Os dados utilizados neste artigo podem ser encontrados aqui.

Em setembro de 2019, a deputada federal Bia Kicis (PSL/DF) apresentou à Câmara dos Deputados um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) que tinha como objetivo implementar o voto impresso em eleições, plebiscitos e referendos no Brasil. A PEC 135/2019 estava em harmonia com a pauta defendida por Jair Bolsonaro desde seu mandato como deputado federal, quando defendeu uma emenda à reforma política votada em 2015 que adicionou a obrigatoriedade de impressão do voto depositado pelo eleitor na urna eletrônica.  

Naquele momento, com o desgaste sofrido pelo governo Dilma e toda a instabilidade política vigente, o voto impresso foi aprovado como emenda pela Câmara dos Deputados. Foram 433 votos a favor, em junho de 2015, e 368 a favor em novembro, quando da análise dos vetos da presidenta Dilma Rousseff. Ela havia vetado a proposta por entender que aumentaria de forma considerável os gastos para a realização de eleições. A proposta seguiu para o Senado, onde foi desmembrada e arquivada em definitivo, tendo sido votada apenas outra parte do projeto. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a norma inconstitucional, após ter sido provocado pela Procuradora-Geral da República Raquel Dodge, que apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) na tentativa de barrar o voto impresso.

Desde então, questionar a segurança das urnas eletrônicas se tornou uma das principais pautas políticas de Bolsonaro. Seu argumento é de que a mudança no processo eleitoral permitiria a verificação e recontagem dos votos depositados na urna eletrônica. No entanto, como frequentemente demonstrado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a urna é inviolável. As recorrentes tentativas de invasão das urnas por cientistas da computação e hackers nunca tiveram sucesso. Três aspectos da urna são fundamentais para confirmar sua segurança: a utilização de um sistema Linux, de código-aberto, que garante a confiabilidade e segurança no software; a sua falta de conectividade com a internet e bluetooth, que impede invasões remotas; e a impressão da “zerésima” no dia da votação, comprovando que não existem votos pré-armazenados na urna. 

Em 2021, a PEC do voto impresso teve menos sucesso na Câmara do que em 2015: foram 229 deputados a favor, 218 contra e 1 abstenção. Para ser aprovada, uma PEC precisa de 308 votos, cerca de 60% da composição da Câmara, que é de 513 deputados. Mesmo após a derrota da proposta na Câmara, Bolsonaro continuou defendendo o voto impresso, com o apoio de parlamentares governistas.

Veja abaixo como votou cada um dos deputados signatários das Frentes Parlamentares com identidade religiosa monitoradas pelo ISER. A definição de cada uma delas e uma explicação mais detalhada sobre como se articulam foram realizadas na pesquisa “Monitoramento das Frentes Parlamentares com identidade religiosa no Congresso Nacional (2019-2022) e podem ser consultadas neste link.

*Legenda: FPC: Frente Parlamentar Católica / FPE: Frente Parlamentar Evangélica / FPMA: Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana

Dos 449 parlamentares presentes na votação, 319 pertenciam a pelo menos uma das frentes com identidade religiosa, isto é, a Frente Parlamentar Católica, a Frente Parlamentar Evangélica e a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Vale lembrar, no entanto, que um mesmo deputado pode ser signatário de uma, duas e até das três frentes. Entre os deputados que integram a Frente Parlamentar Católica, 100 votaram a favor do voto impresso e 64 foram contrários à matéria. Na Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, 107 rejeitaram a adoção do voto impresso, enquanto 67 se manifestaram a favor. Chama a atenção os números da votação referente aos deputados que integram a Frente Parlamentar Evangélica: 120 se posicionaram a favor do voto impresso, e 39 foram contra. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP – AL), apesar de pertencer à FPE, não vota.

Em relação ao pertencimento religioso dos deputados que integram as Frentes Parlamentares com identidade religiosa, deputados identificados como evangélicos foram os que mais apoiaram a votação do voto impresso:  72 votaram a favor do projeto, enquanto apenas 8 votaram contra. Entre os católicos,  100 votaram contra a adoção da impressão do voto e 90 votaram a favor. Dos deputados que se identificam como cristãos, cinco foram a favor e sete contra, enquanto 18 parlamentares que não possuem identidade religiosa identificada votaram contra a matéria e dois votaram a favor. Esses dados podem ser verificados no gráfico abaixo, que consolida as informações acerca da votação dos parlamentares:

Na distribuição partidária, observando-se os 447 votos, podemos perceber que a votação foi, de certa forma, dividida internamente nos partidos. Importa ressaltar que foram removidos do cálculo os deputados Aécio Neves (PSDB-MG), pela abstenção na votação, e Arthur Lira (PP-AL), por ser o presidente da Câmara e não votar, mantendo-se apenas os parlamentares que efetivamente votaram “sim” ou “não” em relação ao projeto. Dentre os que votaram contra a matéria, somente o PT, o PSOL, a REDE e o PCdoB votaram de forma coesa. Dentre os que concordaram e desejavam a impressão do voto, somente o PSC votou de forma unânime. O próprio PSL, partido da autora da PEC, não decidiu de forma unânime: foram seis deputados contra e 45 a favor.

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Alterações no sistema eleitoral

Outro retrocesso proposto pelo governo Bolsonaro, que também afeta as eleições, é a tentativa de alterar o sistema eleitoral. Vigente no Brasil desde a Constituição de 1988, o sistema proporcional de lista aberta funciona da seguinte forma: o eleitor, ao votar em um candidato ao legislativo, na prática está oferecendo “dois votos”, um para o partido e outro para o candidato. Primeiramente, é calculado o quociente eleitoral, que é o total de votos válidos sobre o número de cadeiras em disputa. Em seguida, os votos de todos os candidatos de um determinado partido são somados e o resultado é dividido pelo quociente eleitoral anteriormente calculado. O valor obtido determina o número de cadeiras que aquele partido receberá no Legislativo. 

Por conta disso, o sistema é considerado proporcional, ou seja, ele é proporcionalmente dividido entre os partidos de acordo com a quantidade de votos recebidos por cada um deles. Já as cadeiras são distribuídas aos candidatos daquele partido que obtiverem melhor desempenho, ou seja, mais votos, naquela eleição. Assim, é considerado um sistema “de lista aberta”: o eleitor decide a ordem da lista ao votar em um candidato. A variante desse sistema é o sistema proporcional de lista fechada, na qual a ordem de candidatos a ocupar as cadeiras é definida pelas lideranças partidárias. Países como Argentina, Rússia e Portugal utilizam o sistema de lista fechada, enquanto Suécia, Finlândia e Suíça utilizam a lista aberta, além do Brasil.

A PEC 125/2011, de autoria do deputado Carlos Sampaio (PSDB/SP), buscava, originalmente, apenas impedir a realização de eleições em datas próximas aos feriados nacionais. Contudo, durante a fase de análise na Comissão Especial destinada a apreciação da matéria, o projeto foi emendado e se tornou uma mini-reforma, de modo que passou a tratar, também, sobre alteração do sistema eleitoral, coligações, fundo partidário e outros assuntos adjacentes. Em especial, a mudança do sistema eleitoral previa a adoção do sistema de voto único não-transferível (em inglês, Single Non-Transferable Vote, SNTV), comumente chamado de Distritão. Nesse sistema, os estados da federação e o Distrito Federal seriam as circunscrições ou distritos eleitorais, e os deputados mais votados, independente da proporcionalidade em relação ao partido, seriam eleitos. 

A fórmula do SNTV parece atrativa, à primeira vista, por conta da principal questão colocada como um problema no sistema proporcional de lista aberta: quem tem maior número de votos é efetivamente eleito. Isso impediria, por exemplo, que um candidato com muitos votos não alcance uma cadeira na Câmara dos Deputados, como pode ocorrer em sistemas proporcionais, enquanto candidatos com poucos votos sejam “puxados”. Todavia, diversos outros problemas podem ser apontados no distritão:

  • Tira o foco dos partidos e o direciona para os candidatos, o que poderia fragmentar ainda mais o Legislativo, enfraquecer o sistema partidário e, por sua vez, a democracia.
  • O desperdício de votos, que levaria partidos com uma votação expressiva a não terem candidatos eleitos. Isso acontece devido ao fato deles não se posicionarem acima na lista geral. No sistema proporcional, ainda que o voto em um candidato não o eleja, ele é contabilizado para o partido e garante a eleição de um correligionário que, em tese, possui pontos em comum com outros do mesmo partido;
  • Possível foco dos partidos em candidatos já consolidados na arena política e também celebridades, que teriam mais facilidade de angariar votos, o que diminuiria a renovação da Câmara e dificultaria o acesso à vida política;
  • Aumenta a competição da eleição, já que todos os candidatos competem entre si, e não mais entre os do próprio partido. Isso pode levar a uma desigualdade maior entre candidatos com maiores fontes de financiamento e os que possuem menos dinheiro para campanha;

Em resumo, a adoção do Distritão poderia aprofundar desigualdades já existentes no nosso sistema eleitoral e que não seriam resolvidas a partir da mudança da fórmula, além de também causar entraves à democracia e à representação. Na tabela abaixo, podemos observar como cada um dos deputados de cada uma das frentes religiosas votou em relação ao Distritão:

*Legenda: FPC: Frente Parlamentar Católica / FPE: Frente Parlamentar Evangélica / FPMA: Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana

Dos 463 deputados que participaram da votação, 324 estão vinculados a pelo menos uma das frentes parlamentares com identidade religiosa, excluindo os que se abstiveram e o próprio presidente da Câmara, Deputado Arthur Lira (PP – AL). Dos parlamentares que pertencem à FPC, 152 se posicionaram contra o Distritão e 17 a favor, havendo 3 abstenções. Dos pertencentes à FPMA, 176 deputados foram contra o projeto, enquanto 9 foram a favor e apenas 1 se absteve. Na Frente Parlamentar Evangélica, 141 deputados preferiram manter o sistema proporcional de lista aberta e 21 votaram pela adoção do Distritão. 

Dos deputados signatários das Frentes Parlamentares com identidade religiosa cujo  pertencimento religioso foi identificado pelo ISER, pudemos contabilizar: entre católicos, 17 foram favoráveis à mudança do sistema eleitoral e 180 se posicionaram contra. Os evangélicos são o segundo grupo mais numeroso, cuja maioria de 68 parlamentares preferiu manter o sistema como está. Apenas dez votaram pela mudança. Considerando os deputados das frentes religiosas, os que se identificam genericamente como cristãos, os espíritas, todos os que que não têm religião,  e os que não tiveram suas identidades religiosas identificadas votaram de forma unânime contra a alteração do sistema proporcional de lista aberta.

No que tange à distribuição partidária na “PEC do Distritão”, o cenário foi bem distinto do observado em relação à “PEC do voto impresso”. Se na última houve uma certa divisão e falta de consenso entre os deputados, o Distritão foi uma decisão quase consensual: a maioria dos parlamentares votou contra a adoção do novo sistema. Foram 423 votos contra, 35 a favor e 4 abstenções.

Como observado no gráfico acima, o único partido que teve uma votação expressiva em prol da matéria foi o PSL, com 17 deputados a favor, enquanto, no mesmo partido, 29 foram contra. Alterações abruptas no sistema eleitoral são raras de serem aprovadas, pois gera um ambiente de insegurança para os próprios parlamentares eleitos. Hoje, já existem incertezas sobre eleição e reeleição dentro de uma fórmula eleitoral que vigora há décadas. Essa incerteza aumentaria ainda mais diante da mudança do sistema: parlamentares tendem a ser conservadores em relação ao status quo no que diz respeito a como os eleitores escolhem seus representantes, pois qualquer mudança pode atrapalhar suas carreiras políticas.

Volta das coligações

Por fim, apesar de constar no mesmo texto-base da PEC que previa a adoção do Distritão, foi votado separadamente o retorno das coligações partidárias. As coligações partidárias no sistema proporcional foram extintas em 2017, passando a valer já nas eleições de 2020, e impediram que os partidos dos candidatos ao cargo de vereador participassem de uma coligação. As coligações funcionavam da mesma forma que um partido, dentro da fórmula eleitoral: o voto dado em um candidato ia também para a coligação, definindo, assim, quantas cadeiras aquela coligação teria direito. 

Com o fim das coligações, os partidos não puderam se unir nas eleições de 2020, o que possuiu um efeito positivo, dado que diversos partidos com pouco ou nenhum alinhamento ideológico se uniam, confundindo o eleitor. O fim das coligações aumentou a competição interpartidária e exigiu que os partidos buscassem melhores formas de mobilizar o eleitor, principalmente através de pautas que estivessem em concordância com sua ideologia ou que englobassem os grupos almejados por eles dentro do eleitorado. 

Com 333 votos a favor e 149 contrários, o destaque pelo retorno das coligações foi aprovado na Câmara em primeiro turno, e no segundo turno, com 347 votos a favor e 145 contra, representando mais um retrocesso do governo atual. A aprovação parece ter sido fruto de uma negociação entre alguns partidos, que rejeitariam o Distritão em troca da possibilidade de se coligar novamente. A matéria segue agora para o Senado, necessitando de 49 senadores a favor para sua aprovação. As duas maiores bancadas do Senado, MDB e PSD, se posicionam contra a medida por entenderem que aumenta a fragmentação partidária, dado que partidos pequenos que, competindo sozinhos não sobreviveriam ao pleito, poderão se manter no Congresso ao se coligarem com partidos maiores.

Matheus Pestana é cientista político, doutorando em Ciência Política (UERJ) e pesquisador no ISER. 

Gabrielle Abreu é historiadora, mestra em História Comparada (UFRJ) e pesquisadora no ISER.

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados