Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 23 set 2024
O Censo de 2022 registrou mais de 580 mil estabelecimentos religiosos no país. A presença da religião, contudo, vem sendo cada vez mais importante não apenas nas ruas, mas também nas urnas. Evangélicos já somam ao menos 31% da população e foram determinantes na eleição de Bolsonaro, em 2018. As mulheres são prevalentes nesse grupo, sendo cerca de 58% (dado de 2020), proporção maior do que na população, na qual são 51,5% (2022). Portanto, pode-se afirmar que o Brasil continua vivenciando, ainda quecom matizes diferentes do que se observou ao longo do século XX, uma indissociação entre política e religião, com impactos diretos e fundamentais para questões de gênero.
O que as mulheres evangélicas pensam, afinal? O que determina seu voto? Quais questões de fato as mobilizam?
Desde 2022, o ISER vem conduzindo a pesquisa Mulheres evangélicas, política e cotidiano, pela qual ouve fiéis deste segmento cristão anualmente. Em 2024, foram 46 entrevistas, quase todas conduzidas em tríades, com participantes agrupadas em mesclas por denominação, classe social, faixa etária (entre 16 e 60 anos) e região do país. As entrevistas ocorreram entre 22 de julho e 07 de agosto, com vistas a mapear a opinião das evangélicas sobre as relações entre igreja e Estado; seu comportamento político; suas percepções sobre economia, meio ambiente e sociedade; como usam as mídias; e o que elas desejam para o futuro.
Algumas das perguntas mais inquietantes que vêm surgindo desde o levante conservador que caracteriza o país nos últimos anos, podem ser facilmente respondidas mediante o que revela essa amostra.
1. As mulheres evangélicas são bolsonaristas?
67% das entrevistadas declaram voto em Bolsonaro em 2022. Das que haviam votado no ex-presidente em 2018, 87% mantiveram o voto nele no último pleito. O apoio foi quase uniforme em todas as idades. Lula não foi o voto preferencial de nenhum dos grupos etários analisados. Bolsonaro é descrito como “doidinho”, “meio sem filtro”, “meio rebelde”, “meio degenerado”, mas, no geral, as avaliações de seu governo são positivas.
Se, lembrando as eleições de 2018, as entrevistadas viam Jair Bolsonaro como representante de uma “nova política”, já em 2024, passados dois anos da última eleição presidencial, elas registram ainda o fato de ele ser de direita, ser menos corrupto do que os demais candidatos e defender princípios cristãos. Os escândalos que marcaram seu governo são reconhecidos, mas minorados. Muitas mulheres atribuem os insucessos do ex-presidente às dificuldades enfrentadas pela pandemia. O indulto dado a ele se justifica ainda por ele ter sido um contraponto à candidatura de Lula.
2. Como as evangélicas avaliam o governo Lula?
67% das participantes da pesquisa dizem que Lula tem feito uma gestão ruim, 15% são indiferentes, sem perceber uma melhora nem uma piora significativa, e 18% avaliam a administração do atual presidente como boa. Ainda assim, entre aquelas que consideram a governança positivamente, há algumas que alegam, por exemplo, que o país está cheio de “altos e baixos”, e que as pequenas melhorias observadas não impactam o cotidiano. Entre as principais reclamações, as entrevistadas mencionam: promessas de campanha não cumpridas e ausência de ações propositivas; taxações, sobretudo concernentes a produtos chineses; aumento da criminalidade; desvalorização do salário-mínimo, deterioração das condições de vida da população; e altos gastos do governo, incluindo viagens excessivas.
3. O aborto ainda está em pauta?
O aborto é certamente um potente mobilizador de opiniões e a defesa de uma posição contrária a ele se constitui como um poderoso ativo político. Trata-se de uma das pautas mais sensíveis para a comunidade evangélica, e não é diferente para as mulheres entrevistadas. Nem todas conhecem os casos previstos por lei, mas foram quase unânimes na aprovação do aborto quando se trata de gravidez decorrente de abuso sexual.
Aproximadamente metade das mulheres aprovam a interrupção da gestação em caso de risco para a vida da mãe ou na existência de feto anencéfalo. Várias alegaram ser favoráveis se houvesse malformação (compreendida de maneira ampla) e um bebê vivesse em estado vegetativo. Porém, 15% das entrevistadas foram desfavoráveis em qualquer circunstância, e 46% se disseram contrárias à interrupção da gravidez após a 22ª semana de gestação.
A categoria “livre-arbítrio” não aparece neste tema, o que evidencia que, nos casos favoráveis, não se trata de liberdade de consciência religiosa em si, mas de uma posição sobre a garantia constitucional da autonomia das mulheres sobre seus corpos.
No tocante a eleições, 72% das evangélicas afirmam que só votariam em candidatos que não são a favor do aborto ou que o fossem apenas nos casos já previstos em lei. Nesse sentido, fica evidente o modo como a elasticidade dos limites legais do ato está diretamente ligado à inclinação futura de votos em pleito.
4. As evangélicas valorizam a política?
60% das pesquisadas dão valor à política e aos processos eleitorais, sendo que a metade passou a dar mais atenção às discussões públicas nos últimos anos, com a eleição e a posterior derrota de Bolsonaro.
Mais de 65% das mulheres fazem buscas na internet e/ou utilizam as redes sociais, sobretudo o Instagram e o WhatsApp, para se informar e acessar conteúdos políticos. Ao menos dez das participantes declaram ter recebido vídeos no WhatsApp durante as eleições de 2022. Cerca da metade têm ciência de que muitos deles eram fake news, por isso, algumas fazem uma checagem sobre a veracidade do material antes de repassarem. Pelo menos 28% assistiram aos debates televisionados. Algumas também dizem que a igreja é fonte de informação e que ajuda a formar consciência crítica a respeito das candidaturas. Menos de 10% apresentam desconfiança nos instrumentos de verificação, alegando que os resultados são manipulados.
Muitas mulheres apresentam sentimentos de descrença, decepção, desilusão e desgosto com a política institucional, entre as razões estão a corrupção e da polarização. Ainda assim, aproximadamente 70% delas afirmam que continuariam votando caso não fosse obrigatório. Embora 15% já tenham anulado o voto alguma vez na vida, esse não é um comportamento típico entre as religiosas. Não há, portanto, apatia ou desengajamento decorrente de pânico moral. Contudo, a expectativa de que o voto seja capaz de mudar a realidade é uma esperança racional, ponderada pela consciência crítica de que se trata de um processo de longo prazo e que não depende apenas de uma ou outra candidatura bem-sucedida.
O acirramento das disputas eleitorais, portanto, pode, sim, ter fomentado a politização de parte das mulheres evangélicas. Porém, é preciso um olhar cauteloso ao se afirmar isso, pois muitas delas relatam que seu interesse recente decorre de terem ficado mais velhas e mais maduras, o que, no caso, de parte importante das entrevistadas, coincide com os últimos pleitos presidenciais polarizados.
5. O que determina o voto evangélico?
Quando perguntadas sobre o que consideravam importante na definição do voto, as entrevistadas apontam uma constelação de fatores, a saber, identidade partidária, comportamento público dos candidatos, preocupações com problemas socioeconômicos, entre outros.
Dois determinantes, entretanto, foram absolutos nas respostas. Em primeiro lugar, os princípios morais, isto é, a maioria das mulheres opta por candidatos pró-vida e pró-família, e que combatam o uso de drogas, o aborto, a homossexualidade e a corrupção. O segundo fator-chave são as propostas. Por exemplo, 50% das mulheres parecem inclinadas a considerar candidaturas de mulheres ou a votar nelas, mas não se trata de um compromisso de gênero; elas submetem essa identidade ao conteúdo das promessas que são feitas. Igualmente o fazem com a identidade religiosa, que, por si só não se mostra suficiente para converter identificação em voto. As evangélicas se colocam como protagonistas da escolha, relatando avaliar o histórico político de candidatos homens e mulheres, bem como sua competência técnica.
6. As mulheres querem um “Brasil do Senhor Jesus”?
As participantes da pesquisa do ISER entendem que educação, saúde e segurança devem ser os focos preferenciais de gastos do dinheiro público. Perguntadas sobre os sonhos para si e para o Brasil, foi muito comum dizerem: “um país melhor”, “um país desenvolvido”, “uma vida digna para todos”, “um futuro melhor para meus filhos”.
As ambições pessoais orbitam, sobretudo, em torno de condições materiais mais favoráveis, incluindo formação superior, sucesso profissional, saúde, viagens, aquisição de bens e independência financeira. Algumas têm vontade de morar fora do país. Uma única participante incluiu o desejo de ter mais intimidade com Deus. A figura do diabo e seu séquito de demônios tampouco foi enfatizada. Ao que tudo indica, a racionalidade espiritual permanece sendo importante entre elas, mas nem sempre é evocada, pois as mulheres lidam com necessidades que também as fazem se mover em direção a outros mecanismos interpretativos da realidade.
Nenhuma das entrevistadas fez menção a um Brasil evangélico. Ao falar sobre os sonhos, em nenhum momento foi citada a liberdade religiosa ou a ameaça a ela. O incômodo das entrevistadas parece ser muito mais com a resistência de grupos e atores sociais ao conservadorismo, este sim, uma permanente moeda sagrada.
7. De que direita estamos falando?
Na semana de redação deste texto, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida foi exonerado do cargo, depois de ser denunciado por importunação e assédio sexual, caso que envolveu também a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco. A demissão se deu na véspera de um ato público convocado por lideranças da extrema direita, no 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, para reinvidicar anistia para os presos pelo ataque às sedes dos Três Poderes (em 8 de janeiro de 2023) e o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, entre outras razões, pela suspensão do X (antigo Twitter).
Na avenida Paulista, estavam diversas figuras, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, o governador do estado Tarcísio de Freitas, o pastor evangélico Silas Malafaia (um dos organizadores do evento), entre outros políticos, como o senador Magno Malta (também evangélico), além dos deputados Nikolas Ferreira e Bia Kicis (com forte apelo às bases evangélica e católica, respectivamente). tivessem manifestado opinião, em mídias sociais, sobre a acusação feita a Almeida, esse não foi um assunto valorizado no ato. A independência celebrada em 7 de setembro foi equiparada ao apelo contra suposta censura, pela liberdade de expressão, no caso, em uma rede social.
A pesquisa do ISER mostrou que as mulheres evangélicas estão preocupadas com a família, com a educação dos filhos, com o abuso sexual infantil, com a falta de segurança física e emocional nos lares (75% das entrevistadas, por medo, não confiam o cuidado das crianças aos homens), com a provisão financeira e com a violência doméstica. Portanto, fica evidente que muitos dos discursos da direita verde e amarela que estampa o alto dos caminhões das passeatas passam longe, quando não se apresentam como um completo devaneio, se comparados aos desafios e às necessidades daquelas que, em boa parte, decidem o futuro das eleições no país.
Nina Rosas é professora do Departamento e da Pós-graduação em Sociologia da UFMG. É coordenadora do grupo de pesquisa REMA – Religião como marcador social, e é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.