Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 27 set 2024
“Quem controla o ensino aos jovens, e o que eles experimentam — veem, ouvem, pensam e creem — determinará o futuro da nação”
(DOBSON, J. C., 2003, p. 7 apud DEMAR, G., 2014, p. 55)
A epígrafe acima está na obra “Quem controla a escola governa o mundo”, do teólogo fundamentalista, e adepto da teologia do domínio, Gary DeMar, na qual ele defende a tese de que uma das ferramentas mais úteis na busca pelo poder é o sistema educacional. Para DeMar, assim como para outros fundamentalistas cristãos dominionistas, não existe educação neutra. Nessa perspectiva, existem dois modelos possíveis e opostos de educação, quais sejam:
1. uma educação cristã, que tem a Bíblia enquanto palavra inerrante de Deus como centro organizador do currículo, das políticas públicas para a educação e de todas as práticas pedagógicas escolares;
2. uma educação que eles denominam humanista, que é secularizada, desenvolvida nas escolas públicas laicas, logo, pautada por valores considerados anti-cristãos.
No âmbito do movimento fundamentalista, a escola laica, as pedagogias humanistas ou críticas, devem ser estrategicamente combatidas por serem consideradas opostas ao sistema de vida que nega a verdadeira soberania de Deus sobre o homem, cujo objetivo é “doutrinar as crianças por meio do sistema educacional” com a consequente destruição da família. Nesse cenário, trava-se uma verdadeira guerra cultural que se dá pela disputa por corações e mentes — para usar uma expressão cara aos fundamentalistas cristãos —, que se desdobra tanto no âmbito da sociedade civil quanto no campo da política. Mas o que tudo isso tem a ver com os pleitos municipais e as campanhas eleitorais para prefeito em 2024 no Brasil?
É fato que a educação sempre foi uma agenda relevante nos planos de governo de candidatos tanto do executivo quanto do legislativo, por isso, uma temática recorrente nas campanhas eleitorais. Porém, na última década temos observado uma mudança significativa no modo como essa agenda vem sendo mobilizada nos pleitos e, consequentemente, nos mandatos dos representantes eleitos. Analisar essa mudança é fundamental para que se compreenda as transformações do campo religioso e político brasileiro, marcado pelo avanço e o fortalecimento do fundamentalismo cristão, aliado ao crescimento de um movimento político conservador de extrema direita que se nutre e se impulsiona por um certo discurso religioso.
É nesse contexto que a educação, historicamente pautada nos discursos de campanha eleitoral e nos planos de governo como área que necessita de investimentos para atender as necessidades da população — construção de escolas e creches públicas, o aumento de vagas com políticas de acesso, permanência e redução da evasão, políticas de valorização do trabalho docente, entre outras —, é tomada de assalto por atores religiosos que no campo político e na sociedade civil passam a pautar agendas de cunho religioso conservador em tom de pânico moral, em lugar de políticas públicas de garantia de direitos fundamentais e bem estar social. Mas que agendas são essas? Em que contexto elas emergem e se tornam relevantes? Por que são decisivas para tais grupos?
Atualmente podemos elencar três agendas principais, são elas: 1. o combate a uma suposta “ideologia de gênero” e doutrinação política de esquerda nas escolas; 2. o programa de escolas cívico-militares; e, 3. a descriminalização da educação domiciliar, mais conhecida como homeschooling, cujo PL 3.179/2012 foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2022, e segue em análise no Senado (PL 1.388/2022). Considero especialmente importante dizer que essas três pautas são desdobramentos do movimento Escola sem Partido (ESP), que começou como movimento da sociedade civil em 2002, e se metamorfoseou em movimento político a partir de 2015. Embora derrotado enquanto Projeto de Lei federal, por inconstitucionalidade, o ESP se mantém vivo por meio do desmembramento de suas pautas e meios alternativos de controle do espaço escolar e do processo educativo.
Assim, o combate a uma suposta “ideologia de gênero” nas escolas, principal agenda que fez com que esses grupos religiosos tomassem para si o projeto trazendo-o para o campo político, recebeu também o projeto das escolas cívico-militares como forma de controle das escolas públicas por meio das suas gestões, e a descriminalização da educação domiciliar que, em última consequência, na impossibilidade de controlar as instituições educacionais, legaliza-se um processo educativo que se dê fora delas, instrumentalizado por organizações religiosas fundamentalistas.
Desse modo, o controle da escola e dos currículos, proposto pelo ESP, segue atuante não só no debate público, mas também, nas campanhas eleitorais e nos mandatos municipais e estaduais pelo país, haja vista iniciativas como a censura a obras literárias como O avesso da pele, de Jeferson Tenório, no Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, e Meninas sonhadoras, mulheres cientistas, de Flávia Martins de Carvalho, na cidade de São José dos Campos.
Para a defesa dessas pautas, grupos religiosos cristãos têm atuado ostensivamente em áreas importantes da educação no campo político em nível nacional, tais como a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, na Conferência Nacional de Educação (CONAE) para a elaboração do Plano Nacional de Educação 2024-2034, assim como ocorreu com o de 2014-2024. Esses mesmos atores estão submetendo seus nomes ao escrutínio do eleitorado local, concorrendo às Prefeituras e Câmaras de munícipios, pautando o debate público e programas de governo pelas mesmas agendas que têm defendido nacionalmente.
Nesse universo, concorrem às Prefeituras de várias capitais e cidades de médio porte, em todas as regiões do país, parlamentares membros da Bancada Cristã (Católica e Evangélica) no Congresso Nacional, que votaram a favor do PL 3.179/2012 e são defensores das escolas cívico-militares, tais como os titulares e o suplente, respectivamente, da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Diego Garcia (Republicanos-PR, Londrina), que se declara contra a dita “ideologia de gênero” nas escolas, Professor Alcides (PL-GO, Aparecida de Goiânia), Capitão Alberto Neto (PL-AM, Manaus); também Abílio Brunini (PL-MT, Cuiabá), Delegada Ione Barbosa (AVANTE-MG, Juiz de Fora), Carlos Jordy (PL-RJ, Niterói), que afirmou que “ambiente escolar é local para ensinar, para transmitir conhecimento, e não para promover mutação psíquica na sociedade com ideologia de gênero”.
Constam ainda nesta lista os deputados federais Rosana Valle (PL-SP, Santos), Josivaldo JP (PSD-MA, Imperatriz), Ricardo Silva (PSD-SP, em Ribeirão Preto), cujo principal apoiador, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), é ferrenho defensor das escolas cívico-militares. Já o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, que teve a educação e a escola como uma das principais plataformas de campanha, em 2018, tendo cumprido o compromisso de aprovar no Congresso a descriminalização do homeschooling, e a criação, em 2019, do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares é cabo eleitoral do ex-deputado federal mineiro Charlles Evangelista (PL, Juiz de Fora), que discursa contra a “ideologia de gênero” e doutrinação nas escolas.
É possível, ainda, listar senadores entre parlamentares candidatos a prefeito, defensores das mesmas pautas, como Carlos Viana (Podemos-MG, Belo Horizonte), que se declara contra uma suposta “ideologia de gênero” que traz uma “erotização precoce das crianças”. Esta ideia compartilhada pelo também senador Eduardo Girão (Novo-CE, Fortaleza), conhecido pela atuação na elaboração do PNE contra a inclusão da dita “ideologia de gênero”. Concorrendo como vice-prefeitos identificamos o alinhamento de Rodrigo Cunha (Podemos-AL, Maceió) e Rosângela Moro (União-SP, Curitiba).
Além destes, outros candidatos que não exercem mandato parlamentar também possuem bandeira de campanha e projetos de governo com pautas análogas no campo da educação, alguns deles são: o candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal (PRTB-SP), que prometeu banir das escolas livros que deturpem “a ideologia”. Ele é sócio de uma escola cristã em Goiânia (GO), a Escola Kingdom, cujo slogan é “governar sobre todas as coisas é a nossa missão”. Neste segmento estão também os defensores das escolas cívico-militares em Vitória, Lorenzo Pazolini (Republicanos-ES) e Capitão Assumção (PL-ES). Este último já declarou que “escola é educação sem partido e sem ideologias de gênero”, denominadas por ele como “ideologias nefastas”.
Por fim, incluímos aí o deputado estadual Bruno Engler (PL-MG, Belo Horizonte). Engler é coordenador do Movimento Direita Minas, membro de várias Frentes Parlamentares da Assembleia Legislativa de Minas Gerais — Católica Romana, contra o Aborto, em Defesa da Família e da Vida, e em Defesa do Conservadorismo. Engler tem como cabo eleitoral o deputado federal e atual presidente da Comissão de Educação da Câmara Nikolas Ferreira (PL-MG), conhecido por seus discursos contra a dita “ideologia de gênero” e os “banheiros unissex” nas escolas.
Vale destacar o caso de Charlles Evangelista, que se declara católico e tem como candidato a vice-prefeito o pastor evangélico batista Gilmar Garbero. Tal aliança é reveladora de uma conduta fundamentalista no campo político, que é a aliança interdenominacional para a defesa de pautas de cunho moral. O destacado uso da linguagem religiosa e das pautas morais na campanha de Evangelista acabou por colocá-lo em uma situação controversa.
Evangelista veiculou em seu vídeo de campanha no horário eleitoral na gratuito no rádio e na TV, áudio/vídeo do arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora Dom Gil Antônio Moreira, no qual o religioso se declara contra o aborto e a favor da vida a partir da concepção, seguido de posicionamento do candidato que, declarado-se católico, coloca-se em concordância com a fala do referido bispo. Dias depois, a arquidiocese publicou nota de esclarecimento sobre o uso indevido da imagem e falas do religioso em campanha eleitoral:
diante da utilização de áudio e vídeo em que o seu Arcebispo, legitimamente, divulga a doutrina da Igreja sobre o direito à vida, contra a prática do aborto, declara que o Arcebispo não participa de campanhas nem se envolve na política eleitoral. Na oportunidade, gentilmente, pede aos candidatos que, em suas respectivas propagandas, não incluam sua imagem e nem suas mensagens, mesmo quando disponibilizadas na mídia em outro contexto.
O vídeo foi retirado e a assessoria do candidato emitiu nota sobre o caso.
Neste cenário complexo de disputas acirradas, considero importante observar que a adesão a essas pautas de cunho religioso-político no campo da educação não é trivial, tampouco óbvia. Há uma intencionalidade programática da ordem social que prevê o controle e a consequente supressão da liberdade de cidadãos e cidadãs por meio de valores e normas religiosas que não são compartilhados por todas as pessoas.
Uma compreensão ampla da atual conjuntura política brasileira não pode prescindir do entendimento da lógica na qual opera a religião, sob pena de não se compreender as referências de sentido para determinados grupos sociais e atores religiosos que estão disputando o poder de regrar o estar-junto coletivo.
Não se pode perder de vista que a religião, além da crença e das práticas que a envolvem, é também uma chave de compreensão dos costumes, condutas e práticas sociais, posto que determina e ordena a vida das pessoas, tanto daquelas que creem nessas referências de sentido, quanto daquelas que não compartilham, mas com as quais esses grupos se relacionam das mais diferentes maneiras.
O desprezo à diversidade de crenças e modos de ser e viver que subjaz ao discurso fundamentalista reverberado por tantos candidatos às Prefeituras de norte a sul do país, no pleito de 2024, é indicativo de que o que está em disputa não é somente a gestão da escola pública e do bem-estar da coletividade. Antes, o que está sendo disputado é o poder de estabelecer quais são as virtudes cívicas que, levadas às últimas consequências, são definidoras da própria identidade nacional.
Por isso, vem crescendo a cada pleito a presença de atores religiosos na disputa da representação no Legislativo e no Executivo, que não apenas acreditam que quem controla a escola governa o mundo, mas também, disputam o campo político como agentes desse controle por meio das políticas públicas para a educação.
Andréa é doutora em Ciência da Religião. Professora e pesquisadora nas áreas de religião e espaço público, religião, política e educação, fundamentalismo religioso e Ensino Religioso. E-mail: andrea_silveira@yahoo.com
Referências:
AGÊNCIA PÚBLICA. Educação é principal foco de projetos conservadores na Câmara. Disponível em: A ofensiva conservadora na educação (apublica.org) Acesso em 25 mar 2024.
DEMAR, Gary. Quem controla a escola governa o mundo. Brasília: Editora Monergismo, 2014.SOUZA, Andréa Silveira de. Fundamentalismo religioso: o discurso religioso moralista e a disputa por corações e mentes no espaço público contemporâneo. São Paulo: Edições Terceira Via, 2019.