O ativismo de mulheres católicas tradicionais nas mídias digitais

Por Jaqueline Sant’ana Martins dos Santos
- 08 jul 2025
- 5 min de leitura

Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Uma versão deste texto foi originalmente publicada no Nexo Políticas Públicas em 06 jun 2025.
Ao longo da história, religião e política sempre andaram de mãos dadas. A despeito de antigas teorias sobre a secularização do Ocidente, vivemos um contexto sociocultural em que a moralidade religiosa conservadora mobiliza atores sociais que se engajam em um acirrado jogo de forças políticas.
Pesquisar este segmento católico que se reconhece como “tradicional” ou tradicionalista por mobilizar a ideia de uma vinculação mais fidedigna à doutrina da Igreja a partir da defesa das normativas pastorais e litúrgicas que antecedem as resoluções do Concílio Vaticano II (1961-1965), é parte de um esforço intelectual e científico. Por meio dele, busca-se jogar luzes sobre disputas, recuos e resistências de um segmento que nunca deixou de atuar politicamente e incidir sobre a vida pública do país, a despeito do bem mapeado avanço do protestantismo na sociedade brasileira ao longo das últimas décadas.
Minha pesquisa de doutorado se dedicou a analisar a prática da “modéstia cristã no vestir” a partir do catolicismo tradicional. Um dos principais valores que estruturam essa prática, conforme foi possível identificar a partir de uma pesquisa qualitativa realizada entre 2017 e 2023, é o antifeminismo, que integra um ativismo amplo e difuso contra tudo o que é considerado “anticristão”. Ele se manifesta por meio dos chamados “apostolados”, movimentos organizados por católicos leigos (i.e., não ordenados por uma instituição religiosa) com o objetivo de atrair pessoas para a fé e divulgar a palavra de Deus, evangelizando através de exemplos e testemunhos.
Os sites e blogs apresentados no artigo são parte desses apostolados, reunindo ilustrações, textos, relatos pessoais e amplo acervo documental da Igreja que embasa os discursos promovidos por essas mulheres, que se identificam como mulheres católicas tradicionais, mães e donas de casa.
Em suas próprias palavras, elas são “femininas, e não feministas”, e buscam divulgar seus valores e crenças nestes espaços virtuais, promovendo os valores da “família tradicional” heteronormativa e nuclear, da harmonia doméstica, da maternidade e da feminilidade. Eles são colocados diante de um mundo visto como vivendo um colapso frente ao avanço do secularismo e da imposição de uma “ideologia de gênero” promovida por defensores de direitos sexuais e reprodutivos, ativistas LGBTQ+ e feministas, segundo sua retórica antigênero (Junqueira, 2018).
Avalio a atuação on-line dessas mulheres autodeclaradas “antifeministas” e “conservadoras” como potente. Elas mobilizam suas experiências enquanto filhas, mães e esposas como dispositivos de autoridade e mobilização emocional. Longe de buscarem uma possível ressignificação ou mudança no modo como as instituições religiosas se estruturam a fim de atuarem internamente, elas pleiteiam o reforço de uma estrutura hierárquica e excludente na Igreja ao mesmo tempo que criam espaços virtuais próprios que garantem uma visibilidade inédita para si.
Compreendemos esse engajamento como parte integrante de um “contramovimento” (Alonso, 2009), ou seja, uma organização de forma contrária aos avanços de determinados grupos sociais. Ela se dá a partir de mobilizações reacionárias na luta contra o secularismo, demandas de movimentos feministas e de minorias sexuais, o avanço de direitos sexuais e reprodutivos, entre outras.
O ativismo de mulheres identificadas com a prática da modéstia ocupa um lugar paradoxal no pensamento político feminista. Afinal, trata-se de uma mobilização que busca aperfeiçoar a fé e aprofundar conhecimentos sobre uma doutrina religiosa e que acaba criando fissuras em um campo historicamente dominado por homens. Essa postura, em grande parte, só se tornou possível graças à maior mobilidade feminina facultada pelo acesso à educação. Nesse sentido, cabe destacar que todas as autoras dos sites e blogs pesquisados têm ensino superior completo.
Ainda assim, elas defendem e promovem “uma tradição discursiva que olha para a subordinação a uma vontade transcendente (e, em consequência, em muitas circunstâncias, a autoridade masculina) como seu grande objetivo” (Mahmood, 2005:124).
No artigo “Femininas, modestas e antifeministas: o ativismo on-line de mulheres católicas tradicionais” aprofundo esta temática. Ele foi publicado em Religiao & Sociedade, do ISER, uma revista científica voltada para os estudos sobre a religião e integra um dossiê temático sobre as fronteiras do religioso e as mídias digitais. É um entroncamento atualíssimo, que permeia a construção de subjetividades, a relação público e privado, as disputas em torno de regimes de verdade, a mobilização de valores morais no engajamento de pautas políticas e a instrumentalização da fé, entre outros temas.
Desta forma, considero que esta abordagem extrapola o interesse de um público acadêmico focado na temática religiosa. Ela pode ser apreciada por todas as pessoas interessadas em conhecer os conflitos e disputas ideológicas que vêm movimentando a vida pública nacional recente. Também pode ter a atenção de integrantes de movimentos sociais e ativistas que queiram compreender de forma mais aprofundada os discursos e os valores mobilizados pelo campo conservador.
Referências
Alonso, Angela. (2009), “As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate”. Lua Nova, nº 76: 49-86.
Hine, Christine. (2020), “A internet 3E: uma internet incorporada, corporificada e cotidiana”. Cadernos de Campo, vol. 29, nº 2.
Junqueira, Rogério. (2018), “A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero”. Psicologia Política, vol. 18, nº 43: 449-502.
Mahmood, Saba. (2005), Politics of piety: the Islamic revival and the feminist subject Princeton: Princeton University Press.
Rocha, Camila. (2020), “Cristianismo ou conservadorismo? O caso do movimento antiaborto no Brasil”. TOMO, nº 36: 43-78.
Como citar
SANTOS, Jaqueline Sant’ana Martins dos. "O ativismo de mulheres católicas tradicionais nas mídias digitais". Disponível em: . Acesso em: .
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