Atualizado em 18/05/2023 às 12h22

Para além de uma estratégia eleitoral: as fake news na pauta dos poderes da República

Parte 2: Ações do Poder Legislativo frente o fenômeno das fake news

A parte 1 deste artigo apresentou uma introdução ao fenômeno sociopolítico e cultural das fake news e reconheceu a importância dos projetos de enfrentamento por parte da sociedade civil, existentes há vários anos e que ganharam mais intensidade, no Brasil, a partir das eleições de 2018.

Em relação ao Estado, foi a partir do processo eleitoral de 2018 que se passou a identificar a desinformação como pauta de ações. Entre as mais destacadas estão a Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPMI) das Fake News na Campanha Eleitoral 2018, o Inquérito do Supremo Tribunal Federal 4781, o denominado Inquérito das Fake News contra membros da Corte, disseminadas por apoiadores do Presidente da República, e o Projeto de Lei do Senado Federal 2630/2020 (Lei das Fake News). Estas ações foram iniciadas em 2019.

Curiosamente, as escassas iniciativas do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) são classificadas como contraofensivas. A vitória do ex-capitão do Exército nas eleições de 2018 é avaliada por analistas políticos, dentro e fora da academia, como beneficiária da disseminação de fake news, e é alvo da CPMI.

As ações do Congresso Nacional

A realização da Audiência Pública “A influência das fake news na sociedade e na liberdade de imprensa”, realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado, em 4 de julho de 2019, indicou que o tema seria pautado por lideranças da Casa na legislatura 2019-2022.  Um ano depois, foi instalada a CPMI das Fake News (4 de setembro de 2020, com validade até 13 de abril de 2020), com o objetivo de apurar suspeitas de disseminação de notícias falsas e ataques pela internet que tenham tido influência sobre o resultado das eleições de 2018. A mesa da CPMI foi formada pelo presidente senador Angelo Coronel (PSD-BA), pelo vice-presidente deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara dos Deputados, e pela relatora senadora Lídice da Mata (PSB-BA). Seguindo o Regimento Comum da Câmara Federal e do Senado, a comissão foi composta por 11 senadores e 11 deputados (os integrantes nomeados pelos partidos e seus suplentes podem ser conhecidos neste link), obedecido o critério da proporcionalidade partidária.

Em 2 de abril foi encaminhada a prorrogação dos trabalhos até 24 de outubro de 2020. Porém, naquele mesmo mês, as atividades foram suspensas por conta das medidas em torno da covid-19, que acabou se tornando objeto de outra CPI do Senado, a CPI da Pandemia, cujo relatório foi aprovado em 26 de outubro de 2021, após seis meses de trabalho.  A previsão é que os trabalhos da CPMI sejam retomados em fevereiro de 2022, na volta do recesso parlamentar. 

Na primeira etapa 2019-2020, foram realizadas diversas oitivas e analisada a documentação colhida com relatórios parciais. Destacam-se os depoimentos dos deputados Joice Hasselmann (PSDB-SP) e Alexandre Frota (PSDB-SP), ex-apoiadores do governo Bolsonaro, que expuseram, por meio de documentos, o funcionamento do chamado “Gabinete do Ódio do Palácio do Planalto”, que seria comandado pelos filhos do presidente da República Carlos Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro. Estas denúncias foram encaminhadas pelo presidente da CPMI à Polícia Federal para investigação.

Outro destaque foi a oitiva com o ex-funcionário da Yacows Hans River, a primeira na volta do recesso parlamentar de 2020. A empresa de marketing digital é investigada por fraudes na campanha eleitoral de 2018. No depoimento, River disse que a repórter da Folha de S. Paulo Patrícia Campos Mello havia se “insinuado” sexualmente para ele com a intenção de obter informações para reportagem, de 2018, que mostrou como empresas bancaram disparos de mensagens no Whatsapp contra o PT durante a campanha eleitoral. River foi processado pela jornalista, bem como o presidente Bolsonaro que fez comentários abusivos sobre o caso, e também o deputado Eduardo Bolsonaro e o dono do canal do Youtube Terça Livre, que expuseram, publicamente, ofensas morais a Mello. 

A Folha de S. Paulo publicou um desmentido do depoimento de River e apresentou prints de conversas entre ele e Mello que não indicavam qualquer indício de insinuação sexual.  Patrícia Mello moveu processos na Justiça contra Hans River, Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Allan dos Santos por danos morais. Os três primeiros foram condenados, mas Santos, hoje foragido por conta do Inquérito do STF, como será descrito a seguir, foi absolvido. 

Destacou-se ainda o relatório de uma das investigações documentais da CPMI, divulgado em 3 de junho de 2020, que tratou de financiamento do governo federal a sites que propagam fake news, por meio da veiculação de anúncios pagos.  As informações obtidas com a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) mostram os canais pelos quais foram publicados anúncios do governo federal. Foi possível comprovar a existência de inserção de publicidade em sites de notícias falsas, incluindo diversos que já estavam sendo monitorados pela CPMI. Destacam-se, por exemplo, os sites Jornal 21 Brasil (84.248 impressões), Imprensa Viva (65.661 impressões), Gospel Prime (44.750), Diário do Brasil (36.551 impressões) e Jornal da Cidade Online (30.508 impressões). O canal de YouTube Terça Livre TV, pertencente a Allan dos Santos, investigado no inquérito das Fake News, integra a lista de veículos que receberam publicidade oficial, com 1.447 impressões. Gospel Prime e Terça Livre são veículos com identidade religiosa, respectivamente, evangélica e católica.

O presidente, senador Angelo Coronel, em entrevista ao jornal O Tempo, disse crer que o foco, na retomada, será diferente. A CPMI pode servir, segundo ele, para receber denúncias de ataques e informações falsas nas eleições de 2022 e encaminhar investigações a respeito. “Como o Brasil vive eleições, podemos servir de anteparo para que não haja disseminação de fake news”, acredita Coronel. Além disso, a previsão é que os trabalhos durem até agosto, às vésperas do início oficial da campanha eleitoral.

Temas como pedofilia, bullying, depreciação de marcas, crimes de injúria e difamação com distribuição de fake news em grupos de mensagens também podem ser incluídos no escopo da comissão, segundo parlamentares ouvidos pelo jornal O Tempo.

Há também a possibilidade de a CPMI incorporar investigações da CPI da Covid relacionadas a fake news, cujo relatório final pediu o indiciamento de 26 pessoas pelo delito de “incitação ao crime” por disseminar notícias falsas. Entre elas estão o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o ministro do Trabalho e Previdência Onyx Lorenzoni, mais deputados federais, empresários e blogueiros apoiadores do governo federal. Estima-se que os dados que constam no parecer da CPI sejam compartilhados com a CPMI. A CPMI das Fake News já havia atuado em colaboração com a CPI da Pandemia, a partir do compartilhamento de dados e informações da primeira sobre possíveis crimes relativos à crise sanitária. Houve ainda colaboração técnica com a CPI da Pandemia para apurar a existência de uma ação coordenada, quais seriam seus integrantes, sua organização e seu modo de atuação em relação à covid-19. 

Desde que foi instalada, a CPMI é criticada por governistas, que acusam o colegiado de promover uma espécie de “terceiro turno” das eleições de 2018. O deputado Eduardo Bolsonaro chegou a entrar com liminar no STF em abril de 2020 para evitar a prorrogação dos trabalhos da comissão e tornar inválidas duas reuniões realizadas em dezembro de 2019, entre elas a que teve o depoimento da deputada Joice Hasselmann. O ministro do STF Gilmar Mendes deu parecer desfavorável à liminar.

O Projeto de Lei das Fake News

De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o PL 2.630, apresentado em maio de 2020, institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, também denominado ‘Lei das Fake News”. De forma geral, o PL pretende estabelecer um regime de responsabilização das plataformas, as quais são divididas pelo PL em mídias sociais e serviços de mensageria privada.

O PL, redigido em parceria de Vieira com os deputados Tabata Amaral (PSB-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), teve relatoria do presidente da CPMI das Fake News, o senador Angelo Coronel (PSD-BA), e votação prevista para o mês seguinte. Porém, o processo de aprovação, estabelecido em plena pandemia de covid-19, foi marcado pela falta de consenso. Tanto políticos e grupos alinhados ao governo federal quanto organizações de direito digital que formam a Coalizão Direitos na Rede (CDR, que reúne 38 organizações de pesquisa e defesa de direitos digitais, da liberdade de expressão e direitos do consumido) viram risco de redução da liberdade de expressão com a aprovação da primeira versão do relatório apresentada no início de junho.

A avaliação era que o texto de Coronel era muito diferente do conteúdo que vinha sendo amplamente debatido, mesmo com o curto prazo. Novos artigos que alteravam bastante a proposta original, estabeleciam vários procedimentos de controle e monitoramento dos usuários. Este ponto levou a CDR a apelidar o projeto de “PL Black Mirror”, remetendo à série que aborda um futuro tecnológico distópico e opressor. Analistas e os próprios autores do PL classificaram o relatório como “bizarro e amador”, criticando o fato de a proposta original não prever censura pois não determinava exclusão de conteúdo. 

Outro ponto do debate foi a definição de desinformação e como isso deve ser moderado. A controvérsia ficou em torno da transferência de poder a plataformas de checagem independentes que definiriam o que pode ou não ser considerado verdadeiro. 

O texto final, a quarta versão redigida pelo relator, com 42 artigos com novas regras para as mídias sociais, aplicativos de mensagem e provedores de busca, além de tratar do comportamento de usuários, foi aprovado com 44 votos favoráveis e 32 votos contrários, e seguiu para a Câmara dos Deputados. Foram apreciados oito destaques (propostas de alteração da lei, segundo o regimento do Senado), que foram todos rejeitados. 

A versão aprovada eliminou o ponto polêmico de exigência de documentos de identificação para abrir contas em mídias sociais e outros elementos nocivos aos direitos de usuários de internet. No entanto, segundo nota pública do CDR após a aprovação, o texto que tramita agora na Câmara Federal ainda contém graves e preocupantes prejuízos aos cidadãos e cidadãs, 

Um grupo de trabalho da Câmara apreciou o PL e concluiu a votação da matéria, em 7 de dezembro de 2021, tendo como relator o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).  A expectativa do grupo é que seja aprovada a urgência da pauta para que o PL possa ser analisado diretamente em plenário. Depois de passar pela Câmara, o PL voltará a ser analisado pelo Senado.

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Colaboradora do ISER.

Foto: Pixabay

Leia as partes 1 e 3 da série: O fenômeno da desinformação – uma introdução e “Ações dos Poderes Judiciário e Executivo frente o fenômeno das Fake News”.

Referência

INTERVOZES. Desinformação: Crise Política e Saídas Democráticas para as Fake News. https://veneta.com.br/produto/desinformacao-crise-politica-e-saidas-democraticas-para-as-fake-news-epub/ 

Saiba mais:

CUNHA, Magali. Porque grupos religiosos se tornaram alvo na propagação de desinformação? NEXO Políticas Públicas, 2023.