 71/2025) representa a formalização e a visibilização de uma cooperação política preexistente entre parlamentares católicos e evangélicos. Esta aliança, que opera nos bastidores há mais de uma década, emerge agora como uma demonstração de força numérica e um posicionamento político explícito em oposição ao governo atual. 

A novidade é que a iniciativa visa não apenas consolidar uma agenda comum, mas também buscar representação formal como bloco temático no Colégio de Líderes da Câmara, a instância da Casa que reúne lideranças da Maioria, da Minoria, dos partidos, dos blocos parlamentares e do governo. 

O Colégio de Líderes define a pauta de votações em plenário, negocia tempos das falas e acordos de procedimentos, além de ter acesso direto à Mesa Diretora. Quem tem status de líder na Câmara também pode indicar representantes em comissões e integrar rodadas de negociação com o governo e as demais bancadas partidárias.  Os parlamentares com identidade religiosa cristã buscam ocupar o mesmo espaço das bancadas feminina e negra que têm lideranças na composição do Colégio de Líderes.  

Segundo a proposta, a bancada será constituída por uma coordenação-geral e três vices-coordenadorias. A articulação é liderada pelo presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Gilberto Nascimento (PSD-SP), e pelo presidente da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana, Luiz Gastão (PSD-CE). Além das prerrogativas já descritas, a  bancada poderá usar a palavra por cinco minutos semanalmente em plenário.

Por hora, o plenário da Câmara aprovou com ampla maioria – 398 votos favoráveis e 30 contrários – o regime de urgência para tramitação do projeto de criação da Bancada Cristã. Isto significa que o texto não passará pelas comissões, como é o trâmite  em relação aos demais projetos, e será debatido e votado diretamente nesta instância. 

Parlamentares que votaram contra alegam que o projeto é inconstitucional pois privilegia uma religião e fere o Estado laico. Já o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), comemorou a urgência no tratamento da proposta e afirmou que a análise sobre a constitucionalidade será feita em outro momento. No mesmo dia da votação da urgência, Motta compareceu a um culto, nas imediações do Congresso, que reuniu parlamentares que comporão a nova bancada.

O estreitamento dos laços entre evangélicos e católicos na Câmara Federal

A cooperação entre parlamentares católicos e evangélicos que explicitam sua identidade religiosa e se articulam na Câmara Federal a partir disso não é um fenômeno novo. Ela tem origem na 54ª Legislatura, iniciada em 2011, ano em que Dilma Rousseff (PT) tomou posse como presidente da República, e foi se fortalecendo ao longo dos anos por meio de pautas comuns e oposição aos governos e pautas petistas.

Antes da regularização das frentes parlamentares (a partir de 2005), a Bancada Evangélica, como era usualmente nomeada, já articulava deputados eleitos dessa base desde o Congresso Constituinte. Em 2005, há duas décadas, essa bancada formalizou-se e articulou a Frente Parlamentar Evangélica que existe até hoje, à qual se somaram também deputados católicos, deputados identificados com outras fés e deputados sem religião. 

Já os parlamentares católicos que desejavam explicitar sua identidade religiosa na sua atuação legislativa, operavam por meio de um pequeno grupo informal identificado como Pastoral Parlamentar Católica desde a mesma 54ª Legislatura (2011-2013). A articulação foi formalizada como Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana apenas na legislatura seguinte, em 2015, igualmente composta por integrantes católicos, evangélicos, de outras religiões e sem religião. 

Fundamentalmente o que reunia esses parlamentares em ambas as frentes, mesmo aqueles sem religião declarada ou de diferentes vinculações, era a aproximação e a concordância com agendas políticas mais conservadoras, além do aceite em estar vinculado a uma agremiação legislativa de cunho religioso explícito – como deixam claros os estatutos constituidores de ambas.

É sobretudo a partir da oposição à implementação do Plano Nacional de Direitos Humanos III (PNDH-3), aprovado em 2010, no último ano do governo Lula 2, que parlamentares dessas duas bases — evangélica e católica — iniciam uma cooperação mais sistemática. Não ocasionalmente, foram apoiados tecnicamente pela então assessora parlamentar Damares Alves e representados em audiências públicas de apreciação do PNDH-3 pelo então deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ).

Tal aliança se explicita nesse período na defesa de projetos legislativos como o Estatuto da Família (PL 6583/2013), a “cura gay” (PDC 234/2011) e impedimentos ao aborto legal (PL 5069/2013), entre outros. O monitoramento de Projetos na Câmara Federal, realizado pelo ISER na atual legislatura, a 57ª, demonstra o estreitamento desta articulação entre católicos e evangélicos em diversas pautas. 

Desde então, essa aliança informal, porém operativa e concreta nas atividades legislativas, também serviu de base para as articulações de oposição ao governo Dilma Rousseff, culminando na eleição de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) como presidente da Câmara (2015) e para o processo de impeachment da presidente em segundo mandato (2016). 

Porém, é a partir da legislatura iniciada em 2019, sob o governo de Jair Bolsonaro (então PSL, depois PL), que se observa um cruzamento ainda mais significativo de membros e de assinaturas entre as duas frentes com identidade religiosa, católica e evangélica. Ambos os grupos somam aproximadamente 200 membros cada e essa sobreposição solidificou, na prática, uma aliança cristã, mesmo sem uma nomenclatura unificada.

A oficialização agora de uma Bancada Cristã traz à tona, portanto,  um processo de alinhamento e cooperação que já vem ocorrendo há pelo menos quatro legislaturas, nos corredores e em comissões do Congresso, e simboliza uma articulação conservadora no Congresso Nacional que dobra a aposta perante as forças políticas e opinião pública.

Proposta de articulação de uma Bancada Cristã, por que agora?

A apresentação pública de um projeto de Bancada Cristã acontece motivada por fatos importantes da conjuntura política que incidem sobre essa aliança programática e pragmática, até então informal, entre parlamentares religiosos conservadores e deixa claro alguns objetivos.

Um primeiro fator que motiva essa pressão por formalização agora, e não mais adiante, é a reaproximação do governo Lula com lideranças evangélicas. Observa-se uma reação dos deputados religiosos da oposição à percepção de que o governo atual está se aproximando, novamente, do segmento evangélico e sendo referendado por parte de suas lideranças com poder real na base, seja de fiéis seja de eleitores que irão às urnas em 2026. 

Uma amostra disso são movimentações políticas recentes e muito noticiadas pela própria comunicação do governo. Há diálogo e aproximação com o campo evangélico feminino, via encontros com a participação da primeira-dama Janja da Silva, promovidos por lideranças reconhecidamente mais progressistas da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.  Também, na possível nomeação do ministro da Advocacia Geral da União Jorge Messias, evangélico, à vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) e na reaproximação com lideranças da Assembleia de Deus de Madureira (encontro do presidente Lula com o bispo Samuel Ferreira, em 17 de outubro). 

Outro elemento motivador são as indicações de pesquisas de opinião sobre uma melhora na aprovação e uma diminuição na desaprovação do governo entre o eleitorado evangélico, um segmento que anteriormente parecia “cristalizado” em sua oposição. 

Neste contexto de motivações está também o voto do recém-aposentado ministro do STF Luis Roberto Barroso pela reabertura da votação sobre a descriminalização do aborto na Corte. Embora seja uma ação do Poder Judiciário, sem sinalização de apoio do governo, o tema é um ponto central de mobilização para grupos cristãos conservadores hoje representados por um número significativo de parlamentares católicos e evangélicos.

Recentes derrotas da oposição, composta não apenas por deputados de base religiosa, também levam a uma reação dessa oposição que busca deixar claro que ainda tem muita força, real e simbólica. Entre elas estão o não avanço da tramitação pela anistia dos condenados por tentativa de golpe contra o processo eleitoral de 2022, a não aprovação da PEC da Blindagem e a vitória de pautas importantes para o Executivo no Congresso.

Em relação aos principais objetivos, essa possível Bancada Cristã pretende:

1.  Demonstrar Força: a unidade busca evidenciar o poder numérico da aliança, visando maior influência nas negociações e votações legislativas.

2. Demarcar oposição: a articulação se posiciona como um bloco de oposição ao governo vigente, consolidando uma frente unificada em torno de pautas específicas.

3. Buscar representação formal: Como já referido neste artigo, um dos objetivos pragmáticos é obter um assento no Colégio de Líderes do Congresso. Isso confere a católicos e evangélicos uma representação temática para além das divisões partidárias ampliando a capacidade de um grupo específico influenciar a pauta legislativa.

4. Criar um fato político: a foto das lideranças das bancadas católica e evangélica (Gilberto Nascimento e Luiz Gastão) com o presidente da Câmara Hugo Motta, amplamente divulgada pela imprensa, marca simbolicamente uma unidade respaldada pelo poder da Casa, visibiliza a aliança que já era dada há mais de uma década e a torna um fato político público.

O que esperar da Bancada Cristã?

A escolha do nome completo do novo bloco temático da Câmara Federal – “Bancada Cristã em defesa da família” – é bastante significativa. Ela delimita o campo de atuação prioritário do grupo e comunica sua principal bandeira política.

O nome indica que não se trata de uma aliança cristã genérica, mas de um bloco com foco explícito em pautas de costumes e políticas públicas relacionadas ao conceito de família tradicional. Tal identificação é coerente com a postura e a defesa dos temas explicitados como prioridade de católicos e evangélicos nas respectivas bancadas religiosas já existentes. 

Ao mesmo tempo, verifica-se um posicionamento estratégico. Ao vincular a identidade “cristã” à “defesa da família”, a nova bancada cria uma plataforma unificadora que ressoa com suas bases eleitorais e justifica sua oposição a pautas progressistas como a descriminalização do aborto. Isso define claramente seus adversários políticos e suas prioridades legislativas.

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