Em março de 2021, foi criada a Comissão Permanente de Combate à Intolerância Religiosa na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Fruto de projeto proposto pelo vereador Marcio Ribeiro (Avante), à Comissão foram atribuídas as tarefas de intervir nas proposições sobre a temática no interior da Casa, acolher denúncias e encaminhá-las aos órgãos competentes, desenvolver medidas de enfrentamento à violência contra religiosos, desenhar campanhas de incentivo à liberdade religiosa e promover audiências públicas com instâncias diversas com o objetivo de discutir possíveis caminhos para a garantia da liberdade de credo na cidade.
A implementação da Comissão, logo no primeiro trimestre de 2021, inaugurou um conjunto de demais políticas públicas idealizadas ao longo do ano com a finalidade de combater a intolerância religiosa na capital carioca e em todo o estado. Importa sublinhar que na região fluminense, principalmente no Rio, uma singular modalidade de coerção às práticas religiosas surgiu: trata-se da interdição, por parte do crime organizado e das milícias, do pleno exercício de religiosidades nos territórios controlados por estes grupos, cujos chefes são majoritariamente evangélicos. Nesta tendência, os alvos preferenciais são os afrorreligiosos. No “Complexo de Israel”, conjunto de cinco favelas, localizadas na Zona Norte do Rio, dominadas por um traficante autodeclarado evangélico, é conhecida a proibição dos cultos de matriz africana nos terreiros situados nas localidades dominadas.
Outra Comissão de natureza semelhante foi implantada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj. Criada em maio de 2021 com o título oficial de Comissão Parlamentar de Inquérito Contra a Intolerância Religiosa, o relatório final deste esforço foi aprovado em 07 de dezembro de 2021 e apresentou 35 recomendações aos órgãos públicos em suas 152 páginas. A partir de dezenas de depoimentos prestados por religiosos, estudiosos e ativistas, os comissionados identificaram as favelas e demais comunidades como foco central para os trabalhos, já que são estes os pontos onde frequentemente ocorrem violações contra religiosos. Dentre as iniciativas sugeridas, estão o fortalecimento da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) e do Disque-Denúncia (100). Cabe lembrar que o número de acionamento da polícia militar, o 190, acolhe, desde o ano passado, queixas de intolerância religiosa no estado.
Concomitante ao expediente da CPI na Alerj, a deputada estadual Mônica Francisco (PSOL) propôs, em abril de 2021, a criação do Dia Estadual de Conscientização contra o Racismo Religioso, a ser celebrado em 27 de março. Também conhecido como Dia Joãozinho da Goméia – em referência ao famoso pai de santo candomblecista – a data foi incorporada ao calendário de comemorações oficiais do estado do Rio de Janeiro. Na ocasião, Mônica Francisco informou em postagem na sua conta no Instagram que “é preciso preservar a história, valorizar e reconhecer as práticas religiosas de matriz africana como patrimônio cultural, assim como demarcar as lutas e a resistência da população negra”. A deputada, que é pastora evangélica, é coautora da Lei N° 9251/2021, também promulgada em abril, que tornou o terreiro liderado por Goméia em Duque de Caxias um patrimônio histórico tombado.
Outra importante resolução igualmente concebida no âmbito da Alerj foi a criação, por meio da Lei Nº 9512/2021, do Observatório Mãe Beata de Iemanjá Sobre Racismo Religioso. Proposta pela deputada estadual Renata Souza ( PSOL), o dispositivo visa “coletar, ordenar e analisar dados sobre violência praticada ou tentada contra grupos e terreiros de religiões de matriz africana no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, bem como promover a integração entre os órgãos que investigam, julgam e os que registram casos”. O Observatório resultou das demandas do Movimento Mulheres de Axé do Brasil, uma entidade que nasceu no Recôncavo Baiano e reúne diversas mulheres pertencentes às religiões de matriz africana em todo o país.
Neste 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, as experiências de consolidação do Observatório fluminense, do Dia Joãozinho da Goméia e das Comissões demonstram a importância do poder público em assumir para si a responsabilidade no monitoramento dos casos de racismo religioso e a consequente investigação e punição de tais ocorrências, além de instigar uma reflexão social acerca do tema. De maneira similar, chama a atenção o ímpeto de duas parlamentares negras de encabeçar o debate institucional em torno da questão e pressionar pela instalação de insumos, tanto práticos quanto simbólicos, com vistas à superação deste tipo de hostilidade no Rio de Janeiro. Os instrumentos revelam também a centralidade do engajamento afrorreligioso, sobretudo a parcela feminina e negra desses grupos, na luta pelo fim da violência contra religiosos que, como já observado, atinge prioritariamente os membros das religiões de matriz africana no Brasil.
Gabrielle Abreu é historiadora, mestre em História Comparada (UFRJ) e pesquisadora no Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Foto: Comunicação/Alerj
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