Teologias feminista e ecofeminista nas vivências religiosas plurais

Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 25 ago 2025.
Foto: Imagem gerada por inteligência artificial.

Ivone Gerbara

Por Ivone Gerbara

  • 25 ago 2025
  • 7 min de leitura
Teologias feminista e ecofeminista nas vivências religiosas plurais
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As palavras ‘feminismo’ e ‘ecofeminismo’  embora pouco acolhidas na oficialidade das igrejas cristãs foram muitas vezes apropriadas por uma elite de pensadoras e pensadores usando terminologias e explicações que o comum das comunidades cristãs não consegue entender. E, a partir desse limite, faço perguntas: para quem escrevemos? Quem se beneficia dessas novas compreensões teológicas que buscam incluir as mulheres e as crises socioambientais e climáticas? 

Além disso, minhas perguntas guardam a suspeita de que alguns escritos repetem o esquema teológico patriarcal tradicional dualista apenas com um revestimento feminista e ecofeminista. Usa-se linguagem inclusiva, inclui-se a ‘natureza’ na complexidade dos seus biomas, fala-se do respeito à Terra e aos povos originários, porém há como uma reivindicação no mesmo lugar ou um acoplamento no mesmo mundo patriarcal. O núcleo central do cristianismo, ‘o amor ao próximo’, não se abre de fato à diversidade da vida nas teologias fixistas de nossas igrejas marcadas por epistemologias dualistas e metafísicas.

O núcleo do cristianismo parece cada vez mais incompreensível e secundário num mundo de disputas por direitos individuais, por uma compreensão capitalista da posse da terra, de estudos e de benefícios acadêmicos que muitas vezes se maquiam de novidade, porém conservam a mesma estrutura epistemológica. 

A perspectiva feminista e ecofeminista buscada corre o risco de repetir o mesmo modelo capitalista, pois não percebemos ainda que temos que tocar não só as estruturas de sustentação social, mas também as da teologia e as de nossa subjetividade. Mudar as estruturas de sustentação religiosa marcadas pelo dualismo entre a história factual e a metafísica ou entre a história atual e aquilo que se chama tradição bíblica e eclesial é um grande desafio. 

Muitas vezes nos comportamos como se apenas quiséssemos nos incluir na mesma dogmática, na mesma consideração hermenêutica tradicional dos livros bíblicos e encontrar neles sementes de feminismo e de ecofeminismo que justificariam uma opção por uma ética fundada nessas ‘novidades’. Nessa perspectiva nossa preocupação em relação às novidades do presente e seus desafios é apenas acoplada ao que consideramos como fundo filosófico imutável da teologia cristã. Podemos abrir outros rumos? Podemos mudar nossa maneira de sentir/pensar o mundo das religiões?

Ouso pensar por vezes que as estruturas metafísicas dogmáticas da teologia cristã nas suas diferentes vertentes já não nos servem de inspiração libertária. Tentamos por vezes limpar o mofo acumulado pela apropriação de nossas crenças pelos Impérios do mundo e pelas máquinas patriarcais religiosas de fazer dinheiro, mas isso nos parece um caminho bastante distante das reais necessidades das pessoas, sobretudo daquelas que vivem em situação de marginalização social. 

Acresce a isso a espantosa destruição de nosso mundo pelas guerras colonialistas e destruição do planeta em sua diversidade. Por isso, pergunto a mim mesma: qual é o combate  atual que promovo a partir de uma concepção diferente de nossos corpos e do corpo da Terra a partir da chamada tradição cristã? Minha resposta é como um breve suspiro que me chega da observação do mundo, suspiro entrecortado de inseguranças e muitas perguntas.

Hoje, gostaria de usar os livros da Bíblia como alegorias, contos, mitos, narrativas situadas no espaço e no tempo e não mais como ‘Palavra de Deus’. Gostaria de não buscar nelas a legitimação do que precisamos fazer hoje. Gostaria de evitar novas disputas teóricas quase medievais que não conduzem a lugar nenhum. 

Percebo o quanto o Deus da Bíblia tornou-se propriedade privada dos Impérios com fachada religiosa. Da mesma forma Jesus, o artesão revolucionário que vivia com outras e outros numa luta pela justiça desde os fatos da vida cotidiana, foi tornado o Filho único de Deus, ele que não tinha nenhuma pretensão principesca e nem imperial. Essa realeza masculina dominou a Terra e contribuiu para disputas e ganâncias imensas até os dias de hoje. 

A perspectiva ecofeminista não pode entrar nessa lógica representativa masculina e imperial. Por isso, gostaria que a ecologia fosse simplesmente a atenção e a compreensão de que nossa casa comum , nossa ‘oikia’, tem suas leis interconectadas a todas as vidas e essas precisam ser respeitadas para que o planeta continue vivo na diversidade desse corpo do qual nós humanos somos apenas uma expressão.  Mulheres e homens têm seus corpos interdependentes e não podem mais ser hierarquizados. Da mesma forma, o corpo vivo da Terra se mantém na interdependência de todas as suas partes. 

Assim, essa nossa ‘oikia’ deve ser a casa das mulheres, dos homens, dos animais, dos insetos, das florestas e mares pois são eles a Vida Divina, a Vida Misteriosa Interdependente cósmica que torna vivos todos os seres. Os velhos dualismos que separam o divino dos demais seres, a fonte da vida de nós todos, criam e mantêm um mundo bipartido e hierarquias artificiais que comandam o mundo e o dividem em grupos, em raças umas contra as outras, em sexos que se opõem e  se disputam além de outras oposições que se destroem mutuamente.

Então, outra teologia é possível? Talvez tenhamos até que deixar de lado a palavra teologia e falar de vidalogia. Vidalogia como uma palavra inclusiva que pode ao menos nesse momento de nossa História, evitar as metafísicas hierárquicas, aproximar-nos das dores alheias não apenas através de palavras ou expressões gastas porque usadas em demasia como por exemplo ‘opção pelos pobres’ ou ‘opção pelos ecossistemas’ e outras expressões do gênero que não se integram no vocabulário dos pobres e nem do comum das pessoas.

Há um tempo para falar, há um tempo para calar e um tempo para mudar a fala. Ouso dizer que há que começar a calar a nossa verborreia teológica nos meios de comunicação e nas muitas publicações. 

Há que acolher nossa laicidade política e cidadã e buscar simplesmente comunidades pequenas que observem, dialoguem e atuem em favor da manutenção da vida digna. 

Há que parar de difundir os milagres que a religião faz, as cerimônias litúrgicas imperiais, os avanços das conferências e assembleias teológicas nacionais e internacionais. 

Há que quebrar as solidões crescentes, dar-se as mãos e cantar ‘graças à Vida que nos deu tanto’. Há que acolher a diversidade e as contradições. Há que vencer preconceitos e abraçar corpos diversos, acolher sua beleza desafiante que nos revela o pluralismo da ‘casa comum’, da ‘gente comum’, ‘ da vida comum’ sem máscaras, sem medo de ser o que a Vida permitiu que fossemos. 

Temos que dar-nos as mãos como diferentes, acolher-nos como diferentes sem as agremiações em que os diferentes têm que marcar sua diferença para serem aceitos ou aceitas.

Talvez eu esteja propondo uma Vidalogia de sonhos, mas esses sonhos precisam entrar como um renovado Natal ou uma Ressurreição vivida nessa velha ‘oikia’ antes que nossos preconceitos nos bombardeiem e destruam pelo ódio e ganância dos que se julgam donos do lindo planeta azul. Proponho uma volta à Beleza, aos restos de Ternura que nos habitam, à olhar juntas as flores do campo, a limpar o lixo que acumulamos, a torna-lo humus para um novo sonho de convivência, a sermos capazes de partilhar o pão de cada dia e cantar juntas/os ‘nem tudo está perdido, vamos ofertar nosso coração’. 

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