Seria o pentecostalismo uma resposta à aflição popular?

Imagem gerada por inteligência artificial.

Simony dos Anjos

Por Simony dos Anjos

  • 17 jul 2025
  • 11 min de leitura
Seria o pentecostalismo uma resposta à aflição popular?
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No último 6 de junho, o Instituto  Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados demográficos sobre religião coletados no Censo de 2022. Embora ainda sejam maioria no Brasil, os católicos continuam em queda – mesmo que em menor velocidade; evangélicos crescem de forma mais tímida; as religiões de afro-brasileiras triplicaram em número de declarantes e o número dos autodeclarados sem religião aumentou e chega a quase 10%.  No que diz respeito ao número de evangélicos, alguns apostam que o fato das campanhas políticas terem sido feitas expressivamente dentro dos templos religiosos, possa ter desacelerado o crescimento. 

Entretanto, mesmo que com uma queda de cerca de 4% em seu crescimento, ainda é evidente que as camadas populares são parte significativa do rebanho evangélico brasileiro. Estamos às vésperas do ano eleitoral e o mapeamento dos votos por segmento é base fundamental das campanhas. É preciso conhecer o eleitor, para, então, conquistá-lo. Nos últimos pleitos, apostou-se que o conservadorismo era o principal motivo para que evangélicos aderissem aos candidatos de direita, para mim, um erro. 

Mesmo antes da publicação dos dados, o alto número de abstenção nas últimas eleições mostra, na minha avaliação, que a polarização política não atingiu todas as camadas da população e, ainda mais,  não se pode acreditar que as pessoas aderem a uma religião por conta, apenas, dos seus pensamentos políticos. Minha perspectiva é que não se pode avaliar um segmento populacional, qual seja, a partir de uma única característica. Os dados obtidos a partir de uma só categoria podem nos enganar. 

No caso, não se pode analisar um eleitorado apenas por ser “evangélico”. Por outro lado, não se pode acreditar que todos os evangélicos têm o mesmo perfil, pois há diversidade dentro das religiões. A pergunta que temos que fazer é: como o segmento evangélico tem alcançado uma diversidade populacional, sobretudo nas camadas populares? 

Para a esquerda seria interessante pensar que a categoria família não deve ser vista apenas como um elemento moral, pois é referência de agenciamento político. E, a partir dela, podemos pensar como se comporta a adesão das camadas populares ao segmento. Afinal, porque os programas políticos elaborados com foco no povo, a partir das demandas sociais como moradia, cultura, educação e saúde, não o atraem? 

Nos anos 1980, John Burdick (1959-2020), um antropólogo engajado politicamente e dedicado aos estudos dos movimentos sociais, se debruçou sobre a religião cristã nas camadas populares do Rio de Janeiro. Ele começou pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), núcleos de articulação e popularização da Teologia da Libertação, especificamente em uma situada na comunidade São Jorge, em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). Na reflexão, Burdick diz que não se deve olhar com um monóculo para um grupo religioso, a análise, para ser mais efetiva, deve ser relacional. Metodologicamente, o pesquisador optou por analisar a CEB da comunidade São Jorge em relação às igrejas pentecostais e aos terreiros de umbanda – grupos que estavam, evidentemente, em ascensão no território. 

Ao perceber que, numericamente, a CEB era muito inferior do que pentecostais e umbandistas, o antropólogo estabeleceu o paradoxo numérico cujo ponto de partida era: porque a igreja que é feita para o povo, não atrai o povo que se propõe a pensar? É dele que deriva o paradoxo político, que reflete o porquê destas pessoas não estarem na “igreja do povo”. O resultado do estudo está na obra Procurando Deus no Brasil: A Igreja católica progressista na arena das religiões urbanas brasileiras (Rio de Janeiro: Mauad, 1998).

Politicamente as CEBs eram masculinas, brancas e escolarizadas. O grupo social mais atraído por elas era o de trabalhadores com alguma estabilidade financeira e com ligação ao movimento organizado. Embora as narrativas versassem sobre as necessidades dos pobres – casa, comida, saúde, educação etc. – o povo não se aproximava desse enredo político-religioso. 

Por outro lado, Burdick constatou a presença de jovens, pessoas negras e mulheres nas igrejas pentecostais e nos terreiros de umbanda. O autor diz que, ao conversar com essas pessoas, percebeu que as CEBs não davam conta do ordinário da vida. Os problemas domésticos, o racismo e as demandas da juventude. 

É interessante refletir, que quando analisamos os dados referentes ao declínio numérico da Igreja Católica, podemos observar que o número de freiras vem caindo, ao passo que o número de padres aumentou. Em outras palavras, a capacidade de atrair novos membros não está totalmente nas mãos dos padres. Quem sempre fez o trabalho de ação social, de catequese e de acolhimento são as freiras e, com a diminuição dessas religiosas, o trabalho proselitista tem sido menos efetivo.

Evidentemente esta não pode ser a única explicação da queda do número de católicos no Brasil, mas este dado, especificamente, conversa com os dados que Burdick coletou em campo. Burdick constatou que o discurso político-religioso das CEBs não dialogava com as aflições cotidianas, o desemprego, os conflitos domésticos, a necessidade de se casar, conseguir um emprego, dentre outras vicissitudes humanas. Para o autor, influenciado pelo artigo de  Peter Fry e  Gary Howe, intitulado  Duas Respostas à Aflição: Umbanda e Pentecostalismo (Debate & Crítica, n. 6 Julho 1975), os cultos pentecostais e os terreiros de umbanda davam uma resposta às aflições cotidianas, encontrando no outro (espíritos maus ou demônios) a causa de problemas sociais que não eram causados por ações individuais, como a miséria. 

Era possível, nesses espaços, encontrar ferramentas que explicavam as dificuldades triviais, ao passo que podiam ser utilizadas para enfrentar as aflições. Neste sentido, Burdick denominou os cultos pentecostais e da umbanda de culto da aflição, que ele entende por um culto onde o sobrenatural é uma ferramenta para enfrentar as violações sociais diárias às quais as populações vulnerabilizadas da comunidade de São Jorge estavam submetidas. 

No capítulo que o pesquisador se dedica a investigar as mulheres casadas católicas e evangélicas do bairro, constatou por entrevistas que essas mulheres acreditavam que as CEBs não davam um bom suporte ou conforto para situações de conflitos domésticos e familiares. A vida cotidiana doméstica não era um assunto recorrente nos encontros daquelas comunidades católicas. O autor afirma que o catolicismo progressista mantém uma concepção que privilegia o espaço público (mito masculino da política), em detrimento do espaço doméstico, no qual se movem as mulheres casadas.

Nesta análise comparada, Burdick defende o modelo das arenas religiosas, no qual seria possível visualizar e buscar compreender os paradoxos que ele havia identificado. O povo não estava nas CEBs, mas estava nos cultos, onde poderiam protagonizar algum controle nos rumos de suas vidas por meio dos rituais religiosos. A partir desta reflexão, para entender a aderência das camadas populares ao (neo)pentecostalismo,  a pergunta não deveria ser: porque  as camadas populares aderem ao fundamentalismo?, mas sim: porque elas não aderem às [nossas] ideias progressistas?

Burdick sugere quatro pistas para entendermos essa não aderência do povo à “igreja do povo”: (a) da perspectiva socioeconômica, o pentecostalismo acomoda maior variedade sociomaterial; (b) do ponto de vista das relações, é difícil resolver problemas domésticos no meio do catolicismo progressistas; (c) em relação à juventude, tanto o pentecostalismo, quanto a umbanda, são uma resposta para as angústias de uma vida sem direitos e perspectivas; (d) as CEBS não conseguiram criar um discurso efetivo contra o racismo – denunciar o racismo não basta, a pessoa negra precisa se sentir integrada. 

 Quanto ao ponto do racismo, mesmo com as ambiguidades do “todos são iguais perante Deus”, que apaga a negritude dos fiéis para que sejam integrados ao corpo religioso, no pentecostalismo, a pessoa negra tinha um lugar à mesa para falar de seus problemas, por meio de testemunhos, orações públicas e pedidos de oração. Isto, nas CEBs, não era compreendido dessa maneira pelas pessoas negras. 

Evidentemente, o trabalho de Burdick é um trabalho de seu tempo, os anos 1980, quando a onda (neo)pentecostal estava em seu início, e as relações com a política institucional estavam em outro patamar. Contudo, há um ponto fulcral na argumentação do antropólogo: o sucesso do pentecostalismo não estaria no discurso conservador, na defesa de uma família abstrata, ou no reacionarismo. Ele estaria na capacidade de acomodar as mais variadas camadas sociais e marcadores sociais da diferença. As mulheres tinham os círculos de oração, os jovens os grupos de música, os homens tinham seus ministérios. 

A agência das mulheres nesses espaços eram possibilitadas e fundamentais para o crescimento desses espaços. A lógica salvacionista não era humana, não eram homens emancipando outros homens, como na lógica da luta social. A lógica salvacionista era o protagonismo destas pessoas ao alcançarem o sagrado por suas próprias ações religiosas. 

Por fim, Burdick conclui que a caracterização dos pentecostais como apáticos ou alienados é um equívoco metodológico. Por conta do discurso conservador do pentecostalismo, pensam que os sujeitos pentecostais estão apenas reproduzindo uma lógica que não lhes pertence e nem por eles é construída. O pesquisador discorda e eu também. Há de se pensar que no chão das igrejas pentecostais, as pessoas estão agenciando a fé o tempo todo. Estão criando novas leituras da espiritualidade, resolvendo novos conflitos pessoais e coletivos.  Para Burdick: “Muitos se ressentem de terem seu sofrimento atribuído à sua própria omissão em lutar, eles sentem que já lutam o bastante  e preferem regalar-se num pouco de intervenção divina”.

Concluo essa pequena reflexão com dois exemplos de mulheres negras que escapam ao senso comum do pentecostalismo: a pastora Sandra Alves, hoje vereadora no município de São Paulo pelo União Brasil que, em sua biografia de apresentação no site da Câmara Municipal de São Paulo diz: “Como mulher preta e mãe solo, garantiu todo o apoio financeiro e emocional à sua família”. Ou seja, Sandra Alves não representa a família tradicional brasileira, ela não está nos padrões de “propaganda de margarina”,  mas comunica o que significa “defender a família” para a maioria das mulheres em situação de vulnerabilidade: garantir o sustento e o cuidado da família. 

O segundo exemplo é a Neia do Surdo, carioca e, segundo ela, nascida do ventre de um mendiga. Neia do Surdo faz o fogo descer nos cultos da Assembleia de Deus do Rhema, em Mesquita, na Baixada Fluminense (RJ). Com seu surdo canta corinhos de fogo com energia, devoção e samba. Ela tem uma trajetória de superação, e ao louvar a Deus com samba, ao invés de ser “uma mulher bela, recatada e do lar”, ela se conecta com mulheres que precisam enfrentar lutas diárias e tem na fé um dispositivo de humanização e conforto. A direita carioca já está de olho nela.

Precisamos entender os modos como essas mulheres agenciam discurso de defesa [concreta] da família, de fé, de superação de violações cotidianas, de modo que seus corpos e manifestações culturais caibam neste cristianismo. A capacidade de acomodação social desses espaços e como as pessoas performam espiritualidade em respostas às agruras da vida é um caminho necessário para entendermos o porquê do  pentecostalismo ser uma possível resposta à aflição popular.

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