Religião e política no extremo sul do Brasil: 

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Erico Carvalho

Por Erico Carvalho

  • 15 jul 2025
  • 10 min de leitura
Religião e política no extremo sul do Brasil: 
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O fenômeno da super participação afrorreligiosa nas eleições municipais em Porto Alegre (RS)

A presença de agentes religiosos na quantidade de candidatos nos processos eleitorais brasileiros é uma constante ao menos desde a década de 1980, tomando força na década de 1990 e se concretizando como nicho político a partir dos 2000. Isto se deu devido à grande participação dos segmentos evangélicos fundamentalistas que transformaram em pauta política sua moralidade e proselitismo religioso. Estes grupos, tomaram, nesse momento, religiosidades minoritárias como inimigo preferencial, em especial, os cultos de matrizes africanas, em uma sorte de “guerra espiritual” pela alma dos brasileiros (Almeida, 2009). Porém, estes cultos não demoraram em buscar meios legais, midiáticos e políticos como forma de autodefesa.

Neste sentido, a participação afrorreligiosa nos processos eleitorais teve como principal justificativa a necessidade de defender-se desses ataques. Constituiu-se, assim, uma estratégia de luta contra o racismo religioso e a busca de seus direitos, o que se deu não apenas no apoio a candidaturas externas a comunidades de terreiro, mas também no lançamento de seus próprios candidatos. 

Porém, ao contrário do que se poderia esperar, não foi na Bahia ou no Rio de Janeiro, estados onde a cultura negra marca a identidade local, onde esta dinâmica assumiu maior intensidade: foi, sim, no Rio Grande do Sul, mais precisamente em sua capital Porto Alegre. Isto pode ser visto, no mínimo, como um paradoxo, uma vez que este estado construiu sua autoimagem na valorização da população europeia e na invisibilização da população negra e índigena. É uma evidente expressão de racismo cultural e institucional até hoje cultivado por grande parte da população.

Como forma de resistência à racialização, os terreiros gaúchos se constituíram como espaços de autoafirmação. Isto já havia ficado evidente no Censo de 2010 e foi confirmado nos dados do Censo de 2022, no qual o Rio Grande do Sul figurou como o estado com o maior número de autodeclarações de adeptos destas religiões no país, com 3.2% da população. Este número sobe para 6% se tomarmos os oito municípios do primeiro cordão urbano da Região Metropolitana de Porto Alegre, com especial destaque para o município Viamão, que ocupou o primeiro lugar no país com 9.3% de sua população declaradamente afrorreligiosa. Antes de representar números absolutos, este dado apressa a necessidade de se enfrentar a invisibilização institucionalizada no estado. Os dados de 2010 do IBGE indicavam  também que existiam cerca de 60 mil terreiros em todo o estado, o que, do ponto de vista eleitoral, se constituia um importante nicho.

O primeiro político declaradamente afrorreligioso no estado foi o umbandista Moab Caldas, jornalista e radialista, eleito como deputado estadual, em 1958, pelo Partido Social Democrático (PSD), tendo sido reeleito como suplente em 1962 e 1967, então pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Caldas foi cassado pelo AI-5, em 1969. 

Outra figura proeminente foi Alceu de Deus Collares que, entre os anos de 1964 e 1995, ocupou diversos cargos eletivos, tendo sido o único homem negro a ser eleito prefeito de Porto Alegre e  governador do estado. Apesar de se declarar espírita, seu vínculo com os cultos afro-gaúchos era publicamente conhecido, tendo-os defendido em diversas ocasiões. 

A década de 1990 inaugurou a participação permanente de lideranças afrorreligiosas como candidatos à Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, na qualidade de representantes destes segmentos religiosos. Ao menos três figuras se destacaram: Jorge Verardi (PDT), Danilo Andrade (PTB) e Ailton Albuquerque (PTB), todos famosos babalorixás e ligados ao setor trabalhista, porém nenhum se elegeu.

Entretanto, foi em Porto Alegre e sua Área Metropolitana, onde este fenômeno tomou proporções a partir das Eleições Municipais de 2000. Nessa ocasião, ao menos cinco candidatos a vereador se apresentaram como lideranças afrorreligiosas. Em cada um dos pleitos seguintes, de 2004, 2008 e 2012, ao menos três candidaturas tinham este perfil. Já em 2016, este número aumentou para oito candidaturas. 

Nesse primeiro momento se estabeleceu alguns padrões de apresentação. Como estratégia eleitoral, estes candidatos e candidatas utilizaram “nomes de urna” associados à religião (como Pai Jorge de Xangô, ou Bàbá Diba De Yemonjá), ou indicaram seu pertencimento religioso em seu material de campanha. Também foi frequente o uso de símbolos próprios deste segmento religioso, como a indumentária, guias ou imagens de lugares simbolicamente importantes para a comunidade afrorreligiosa porto-alegrense como o Mercado Público da cidade.

O ano de 2016 também foi marcado por mudanças consideráveis na política nacional com o impeachment  da Presidenta Dilma Rousseff, o papel das bancadas religiosas neste processo e a intensificação da polarização entre direita e esquerda partidária, que se tornou a tônica nas eleições seguintes. O resultado, em 2018, que todos sabemos, foi a radicalização dos discursos conservadores e a eleição de Jair Bolsonaro (PFL) à Presidência da República, no que ficou conhecido como a “onda conservadora” (Almeida, 2017). 

As eleições municipais de 2020 foram marcadas pelo recrudescimento da polarização política, com claros sinais de desgaste da imagem do então presidente Jair Bolsonaro, em meio a polêmicas e a pandemia de covid-19. Segundo a pesquisa Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020, realizada pela equipe de Região e Política do ISER, em Porto Alegre apresentaram-se, ao menos, 25 candidaturas que mobilizaram a identidade afrorreligiosa. A estas se somaram outras três identificadas como tal, a partir da observação de postagens em seus perfis de mídias sociais em um período anterior à campanha. 

O crescimento do número de candidaturas, em 2020, impressionante, foi resultado de alguns fatores relacionados à polarização e à radicalização. Por um lado, de forma geral, houve um aumento das candidaturas que, em Porto Alegre, foi de 42%, passando de 581, em 2016, para 829, em 2020. Por outro lado, tratando-se especificamente dos segmentos afrorreligiosos este número cresceu também devido a duas dinâmicas internas do segmento. Primeiro, a sensação de perigo iminente diante do avanço do “bolsonarismo” evidenciado nos discursos de parte dos candidatos em questão. Em segundo lugar, devemos considerar a presença de candidatos afrorreligiosos ligados a partidos de direita que, em certo sentido, estavam disputando as pautas religiosas com candidatos dos partidos de esquerda.

Nas eleições nacionais e estaduais de 2022, a derrota do “bolsonarismo” para a Presidência da República não eliminou a polarização, mas fragmentou a direita. O monitoramento das candidaturas afrorreligiosas nas eleições de 2024 em Porto Alegre, indicou uma intensificação deste fenômeno de superparticipação afrorreligiosa. Nessa ocasião, foram identificadas ao menos 44 candidaturas, das quais 29 mobilizaram seu pertencimento durante a campanha eleitoral e outras 15 o fizeram em um período anterior, o que foi identificado em postagens nos seus perfis de mídias sociais. A intensidade do fenômeno assume maior importância se considerarmos que o número geral de candidaturas na capital gaúcha caiu para 513 candidatos. 

O número também impressiona se considerarmos que nos processos eleitorais entre 2000 e 2016 predominavam as  candidaturas evangélicas e católicas, enquanto os afrorreligiosos ocupavam um nicho muito pequeno. Nesse período, os afrorreligiosos superaram o número de católicos que, no total, chegou a 24 candidaturas, e de evangélicos, que somaram 35 candidaturas. Porém, também devemos tomar precaução, tal número uma vez que, desde 2016, uma nova categoria religiosa vem sendo mobilizada nas candidaturas, a de cristãos genéricos. Um fenômeno que ainda aguarda uma análise mais profunda, mas que em 2024 chegou a 35 entre as candidaturas.

Do ponto de vista partidário, estas 44 candidaturas afrorreligiosas se distribuíram de forma diversificada em 13 partidos diferentes, cobrindo todo o espectro político. Foram 16 candidaturas em partidos de esquerda, 17 em partidos de centro e 11 em partidos de direita. Houve maior concentração à esquerda – no PT, no PDT e no PSOL – e à direita – no PSDB e no União Brasil. Este dado, vai de encontro ao senso comum que associa os afrorreligiosos à esquerda partidária, e revela a diversidade de posicionamentos políticos dos adeptos dos cultos de matrizes africanas no sul do país. Isto é reforçado pelo fato de um dos candidatos com maior votação, embora não tenha sido eleito, ter sido Pai Ricardo de Oxum, que concorreu pelo PSDB.

Apesar do número significativo de candidaturas, poucas atingiram uma votação expressiva. As únicas candidatas a se elegerem o fizeram mobilizando a afrorreligiosidade de forma secundária ou com menções incidentais durante a campanha em seus perfis de mídias sociais. Foram elas: Karen Santos (PSOL), Cláudia Araújo (PSD) e Natasha Ferreira (PT). As duas primeiras, reeleitas, e a última em seu primeiro mandato. O fato de terem atingido o sucesso eleitoral sem utilizar seu pertencimento religioso como bandeira central é reflexo de uma mudança no perfil das campanhas eleitorais e do eleitorado deste segmento. 

Em consonância com o observado por Christina Vital (2021) nas mobilizações em defesa das comunidades afrorreligiosas no Congresso Nacional, o foco inicial estava centrado na religião, porém na última legislatura ele se deslocou para bandeiras mais amplas, alinhadas com o combate ao racismo religioso, cultural e institucional. No entanto, apesar dos discursos deste conjunto de candidatos girarem em torno de uma mesma temática – a defesa das religiões de matrizes africanas, a representatividade do segmento no poder público e as melhorias nas condições de vida desta população e seus espaços de culto –, estas grandes bandeiras passam por diferentes leituras. Elas figuram como um campo de disputa ideológica entre os diferentes partidos, o que imprime uma complexidade ainda maior ao fenômeno.

Referências

ALMEIDA, Ronaldo de. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo, Editora Terceiro Nome, 2009.

ALMEIDA, Ronaldo de.. A onda quebrada: evangélicos e conservadorismo. Cadernos Pagu n. 50. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2017.

CARVALHO, Erico; ORO, Ari Pedro. Eleições Municipais 2016: Religião e política nas capitais brasileiras. Debates do Ner, ano 18, n.32, 2017.

ORO, Ari Pedro. Religião e Política nas eleições 2000 em Porto Alegre (RS). Debates do Ner, Porto Alegre, ano 2, n.3, 2001.

ORO, Ari Pedro. Religião e eleições em Porto Alegre: um comparativo entre 2000 e 2004. Debates do Ner, ano 5, n.6, 2004.

ORO, Ari Pedro; CARVALHO, Erico. Religiões e eleições 2012 em Porto Alegre. Debates do NER, ano 14, n.23, 2013.

OTERO, Andréa Grazziani; DE ÁVILA, Cíntia Aguiar; SCHOENFELDER, Rosilene. Religiões Afro-Brasileiras: rivalidade e fracasso eleitoral. Debates do NER, ano 5, n.6, p. 129-148, 2004.

REIS, Lívia; CUNHA,  Magali; ABREU, Gabrielle; PESTANA, Matheus.  Religião e voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020. Rio de Janeiro, RJ: ISER – Instituto de Estudos da Religião, 2022

VITAL DA CUNHA, Christina. Ativismo Negro e Religioso: O caso da Frente Parlamentar de Terreiros no Congresso Nacional Brasileiro. Novos estudos CEBRAP, v. 40, p. 243-259, 2021.

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