Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 02 out 2024

“Os evangélicos votam em quem o pastor disser”;  “Os evangélicos são de direita”; “Os evangélicos só apóiam conservadores”; “Os evangélicos…”. A não ser que se esteja fazendo referência a uma identidade, construída em décadas  por oposição ao Catolicismo no Brasil, recorrer à categoria “evangélicos” para dar conta de quaisquer fenômenos esclarece muito pouco ou quase nada, não importa se a repetimos centenas de vezes. 

“Os evangélicos” trata-se, somente, de um guarda-chuva conceitual, que pode remeter a jovens dançando ao som de rock gospel em uma igreja com show de luzes; a pessoas em um transe extático emulando coreografias de religiões afro-brasileiras, ao som de um pandeiro, aglomeradas em pequenos salões nas periferias de capitais brasileiras; a mulheres de saia e longos cabelos acompanhando homens de terno e gravata em direção a um templo gigantesco no centro de alguma cidade; ou a igrejas centenárias construídas com naves impecáveis e cheias de SUV’s em seus estacionamentos; dentre outras várias possibilidades.

Durante agosto último, o autointitulado ex-coach Pablo Marçal surgiu como um meteoro na disputa para o cargo de prefeito de São Paulo. Sua retórica bélica e o discurso repleto de pilhérias foram acompanhados por seu crescimento vertiginoso nas intenções de voto, devido, principalmente, assim mostraram as pesquisas, ao voto dos evangélicos. Aí estão eles de novo: “os evangélicos”. 

Entendo que o crescimento vertiginoso de Marçal captado nesta rubrica tenha se dado entre os evangélicos de “extrema direita”. Repare-se que qualifico “evangélicos” com o complemento “extrema direita”. Esses seriam diferentes, por exemplo, dos “evangélicos conservadores”, que, sim, tendem a votar historicamente em candidatos que defendem suas pautas morais. 

Durante o trabalho de campo para a elaboração de minha tese de Doutorado, frequentei por um ano a sede da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, a igreja do pastor Silas Malafaia, no bairro da Penha, Rio de Janeiro. Era 2016 e a campanha para prefeito da cidade daquele ano estava em pleno vapor. Participei de um fórum no qual os candidatos oficiais da igreja, que disputavam a reeleição para cargos legislativos (Sóstenes Cavalcanti, deputado federal (PSD); Samuel Malafaia, deputado estadual (PSD) e Alexandre Isquierdo, vereador (DEM), colocaram-se à disposição para responder às perguntas da congregação. O ex-presidente, então deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) não era candidato oficial da igreja, mas já tinha uma forte ligação com Malafaia e também se dispôs a ir ao fórum. Sua presença gerou expectativa crescente nos jovens com os quais convivia desde que essa possibilidade fora anunciada. 

Chegado o evento, um grupo em especial, estrepitoso e insólito, despertou minha perplexidade: seguidores do “mito”  que traziam no peito camisetas homenageando um célebre torturador da ditadura militar. Eu não estava sozinho no pasmo em relação ao séquito de fãs de Ustra e seus alaridos. Os gritos de mito, isto era certo, vinham de muito mais pessoas do que o círculo limitado fã do seviciador. Estes últimos, no entanto, levando em consideração que as pessoas ao meu redor entreolharam-se enquanto balbuciavam comentários inquisidores, não deviam ser membros da igreja.

À certa altura, chegou-se às questões sobre armar a população como estratégia contra a criminalidade, mais ainda, como direito. Sóstenes disse ser contra. Um casal sentado bem ao meu lado, cuja mulher segurava um bebê nos braços, ambos jovens, ambos pretos e, de acordo com os marcadores que nos ajudam a conjecturar sua classe social, oriundos de uma das várias comunidades do Rio de Janeiro. Após Bolsonaro ratificar, com toda a veemência já conhecida, sua aprovação ao armamento da população, seguiu-se o estardalhaço dos prosélitos do torturador. Já a mulher retrucou:  “isso não, isso eu sou contra”.

O bolsonarismo, forma pela qual a extrema direita consolidou-se na história recente do país, constituiu-se a partir de demandas originalmente heterogêneas: a dos militares saudosos da ditadura; dos negacionistas-científicos-olavistas; dos ultraliberais-paulo-guedes; dos armamentistas-punitivistas; e dos religiosos conservadores. “Os evangélicos” estão entre estes últimos. 

Não há como dizer que aquela mãe segurando seu filho reúne todos esses perfis. Ainda assim, ela pode declarar-se bolsonarista. Mas, se esse for o caso, como ela constrói essa conexão? É preciso chegar mais perto. Além de perceber as correlações elaboradas pelos próprios evangélicos, é preciso cruzá-las com marcadores como raça, classe e gênero, e assim entender, mais uma vez, se este for o caso, como articulam sua filiação à extrema direita.

Retornando a Pablo Marçal, entendo que lançar luz sobre os “evangélicos” que têm a intenção de votar no ex-coach pode ajudar a compreender melhor quem são os “evangélicos de extrema direita”. Entendo que o fenômeno de agosto aconteceu porque os evangélicos de extrema direita buscaram quem ali apareceu como o candidato mais bolsonarista possível.  

Eu estava lá, de novo fazendo trabalho de campo, na manifestação bolsonarista do 7 de setembro, na avenida Paulista. Quando Marçal apareceu no telão, subindo nas grades que isolavam a área restrita do trio elétrico, alguns homens adultos começaram a gritar “mito, mito”, enquanto faziam o “M” com as mãos. O mito subverte a ordem do discurso falando o que lhe vem à mente. Não se sabia que a partir dali viria um vídeo por dia de Silas Malafaia batendo em Marçal, uma cadeirada e um soco (sabe-se lá o que vem mais). Quem são os evangélicos que sustentaram o voto em Marçal apesar das admoestações de líderes como Malafaia? 

Um dos membros de sua igreja, um dos principais interlocutores de minha época do Doutorado, postou um vídeo na famosa rede social de compartilhamento de fotos e vídeos usando um filtro de boné azul com o “M” estampado enquanto eu escrevia esse texto (e, sim, ele é do Rio de Janeiro). É provável que os evangélicos de extrema direita tenham continuado com Marçal menos porque são evangélicos do que por serem de extrema direita. O que esse rapaz tem a dizer sobre isso? É preciso chegar mais perto.

E aí poderemos entender como um conservadorismo moral se liga na prática, na vida real, a uma ética do empreendedorismo, a um punitivismo armamentista, a um desapreço pelo Estado e a uma propensão a confiar mais nas notícias que chegam pelo whatsapp do que na grande mídia. Só que isso, no cotidiano das pessoas, registrando as articulações que elas próprias fazem neste emaranhado de valores, e não a partir de conjecturas cuja serventia está apenas em nos fazer afundar na perplexidade e a cada eleição a repetir “os evangélicos…”. 

Cleonardo Mauricio Junior é antropólogo, pesquisador de Pós-Doutorado no Museu Nacional e autor da tese “Como os evangélicos discutem política? A constituição do crente-cidadão entre os jovens universitários da igreja de Silas Malafaia”.